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19.12.09

A LONGA ESPERA DE LEONARD














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Nas sombras da noite de uma fazenda isolada vaga uma criatura insana e mortal. Leonard Baxter, o solitário fazendeiro, terá que enfrentar o maior desafio de sua vida ao deparar-se com um ser inimaginável.

De forma rápida e concisa Henry Evaristo vai conduzindo o leitor por uma estória de horror e angústia cuja identificação com o heroi fica por conta de suas dificuldades em lidar com as questões da vida mas que resolve expurgar suas falhas tomando o caminho mais dificil numa situação de perigo sobrenatural.
(Gabriel Heinrich)


"Um conto muito bem engendrado, célere, e com um final surpreendente! Perfeito na imaginação e na narrativa."

(Paulo Soriano)


" Henry,vc fez meu sangue gelar (...) me assustou, é serio.Que tom macabro,acho que vou acender as luzes do quarto..."

(Hell)





A LONGA ESPERA DE LEONARD

Henry Evaristo



I
Leonard Baxter costumava vistoriar todas as trancas das portas de sua casa duas vezes por noite. Vivia só na sede da fazenda que herdara de seu pai desde que a esposa, Heather, falecera vitimada pelo câncer cerebral que a arrastara pelas sombras da loucura durante longos doze anos antes de vencê-la. Andava na casa dos sessenta anos e era um homem angustiado e destruído pela solidão e a saudade. Àquela altura de sua vida não tinha mais nenhum parente no mundo.


Naquela noite ele havia checado as fechaduras quatro vezes por que, desde cedo, estava vítima de uma estranha inquietação. Sem nenhuma explicação ou motivo aparente seu coração estava agitado, descompassado, causando uma sensação de ansiedade sufocante. Após as nove da noite a tensão se tornara tão forte que chegara a fazer, com os dentes, feridas dolorosas nas pontas dos dedos da mão esquerda. Seus olhos ardiam; Nada o agradava. Todas as posições eram incômodas. Tentou dormir, mas não conseguiu. Foi até a cozinha, mas a comida não passava pela opressão em sua garganta. Ligou a T.V mas sentiu um medo inexplicável do barulho do aparelho. Um pensamento tenebroso de que o som poderia fazer com que algo ruim se aproximasse de sua casa o fez desligá-lo e ficar quieto, quase imóvel, na penumbra da sala, esperando por algo que não poderia imaginar o que fosse. Às onze horas da noite se encontrava em um quadro tão deplorável de inquietação e excitação que respirava com dificuldade. Tudo o assustava. Os pequenos ruídos da noite assumiam uma conotação monstruosa e apavorante e as mais simples explicações cediam lugar para fantásticas e macabras conjecturas.


Assim a madrugada encontrou o velho solitário: Sentado à desgastada cadeira de balanço que fora de seu pai, com medo de mover-se por causa do barulho que o ato causaria; Contendo a respiração para não ser percebido e com o coração explodindo no peito fazendo todo o corpo tremer sob o efeito de um misterioso presságio. Um medo irracional enlouquecedor capaz de transformar um estremecimento numa das portas, causado pelo vento que soprava da floresta próxima, na ação de algum agente malévolo ou o estalar de um galho seco, sob as patas de um dos enormes mastiffs* que guardavam a propriedade, no som dos passos de algum animal mitológico avançando em direção a casa. Seu olhar se fixava na pequena janela de vidro, encoberta por uma fina cortina transparente, ao lado da porta da sala. Em dado momento achou que estava vendo um vulto largo parado, do lado de fora, na varanda. Lembrou-se que a cerca de dez ou vinte minutos os cães pareceram agitados, mas logo se aquietaram novamente. Ficou como estava, imóvel. Começava a sentir uma dor cansada no lado esquerdo do peito e tinha a impressão que sua mão esquerda estava começando a formigar. As batidas surdas do coração pareciam querer rebentar sua nuca. Tinha quase certeza que aquele estranho visitante noturno podia ouvir seu peito saltando e agitando sua carne por baixo da camisa trêmula. Não de caso pensado seu rifle de caça estava afixado mais alto na mesma parede em que encostara a velha cadeira e ao alcance de suas mãos; Porém, tinha medo de que as juntas de seus velhos ossos estalassem ao se erguer para alcançá-lo.


De olhos arregalados e com uma falta de ar crescente viu confirmar-se a existência de um vulto que se mexia lentamente do lado de fora. Ouviu o estalar da madeira do chão da varanda sob um peso que devia ser descomunal e notou que a porta estava tremulando tenuemente como se experimentada por algo que não queria ser percebido. Subitamente, para cúmulo de seu horror, o som forte de uma rachadura nova se abrindo no piso, chegando a seus ouvidos, trouxe com ela um ruído surdo, gutural e feroz; Um rosnar bestial que pareceu brotar da garganta de um demônio e espalhar-se por toda a casa, como um lamento de intensa dor que o fez perder os sentidos.


II

A consciência só lhe retornou às cinco da manhã e ele levou poucos segundos para recuperar a lembrança do que acontecera; Depois disso, seu coração saltou novamente no peito com uma pontada dolorosa e um frio que se espalhava do estômago para o corpo inteiro. Levantou a cabeça lentamente a procura do vulto que avistara na janela. Uma luz mortiça e fria banhava agora a sala inteira vindo do ponto em que deveria estar a vidraça e Leonard descobriu, com os olhos saltados nas órbitas, que no lugar não havia mais nada senão um enorme buraco, feito de fora para dentro, diante do qual jazia a cortina jogada ao chão onde ondulava suavemente ao sabor da brisa fria e úmida da manhã que chegava. Enquanto ele estivera sem sentidos a coisa estilhaçara o vidro para o observar inerte na cadeira.

III

Quando o dia chegou, pois a luz arrefece os terrores da noite, Leonard finalmente conseguiu levantar-se. Lentamente, e ainda com um medo terrível, retirou o rifle do suporte na parede e agarrou-o com força colocando-o entre si e o que quer que ainda estivesse andando por ali mesmo na claridade da manhã. Não quis saber de olhar os cômodos da casa. Foi em direção à porta da sala, destrancou-a e abriu. Viu primeiro um buraco na madeira do piso do lado de fora e, em sua borda dentada, pedaços ensangüentados de um couro duro coberto de pelos escuros e espessos. Depois observou que toda a extensão da varanda, seguindo uma linha vacilante desde a divisa com o chão de terra, onde havia uma escada de dois degraus, até chegar à porta, estava coberta de pegadas semelhantes às de um cão de grande porte. Depois foi até o quintal onde encontrou dezenas de outras pegadas iguais na terra úmida em volta da casa. Não conteve uma nova onda de arrepios ao imaginar que o estranho ser muito provavelmente estivera rondando o local desde cedo antes de se aproximar da vidraça; E sentiu um baque surdo no peito ao lembrar que chegara a sair no escuro para soltar e alimentar os cães por volta das sete e meia. Sua mente perturbada formulava mil imagens de uma face canina diabólica espiando para dentro de casa pelas janelas dos quartos do andar térreo.


Estas foram as conclusões a que Leonard chegou depois que observou o exterior de sua propriedade naquela manhã. Porém, ainda não havia visto tudo.


Nos fundos do terreno, perto do pequeno jardim que sua esposa cultivara em vida, e que ele mesmo assumira após sua trágica morte, encontrou os três cães da fazenda. Haviam sido terrivelmente mutilados por algo com uma fúria bestial inelutável. A coisa havia, ainda, levado consigo as cabeças e parte das vísceras dos Mastiffs de forma que, do lugar onde jaziam os restos mortais dos três animais, meio imersos em poças coaguladas, partia uma trilha de sangue e pequenos pedaços de carne que seguia em direção ao velho celeiro desativado que ficava numa área isolada e alta nos limites da propriedade. O pensamento de que o ser ainda podia estar lá, escondido, devorando em meio ao feno apodrecido as partes gotejantes de seus animais de estimação, fez o estômago vazio de Leonard revirar em náuseas.


A fazenda Baxter ficava distante das demais propriedades da região e a ausência de vizinhos próximos sempre fora uma qualidade exaltada por seus proprietários como uma justificativa de paz e silêncio. No entanto, agora, esta quietude e isolamento estavam cobrando um temeroso posicionamento. O prédio decrépito que era o velho celeiro, antes solitário no alto de sua colina cinzenta, representava agora o vórtice de todo o horror e foi com muito custo que Leonard tomou a decisão de aproximar-se dele sozinho.


Com extrema cautela, evitando pisar nos galhos e folhas espalhados no chão e esgueirando-se por entre os troncos das árvores que existiam no percurso, o velho avançou para o seu destino.

IV

A imensa porta estava aberta. A corrente que a mantinha firme no lugar fora arrancada e o cadeado retorcido num golpe violento que rebentara também as dobradiças e o caixilho. No chão podia-se ver claramente a trilha sangrenta avançando para a escuridão no interior onde dominava um silêncio mórbido; uma quietude nefasta rompida apenas pelo estranho farfalhar do vento frio nas folhas das árvores. No solo ensangüentado as moscas começavam a descobrir os pequenos pedaços de carne espalhados aqui e ali e zumbiam timidamente.


Leonard parou diante da grande entrada do celeiro e viu as trevas ameaçadoras do lado de dentro; Pareciam querer saltar de lá e agarrá-lo de tão pesadas e concretas. Já estavam ali antes, sempre estiveram, mas apenas existiam sós com elas mesmas. Agora tudo mudara e aquela escuridão tornara-se, repentinamente, o abrigo de uma coisa que estava se escondendo do dia; Algo que havia saltado de qualquer lugar macabro do universo e agora estava ali, ameaçando, intimidando, com promessas de dor, horror e morte.


Foi diante disso que Leonard perseverou quando deveria ter partido. Talvez o choque da noite anterior o tivesse enlouquecido a ponto de não pegar o carro e sair o quanto antes; A ponto de não pensar em usar o telefone para chamar a polícia em seu auxílio. Talvez o fato de sempre ter sido um grande covarde a esperar pelos outros tivesse algo a ver com sua atitude inusitada diante de tudo aquilo.


Assim o velho relógio de madeira marcou seis horas da tarde no interior da sede solitária da fazenda Baxter e as primeiras sombras da noite começaram a se insinuar por entre as árvores.


Leonard tinha a boca seca. Estava tonto e enfraquecido. Não comera nem bebera nada o dia inteiro. Não tomara banho, não trocara de roupa. Ainda estava de pé recostado ao tronco de um carvalho em frente à entrada aberta e escura do celeiro. O cheiro do sangue que vinha da trilha tornara-se ainda mais nauseante e o barulho das moscas intensificara-se aumentando ainda mais o seu mal-estar. Já sentira tanto medo que parecia não sentir mais medo algum e, quando as sombras cobriram tudo, ele baixou a cabeça pensando em Heather e na vida que deveria ter tido.


Foi um grito pavoroso que fê-lo estremecer novamente. Ergueu rapidamente a cabeça para a entrada do prédio e viu a sombra larga vir surgindo da escuridão, como alguma locomotiva enlouquecida e desgovernada, até parar de repente no limite da porta destruída. De lá, perscrutou-o com dois olhos amarelo-avermelhados que faiscavam em sua direção.


Leonard engatilhou a arma. Tinha esperança que a velha munição, carregada semanas antes, ainda detonasse. Pensou mais uma vez em sua esposa e sentiu como se o pensamento amortizasse o horror. Naquele momento não tinha mais medo, pelo contrário, estava cansado de esperar. Pelo menos aquilo se resolveria ali e não se arrastaria como mais uma pendência em sua existência. Não esperaria por ninguém para apresentar soluções por ele desta vez. Se a coisa o quisesse que viesse apanhá-lo.


"Este bicho que come seus semelhantes!" Pensou. Já tinha ouvido falar dele nos bares da cidade onde muita gente dizia já ter tido contato com alguma coisa horrenda que ficava rondando os homens durante as caçadas noturnas na floresta. Falavam no nome do juiz Gardner, mas apenas quando ele estava bem longe. Por sua vez, Leonard nunca tivera motivos para acreditar nas estórias e muito menos para lançar suspeitas sobre quem quer que fosse. Porém, nas últimas horas, o destino lhe dera todos os motivos do mundo para dar crédito a tudo que o povo falava. Estava ali, agora, sozinho com o caçador dos caçadores. Ao seu redor a noite, e no céu uma lua grande e prateada, eram as únicas testemunhas do que estava para acontecer.


Leonard Baxter disparou uma vez para o alto e prendeu a respiração quando o pesadelo demoníaco saltou da escuridão com as garras ensangüentadas estendidas para despedaçá-lo. Agora, ao invés de horror, tinha pressa.

V

Em 1990 o antropólogo alemão Karl Heinrich Heller visitou alguns países estrangeiros onde havia informações pertinentes à sua tese de doutoramento na conceituada Humboldt-Universität zu Berlin, o mais antigo centro acadêmico da capital germânica. Na América do norte foi até uma cidade do interior rural onde, num sanatório público, pôde entrevistar o paciente 176, supostamente de grande ajuda para suas pesquisas. Era já um ancião e fora levado à instituição por um grupo de moradores da cidade que o haviam encontrado vagando desorientado por uma estrada numa manhã há mais de dez anos. De sua vida dizia que nada lembrava e, com exceção de alguns momentos de tímida agitação, não demonstrava nenhum outro tipo de reação.


Seu passado pessoal tampouco interessava ao estudioso. Ele viajara de tão longe com tantos custos, e driblara o obstáculo da língua estudando tão arduamente, para falar de antropomorfismos e seres metamorfos. Mas todas as suas tentativas de arrancar alguma coisa, uma parte sequer que confirmasse as estórias fabulosas que ouvira a seu respeito na Alemanha, foram frustradas diante da letargia do ancião. De outras pessoas da região, dotada de vilas e pequenas cidades, ouviu boatos e especulações, mas do paciente no sanatório nenhuma palavra saiu. Nem mesmo diante da vasta literatura que lhe foi apresentada pelo doutorando abordando o assunto de diversas formas distintas como o estudo do padre Baring-gould, do século XVIII, e o Exemplar raríssimo do tratado sobre licantropia escrito em 1408 pelo ocultista austríaco Päl Wilhelm Von Sorian, intitulado “De Mancipium ex Luna”. O velho vivia imerso num mundo particular e silencioso. Seus únicos momentos de exaltação eram quando ouvia mencionarem a caixa de ferro que trazia trancada em baixo do braço desde que chegara ao manicômio e que nunca, por motivo algum, largara ou deixara alguém tocar. O antropólogo o indagou sobre o conteúdo, sobre o que havia acontecido, o que havia visto e, depois de um mês de exaustivas tentativas, o máximo que conseguira fora que o "louco" levantasse de repente a camisa do pijama deixando à mostra seu tórax muito branco onde cinco cicatrizes retilíneas se destacavam róseas sob uma camada grossa de pelos negros. Depois nada mais além do mais completo silêncio.


Na última tarde, pouco antes de deixar a hospedaria onde se instalara, Karl Heller recebeu um envelope lacrado com um selo do hospital. Dentro havia um bilhete e um embrulho feito com papel de jornal. Ele prontamente leu o escrito no bilhete antes mesmo de partir. Dizia apenas isto:


“Vá embora, doutor. Jamais falarei ao senhor ou a quem quer que seja. Não sou louco, mas vivi uma loucura sem precedentes. Tive meu momento de cuidar de mim. Agora, no fim de minha vida, quero que os outros cuidem de novo. Quero mesmo um bando de guardas vigiando minhas portas e janelas. No entanto, tenho aqui uma coisa para garantir o sucesso de seu trabalho. Aliás, tenho várias delas em minha caixa secreta; Até hoje me colocam sob uma expectativa que me é totalmente obscura e assombram minhas noites. Espero que não assombrem tanto as suas.
Adeus."


A mensagem acabava assim, sem nenhuma assinatura.


Na estrada para a capital do estado ficava a fazenda abandonada onde diziam que o velho que morava sozinho, de uma hora para a outra, enlouquecera devido ao isolamento e à tristeza um ano após a morte trágica da esposa. Karl parou o carro alugado na entrada coberta por capim e plantas trepadeiras, sentido o vento gélido que soprava da densa floresta circunvizinha. Era quase sete horas da noite e uma garoa espessa começara a cair prenunciando frio ainda mais intenso. Os faróis do carro semi-iluminavam a estradinha de terra que levava à sede da propriedade e, mais além, à uma tenebrosa construção imersa nas sombras do alto de uma pequena colina, que parecia ter sido um celeiro.


Por algum motivo achou que aquele era o momento propício para abrir o pequeno embrulho e cuidadosamente desdobrou o jornal que o cobria. Havia uma manchete que logo despertou sua atenção; Era do ano de 1980. Suas letras garrafais diziam: “Estranho animal encontrado morto na fazenda dos Baxter. Proprietário desaparecido." Não havia foto alguma.


Dentro do embrulho do jornal havia um caixa de palitos de fósforos tamanho grande. Heller a abriu. Primeiro seus olhos avistaram apenas uma coisa branca amarelada. Depois ele abriu mais a caixa removendo toda a parte de dentro e sentiu seus cabelos se eriçarem. Havia, no interior, uma imensa presa, maior que o dedo indicador de um homem adulto. Mas havia mais do que isso: No fundo da caixa, embaixo daquele artefato bizarro, jazia um enorme par de garras encardidas e pontiagudas amarradas cuidadosamente com um punhado de grossos fios de pelos negros.


Karl Heller tremeu na escuridão e no frio. Estava tão nervoso que mal conseguiu dar partida no motor do carro e olhava incessantemente pelo retrovisor. Seus anos de estudos sobre o tema o haviam tornado profundo conhecedor do ser que perseguia e temia; profundo a ponto de não mais conseguir ignorar a possibilidade mínima, por mais absurda que fosse, de sua real existência. Rapidamente trancou todas as portas e partiu voltando-se sempre para trás e para os lados; Para as florestas que margeavam a estrada deserta e escura que teria de percorrer sozinho até chegar à cidade e pegar o avião. Para o resto de sua vida lembrou-se das cicatrizes no peito do velho e se sentiu ameaçado.

VI

Em Dezembro de 1999 Karl Heller se surpreendeu ao chegar em seu apartamento em Düsseldorf vindo de um longo dia de debates e ministrações de palestras sobre rituais mágicos em culturas do velho mundo. Havia em sua caixa de correio uma correspondência com o timbre do Howard Jenkins Institute, o hospital norte-americano que visitara quase dez anos antes e onde obtivera o material que tanto o auxiliara em seu doutorado. Primeiro um pequeno bilhete em papel cartão especial comunicava formalmente o falecimento do paciente 176, o mais antigo da instituição, que sucumbira a um enfarte fulminante com mais de noventa anos; e terminava informando que, de acordo com o último pedido do falecido, o hospital encaminhara em anexo uma carta manuscrita juntamente com a enigmática caixinha de ferro do paciente legada ao doutor por escrito enviado à direção.


Heller sentiu o coração bater mais forte diante da perspectiva de, finalmente, estar recebendo as informações que implorara àquela sua tão inexpugnável fonte de tempos passados. Pensou que finalmente o maldito velho iria falar, depois de morto! E Foi com um nervosismo crescente e incontrolável que abriu o envelope.


“Caro senhor Heller, espero que tenha corrido tudo a seu favor em sua defesa junto a bancada analisadora de seu doutoramento. Saiba que admiro muito as belezas de seu país e, por toda a minha vida, esperei um dia poder conhecê-lo; Infelizmente até hoje o Pai celestial não me permitiu esta graça.


Escrevo esta pequena carta um dia depois que o senhor deixou o hospital pela última vez e vou guardá-la para que lhe enviem, lacrada, somente após minha morte, ou seja lá que outro destino a providência me reservar. Ainda assim não vou contar-lhe o que tive de enfrentar sozinho em minha velha fazenda. Tenho certeza que sabe muito bem o que era!


As pessoas desta cidade são muito simples, quero que entenda! E o que me aconteceu foge ao alcance de suas compreensões. A coisa toda acabou se tornando uma espécie de segredo coletivo de nossa pacata comunidade. Por isso, creio eu, todos com quem falou evitaram contar-lhe toda a verdade.


Veja bem! Estou velho e todo aquele horror deixou-me marcas incuráveis no corpo e na mente. Infelizmente apenas depois que o senhor se foi é que fui capaz de decidir que não poderia morrer sem que alguém mais, além de mim, pudesse comprovar a história.


Quero dizer que a manchete de jornal que lhe enviei não passou de um tremendo equívoco da imprensa local, pois o "estranho Animal" encontrado em minha propriedade não passava dos restos amontoados de meus três cães pastores somados à imaginação oportunista de algum vendedor de periódicos. O fato, aliás, foi desmentido na mesma semana pela mesma agência de notícias, para não causar alarde. Consideraram-me um louco desaparecido que devorava animais de estimação. Oh, Deus! A verdade é que vaguei desnorteado por esta estrada durante duas semanas; À noite escondia-me do que quer fosse subindo bem alto em alguma árvore. Mas não me entenda mal! Houve realmente uma coisa diabólica naquela fazenda! Foi dela que tirei as partes com as quais lhe presenteei. Dei-lhe seis tiros na cara com o rifle especial de meu pai, mas ela ainda conseguiu me alcançar antes de cair.


Em meu internato aqui neste hospital li discreta e secretamente tudo o que pude sobre o assunto - mesmo antes de o senhor me mostrar seus valiosos compêndios - e, felizmente, creio eu, a contaminação a que fui exposto resumiu-se ao aparecimento daqueles pelos mais espessos que o normal onde o monstro conseguiu me atingir com suas garras.


Senhor Heller, não estou mentindo! A criatura realmente existiu! Mandei-lhe a manchete sensacionalista para aplacar a sua ânsia, mas, se continuar querendo vê-la, aquela abominação, sua carcaça maldita ainda deve estar enterrada atrás do velho celeiro ao lado do poço onde a deixei!


Não sou louco, senhor! E o que quero em troca da minha verdade é que diga isso a quem interessar neste mundo!


Com respeito,
Leonard J. Baxter
Outubro de 1990.”


“P.S: Cuide bem de minha caixa, ela é herança de meu pai. Dentro encontrará alguns outros itens que, tenho certeza, vão lhe interessar deveras.”

VII

Às oito da manhã do dia seguinte o doutor Karl Heller embarcou em um vôo especial e, dois dias depois, estacionou o carro da Avis rent-a-car em frente à velha fazenda abandonada dos Baxter. Fizera de tudo para evitar, mas só conseguira chegar ao local depois das cinco da tarde pois antes estivera reunido com o diretor do Howard Jenkins Institute onde conversara sobre o paciente 176 e como tudo a seu respeito havia sido imbuido de uma estranheza mórbida. Mesmo sua morte solitária no apartamento que ocupava havia sido algo de extraordinário. Falecera às seis da tarde sob o que parecera ser a algazarra lamentosa de todos os cães das redondezas. Em dado momento o assustado diretor ousara revelar um pouco do que ia em sua cabeça. "Deus me livre!" Disse ele e continuou falando num tom nervoso. "Mas aquele velho tinha mesmo algo terrível a esconder. Mais de uma vez o surpreendi fazendo coisas reprováveis. Uma noite, perto do fim, posso até jurar que o ouvi rosnando como um animal dentro de seu quarto escuro."


O endereço da antiga fazenda era agora uma granja pertencente a uma indústria de enlatados e não foi fácil convencer os seguranças para deixá-lo entrar e escavar atrás de um dos criadouros, onde antes ficava o celeiro. Após quase uma hora de negociações e pedidos de autorização sua entrada foi finalmente liberada desde que acompanhado por dois dos seguranças. Era um inicio de noite de Domingo e não havia movimento algum no interior das novas instalações.


A área para onde Karl se dirigiu com os guardas ficava afastada do escritório e já começava a penetrar na floresta escura que circundava a propriedade. No caminho um dos acompanhantes quebrou o silêncio:


"O senhor é repórter?"-perguntou.


"Não! Por quê?"-Respondeu Heller.


"Oh, não é nada!"


"Bem!" Disse o outro enquanto acendia a lanterna. “É que alguns repórteres andaram rondando por aqui nas últimas semanas."


"Verdade? E por quê?" Perguntou o antropólogo sentindo uma rajada de frio súbita e inconveniente no coração.


“É que parece que o povo da cidadezinha ali a diante tem se queixado desta granja. Dizem que as nossas aves devem estar atraindo algum animal selvagem que está atacando as galinhas e outros bichos soltos nos quintais das residências durante a noite.


Karl Heller sentiu as pernas vacilarem. Não podia creditar no que ouvira. Por não saber o que dizer ficou calado, mas, de repente, todo o ambiente ao redor assumiu uma outra conotação, mais macabra e violenta.


Foi em meio a pensamentos atordoados, e divididos entre o fascínio e o horror, que, em fim, avistou, sobre a colina escura, por trás do criadouro abarrotado de aves adormecidas, o poço mencionado pelo velho Leonard.


"Ali!" Apontou. "Acho que o que procuro está ali!" E sua voz agora continha tons de euforia indisfarçáveis que causaram nos seguranças suspeitas de algo errado com aquele homem.


"Hei, Bors!" Disse um deles "Acho que este senhor procura algum tesouro que nossos patrões deixaram escapar."


Karl pretendia escavar um buraco pequeno e por isso trouxera consigo uma pequena pá metálica de pedreiro. Ajoelhou-se no chão bem ao lado do poço e depois mostrou o instrumento aos guardas como que pedindo uma última autorização. “Fique a vontade, senhor. Ninguém anda por aqui e nosso turno só encerra às seis da manhã.” Disse o segurança com a lanterna.


E então Heller começou a cavar sob o foco sinistro das lanternas dos guardas de segurança; Agradecido por eles estarem com ele, naquele lugar estranho e pressago, armados. A luz saltitante formava como uma ilha de claridade em seu entorno e contrastava ferozmente com a escuridão da floresta. Logo um amontoado de terra se formou ao lado de uma abertura de mais ou menos um metro e meio de comprimento na superfície do solo estranhamente solto e parecendo revirado recentemente. Era mais de sete horas quando Karl entendeu com um calafrio que, como em um pesadelo, não havia mais nada enterrado ali e, a partir deste momento, seus olhos não desviaram mais de dois segundos da orla da mata inundada pelo negrume da noite. Um pensamento insistia em se insinuar como serpente venenosa em sua mente “O velho não mentiu. Sei que não!”.


De repente ergueu-se num salto e começou a voltar para o carro apressadamente. Os guardas o acompanharam intrigados.


"E então, senhor? Encontrou o que queria?".


"O que era?" Indagou o outro.


O pátio da granja era bem iluminado e aqui e ali outros seguranças caminhavam em duplas ou trios. Poucos carros estavam estacionados e Karl podia ver alguns homens de jaleco branco trabalhando no escritório distante. Ele não falou nada até chegar a seu próprio veículo estacionado próximo à saída. Um dos guardas então o inquiriu mais uma vez enquanto desligava a lanterna.


“Afinal, senhor, se o senhor me permite, e já que o acompanhamos todo este tempo, o que procurava naquele matagal úmido”?


Mas Heller estava muito excitado e assustado naquele momento. Não conseguia pensar em mais nada além de uma frase que lembrava de um velho filme de terror que assistira nas madrugadas dos anos setenta. Quando deu partida no carro disse aos dois acompanhantes intrigados e frustrados:


"Escutem! Não andem por aí sozinhos. Desconfiem sempre desta floresta. Não dêem as costas para ela jamais! Entenderam? Tranquem as portas de suas guaritas à noite e mantenham suas armas sempre carregadas.”


"Ora, o que está dizendo? O que...”.


"Não brinquem com o que digo! Nunca! Isso pode...”.


“O que, senhor? O que? Que brincadeira é esta?" Irritou-se um dos guardas.


Então Karl deu marcha-ré e dirigiu para a saída. Não disse mais nada aos vigias. Queria dizer-lhes "Cuidado!", mas achou que isso só os confundiria mais e os faria realmente acreditá-lo louco.
A estrada estava escura e deserta como da primeira vez, mas agora quase podia sentir olhos malévolos expiando para ele de algum lugar entre as árvores. Ligou o rádio baixinho para ver se conseguia pensar em outra coisa, mas a pavorosa frase do filme insistia em tomar de assalto seus pensamentos a todo instante:


"Se não os matar direito eles voltam!"

VIII

O velho sentou numa pedra próxima à entrada de uma enorme caverna. Estava completamente nu, mas o frio intenso da manhã não o incomodava em absoluto. Todo o seu corpo era agora percorrido por um vigor que jamais sentira antes; Nem mesmo a duas ou três semanas atrás, quando precisara esforçar-se para cavar o caminho para fora da sepultura onde o haviam enterrado no cemitério municipal, e, mais tarde, para reabrir e fechar a cova rasa onde depositara a carcaça de um velho inimigo. A imensa ossada jazia agora, no fundo escuro da fenda gigantesca que adotara como lar, tal qual uma relíquia de um tempo cuja memória ia se apagando gradativamente com o passar dos dias. Cada vez mais eram os instintos primordiais que comandavam os movimentos e ações de seu corpo; Necessidades básicas comuns a todos os animais: comer e subsistir. Tinha um vago entendimento de que quando a escuridão chegava podia viver melhor. Assim, durante o dia permanecia inerte, recostado aos caules das grandes árvores ou deitado à sombra de alguma rocha coberta de limo nas profundezas da floresta úmida. Como que para cumprir seu destino, agora apenas esperava e esperava pelo cair da noite.
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*- Mastiff é uma raça de cão bastante robusta e de grande ferocidade muito utilizada para proteção em residências e fazendas. (N. do A.)

11.12.09

OS SERES DO ESCURO - Lino França Jr.

Eis aqui a primeira experiência de Lino França Jr. no mundo dos textos líricos. Já a havia publicado em meu outro blog que fechou e agora a republico agora na CT. Fico muito lisonjeado com a dedicatória e a agradeço imensamente. Boa leitura!


OS SERES DO ESCURO
Lino França Jr.



Para Henry Evaristo


Lua altiva brilhando
Silêncio permeia o negrume
Andar pelos pastos sombrios
Buscando, sem sorte, seu lume.

Ardor das carnes expostas
Projeta no medo um açoite
O bronze perfura vil corpo
Sozinho, indefeso na noite.

Jorrando mel rubro e orvalho
Invadem a terra em torpor
Mistura dos sais que convidam
Em festa, a morte em fulgor.

O vento que corta inclemente
Os silvos brindando o vazio
Despertam nos seres do escuro
Volúpias, desejos no cio.


10.12.09

VIRGÍLIO - Henry Evaristo



VIRGÍLIO


http://successco.typepad.com/photos/uncategorized/2008/01/19/scary_tree.jpg

Henry Evaristo




I
Raios cortam a escuridão da noite. Eles se esgueiram por entre nuvens escuras como se fossem ancestrais e mitológicas serpentes de fogo. Posso mesmo ver seus rastros luminosos correndo em mil direções no céu revolto. Sinto uma tristeza arrasadora, uma comoção por mim mesmo e por minha miserável condição neste lugar. Estou morto! Morto! E, no entanto, sinto-me capaz de refletir sobre o que pode ter me posto nesta situação. Minha memória está enfraquecida; não posso me mover, mas estou consciente de minha prisão num corpo que não mais me pertence e que não mais está de forma alguma integro.

Através de meus olhos embaçados e inexpressivos vejo um campo imerso na noite negra. Como terei adentrado esta região tão desolada? Quem me largou assim neste ermo? Nesta solidão tão terrível agora sou apenas espírito e, no entanto, experimento sensações da matéria.

Um frio intenso que trás ventos cortantes como finas adagas a tudo envolve e posso sentir que tenho minhas roupas encharcadas de água e de algum outro líquido mais espesso. Tudo ao meu redor parece ter vida e emitir estranhos ruídos. Sinto uma tristeza tão grande e tenho tanta vontade de chorar!

Tento mover meu corpo morto e, para minha surpresa, agarro o chão arrancando tufos de mato enlameado. Sinto minúsculas criaturas começando a rastejar sobre minha pele no mesmo instante em que olho para o céu mais uma vez e imagino se as estrelas apagadas desta noite medonha não estão apenas escondidas para testemunharem melhor minha agonia; elas que costumeiramente são personagens de um espetáculo tão indiferente! Em silêncio, e do fundo da alma, grito na solidão esquecida do campo:

Oh, Senhor, por que me abandonaste a este sofrimento? Por que me tiras lentamente os últimos movimentos físicos? Estou morto! Uma coisa louca a especular nas trevas sobre si mesma; perdida entre enigmas ominosos enquanto nuvens aziagas atacam com seus raios ameaçadores; suas descargas de ódio celestial!

Sinto as primeiras gotas da tempestade iminente. Ouço tantos barulhos neste lugar escuro! Sei que há uma criatura que corre pelo campo. Já a avistei, neste meu horror, como algum monstro assustador. Não sei o que é, mas vi que tem sangue na boca e farrapos de uma vestimenta que acredito ser minha. Vez em quando emite um som que é de esmagar o coração; um tipo de uivo lamentoso, arrepiante e maligno. Se aproxima de mim e me cheira, me olhando. Às vezes sinto um arranhar asqueroso e penso se não são suas garras experimentando minha carne no escuro.

II
O tempo passa e a estranha presença jamais me abandona; persiste me oprimindo, não dando um segundo sequer de descanso para meus nervos abalados. Aproxima-se e se afasta correndo.
De repente, mas depois de muito tempo, adquiro uma nova e misteriosa consciência. De alguma forma sei que não estamos mais sozinhos, eu e meu opressor.

A chuva chega súbita e me encharca ainda mais; embota meus pensamentos com novo e fortalecido frio de aço cortante e, tão célere quanto veio, se extingue e deixa no céu uma má impressão de desgraça vindoura onde estrelas malsãs disputam espaço por entre vagas cinzentas.

Sinto uma energia malévola emanando de um bosque distante e sei que neste momento vem de lá um bando de coisas assassinas, furiosas. Mais do que nunca estremeço por causa da exposição de meu corpo largado no chão de um campo desolado assombrado por bestas selvagens.

E vejo vultos se acocorando no escuro, bocarras babando de fome!

Minha respiração descompassa e tento puxar o ar com toda a força que me resta sentindo imediatamente como se barras de gelo invadissem meus pulmões. Estou sufocando na agonia de um medo terrível que quase chega a tirar os únicos sentidos que me restam. Tenho náuseas; arrepios que percorrem meu estranho cadáver.




III
Insinua-se agora, por entre as brumas de minha absurda consciência a vaga noção sobrenatural do que está acontecendo. Sei, assim, que fui atacado por uma destas feras que agora me rodeiam. Uma impressão me toma de assalto: Creio que estacionei meu veículo na margem de uma estrada deserta mas completamente familiar. É isso! Foi por me ser tão familiar este local que não exitei em estacionar quando...

A memória parece reviver agora com mais intensidade e sou capaz de desvendar mais uma parte deste tenebroso enigma.

O carro!

O carro começou...

O motor...

Meu Deus o que eu fiz? Devia ter voltado à velha fazenda quando percebi o defeito no funcionamento do Ford. Jamais poderia ter sido tão displicente a ponto de estacionar no acostamento desta estrada isolada e cercada por... Oh não! Oh, Deus! Cercada por campos que se perdem no horizonte ou margeiam bosques insondáveis de onde saltam, às narrativas dos povos da região, toda sorte de suspeitas escabrosas e crenças aberrantes. As histórias, as malditas histórias! Ignorei-as todas mesmo sabendo, desde menino, do horrível fundamento que possuíam! Desconsiderei sumariamente os relatos dos que vivem por aqui a respeito de certa maldição. Alcunhei-os, todos, de um bando de ignorantes supersticiosos que buscavam apenas degradar o bom nome de minha família espalhando rumores sobrenaturais a respeito de meus antepassados. Malditos interioranos que se punham a espalhar que meus parentes de gerações passadas andavam a atacar pessoas nas noites enluaradas metamorfoseados em abominações selvagens indescritíveis. Ao inferno esta turba de detratores! Gritara eu, mesmo sabendo da terrível verdade!

Recordo tudo agora! Lembro da festa que me trouxe de volta à casa de meus pais para findar o mês; o mês das comemorações em torno do trigésimo terceiro aniversário de meu irmão, Virgílio, o mais moço dos sete homens aos quais minha mãe mostrara, pela primeira vez, a luz deste planeta.

Virgílio, amado e malfadado irmão que o inferno condenou a carregar o terrível fardo resultante das bruxarias satânicas daqueles nossos hediondos ancestrais. Por que fui tão desrespeitoso e cético ante o fato de que se aproximava a hora do amaldiçoado sétimo? Por que não levei em conta seu estranho comportamento durante os últimos dias? Logo eu que, quando jovem, fui tão adepto quanto ele o era agora de crenças em coisas estranhas e de leituras de materiais proibidos pela sociedade. Logo eu que lia Ovídio com a atenção redobrada aos detalhes mais mórbidos e folheava, hipnotizado, os estudos bizarros do padre Baring-Gould!(1).

Certa noite, depois do jantar, meu irmão simplesmente desapareceu. Todos os amigos e parentes convidados a casa para as extensas festividades que eram costume da família se puseram a procurá-lo desde as instalações até os ermos do campo e penetrando pelos bosques até o velho lago no centro do pântano que cerca a fazenda. Nada encontramos ali e em lugar nenhum! Nada se ouviu ou se viu até a manhã do dia seguinte quando ele mesmo, Virgílio, reapareceu com as roupas em farrapos e coberto de detritos animais, dizendo que passara a noite no celeiro dos Mackenzie por que algo martelara em sua cabeça que ali era o melhor lugar para passar aquela noite. Estava faminto e abatido, e ao sentar-se à mesa do café consumiu tudo o que encontrou com uma voracidade jamais vista em sua pessoa. Na hora, creio que ninguém mais percebeu, vi as manchas em suas mãos; manchas vermelhas que ele tentara apagar com água mas que eram fortes demais para desaparecerem facilmente. Depois, mais tarde, correu o boato de que nossos vizinhos haviam chamado a polícia por causa de alguns novilhos mortos que encontraram em seus pastos.

Na noite deste dia não me foi possível dormir. Virgílio insistiu em ficar comigo em meu quarto e falou o tempo inteiro sobre suas antigas e novas leituras. Estava tão magro que, às vezes, eu tinha a impressão de que os ossos de seu rosto estavam a ponto de perfurar a carne e saltar para fora. Com efeito, davam a impressão de que se mexiam sozinhos, tão protuberantes se haviam tornado.

Pelas três da manhã, de repente, se ergueu do chão onde estivera sentado sobre umas almofadas e, sem dizer mais nada, saiu. Eu o segui. De longe vi quando ele, com movimentos tão sutis quanto os de um gato, abriu silenciosamente a porta da sala e saiu para o quintal. Foi direto postar-se próximo à cerca que separava a pocilga. Ali parou e ficou a fitar os animais adormecidos. Eu me fixei junto a um grupo de árvores e me ocultei nas sombras para ver o que ele faria. Com um salto extraordinário meu irmão passou para o lado de dentro da pocilga e pude ouvir que alguns animais emitiram ruídos desaprovadores ao intruso. Depois se iniciou uma correria no interior da cerca. Resolvi subir na árvore para ver melhor. Meu irmão estava a correr com os porcos, completamente nu. Não os machucava, apenas os instigava e corria com eles, como numa brincadeira. E se jogava na lama com um sorriso estranho no rosto. Depois, de repente, parou como que a sentir algo no vento. Foi então que se virou na direção do grupo de árvores em que eu me escondera e ficou a observar por muito tempo. Era como se soubesse que eu estava ali.

De alguma forma, não lembro como, o perdi de vista. Ao olhar para a pocilga mal iluminada avistei somente os animais agitados e insones. Foi um tênue movimento logo abaixo de meus pés que me fez desviar a atenção. Olhei na direção do ruído e lá estava ele, Virgílio, subindo velozmente pelo caule da árvore em que eu estava. Ainda trazia no rosto um riso sardônico. Instintivamente senti que devia me afastar dele o quanto fosse possível. Me falava fundo no peito um estranho sentimento de ameaça iminente que me fez galgar galhos mais altos em busca de uma segurança que se fazia urgente naquele momento. Mas não me foi possível escapar à aproximação veloz de meu irmão. Com três ou quatro passadas vigorosas ele estava aos meus pés e, com mais um pouco, posicionou seu rosto enlameado bem em frente ao meu. “A noite está tão fria, meu irmão”. Disse ele “Não temes contrair algo de ruim expondo-se assim à noite? Que fazes aqui? Me espiona?”.

Eu apenas limitei-me a olhá-lo. Não tinha palavras para lhe responder. Minha garganta estava tão seca que meus lábios pareciam ter colado um no outro. Sentia pontadas de dor de cabeça se iniciando na base de meu crânio. Não havia como eu pudesse negar que meu irmão estava diferente, comportando-se anormalmente. Não havia como negar ou não lembrar de tudo que crescêramos ouvindo, as velhas histórias de nossos antepassados. E não havia como ignorar mais as leituras que eu mesmo havia feito a cerca do assunto.

Calado eu via o seu rosto a menos de um metro do meu próprio. Podia ouvir sua respiração ofegante e vigorosa e sentia seu hálito anormal que rescendia a carne crua ou Deus sabe mais o quê. Ele também se calou a me fitar nos olhos, depois, para meu espanto, simplesmente largou as mãos dos galhos onde se segurava e deixou-se desabar ao solo onde caiu em pé e logo correu desaparecendo nos campos escuros.





IV


Fiquei ainda muito tempo sem ter coragem de descer de onde estava. Para mim, havia algo indescritível escondido em algum lugar esperando que eu colocasse os pés no chão para então me agarrar e acabar com minha vida. Somente pouco antes do amanhecer é que respirei fundo e, encorajado pelos primeiros raios da aurora, deixei meu falho abrigo na árvore.

Além de tudo o que ocorrera na terrível noite, me incomodava o fato de que os disparates que eu ouvira das bocas dos locais durante os vinte e cinco dias que me retive na região eram verdades que não mais podiam ser negadas. Eu sabia que isso um dia iria acontecer, desde sempre nossos pais nos alertaram para as possibilidades insólitas de nosso futuro e, principalmente, do futuro de Virgílio. Minhas violentas negativas aos comentários do povo eram apenas manifestações de meu orgulho e de minha vergonha. Neste momento, no entanto, ainda não se haviam iniciado os comentários sobre avistamentos noturnos, perseguições e desaparecimentos de animais e até mesmo pessoas. Isso só veio a ocorrer cinco dias depois.

O desconforto velado que vinha se apossando de todos na fazenda só tornou-se ainda mais opressivo quando um dos convidados de minha família, o padre Lehrmann, apressadamente arrumou suas malas e partiu sem muitas explicações. Falou, apenas a mim, que algo viera a sua janela durante a noite e lhe dissera coisas terríveis sobre a sua religião aconselhando-o depois a partir imediatamente. Aos demais inventou que recebera um comunicado de que era aguardado para ter com o bispo urgentemente. Antes de entrar em seu veículo, no entanto, puxou-me pelo braço e fez sua boca encostar-se a meu ouvido. “A criatura que veio a minha janela, pelo lado de fora, era apenas uma sombra e jamais eu poderia dizer como seria sua forma física, no entanto sei que era seu irmão, este menino que faz aniversário. Cuide dele! Algo está para acontecer aqui!”

Dois dias depois, ao café da manhã, o criado responsável por recolher o gado no pasto, entrou correndo na cozinha. Estávamos todos reunidos, inclusive Virgílio, que eu andara observando atentamente e percebera que não tocava mais em nenhuma refeição servida na casa.

“A estrada está cheia de carros de polícia, patrão.” Disse o empregado.

Meu pai ergueu-se de um salto e correu ao pasto com o funcionário assustado. Minha mãe então se retirou rapidamente e foi para seu quarto. Permanecemos à mesa eu, meus outros irmãos e mais alguns convidados como o professor Albertus Morgan, o enfermeiro Joshua e a tia Rosaleen. De repente, Gilliam, meu irmão mais velho, sentou-se ao lado de Virgílio e ao meu. Ele passou um braço pelo pescoço do outro e puxou-o para bem próximo de si. Meu coração disparou na hora e um tremor incontrolável se apossou de mim. Gilliam era um homem radical e irredutível.

Ouvi quando ele sussurrou ao ouvido de Virgílio:

“O que você anda escondendo, menino? O que anda fazendo por aí de noite? Será que terei que matá-lo antes que você resolva parar com tudo isso e se portar de forma aceitável nesta família?”

De onde eu estava podia ver a pressão que as mãos de Gilliam exerciam no pescoço e nos ombros de Virgílio que, por sua vez, estampara no semblante um ar de desafio mortal. Com um impulso violento ele se ergueu e correu para o andar de cima. Depois Gilliam pediu desculpas aos convidados e me chamou a um canto.

“Vou-me embora!” Disse ele. “Não agüentarei estar aqui quando tudo se consumar. Os outros também querem ir comigo. Mamãe está enlouquecendo em silêncio. Você não vê ou não aceita o que está acontecendo? Está louco em ignorar a verdade!”

“E vai deixá-lo assim a mercê dos acontecimentos?” Repliquei eu. “O que mais posso fazer? Este é um mal para o qual só há um remédio e você o conhece muito bem! Quando chegar a hora a própria comunidade se encarregará de seu destino, creio eu!”

"Não acredito que queira isso para seu irmão!" Eu disse, mas ele não mais me ouviu; já me dera as costas e já partira para seu quarto arrumar sua bagagem de mão.

Fiquei na cozinha junto a outros amigos e conhecidos da família. O som dos talheres chocando-se contra a porcelana dos pratos e xícaras ressonava em meus ouvidos como as agulhas agudas de algum costureiro louco a agredir, a espetar meus tímpanos. Tinha um brutal aperto no coração e um suor nervoso começara a escorrer do alto de minha testa.

Saí para o quintal e ao longe, na estrada, vi os homens da polícia. Estavam acomodando em uma das viaturas maiores um saco de plástico preto. Corri ao seu encontro e vi meu pai e o funcionário parados próximo a cerca que demarcava a propriedade. Estava com eles, conversando pelo lado da estrada, um homem de roupas marrom.

“Assassinaram o velho Mackenzie, filho.” Disse meu pai quando finalmente os alcancei.

“Mas, como? Quem poderia ter feito isso?” Perguntei me dirigindo ao homem do lado de fora de nossa cerca, obviamente um oficial de polícia. É claro que, àquela altura dos acontecimentos, eu já sabia perfeitamente o que ocorrera. Mas as palavras do homem de marrom foram ainda como golpes certeiros em meu orgulho e em meu espírito.

“Ora, não se preocupe que tenhamos agora algum maníaco rondando por aí” Começou ele e, na medida em que falava, senti meus pelos se eriçarem ao longo de meu corpo.

“O assassino não foi nenhum homem, se quer saber. Antes se parece mais com algum tigre que tenha fugido de algum circo. Um leão talvez!”

“Como pode supor isso?” Perguntei eu.

“Ora, filho! Não viu a facilidade com que os homens ergueram o cadáver? Não restou muito dele para fazer peso. Em fim, nada que um homem pudesse causar.”

“E costumam haver ataques de animais por aqui regularmente?” Perguntei novamente temendo a resposta.

“Bem, você agora levantou uma boa questão! Sabe que nos últimos dias o povo tem nos reportado casos estranhos demais? Não que outros velhos tenham aparecido por aí devorados desse jeito mas... Recentemente muitos fazendeiros perderam animais de criação para uma fera que anda rondando as propriedades. Estamos suspeitando da fuga de algum animal selvagem daquele circo novo que chegou em Woodshire. Inclusive neste momento temos viaturas a caminho de lá para algumas perguntinhas aos proprietários afinal, desta vez, não foi nenhum porco fedido que o filho da mãe estripou, não é mesmo?”

Deste momento em diante eu mesmo não pude mais dizer ou fazer nada. O aniversário de Virgílio seria dali a dois dias e os preparativos estavam mais que encaminhados. Ele, por sua vez, encontrava-se cada vez mais distante e estranho. Tinha mudanças de humor e febres súbitas. Sentia dores lancinantes na cabeça e freqüentemente estava desaparecendo sob o pretexto de que precisava ficar só para pensar. Em seu quarto minha pobre mãe apenas chorava o dia inteiro enquanto os boatos e comentários se espalhavam pelas propriedades, entre os funcionários e os patrões das fazendas vizinhas. Para os de fora eu insistia em negar qualquer forma de maldição sobrenatural e, mais de uma vez, entrei em conflitos duros e perigosos com homens rudes do campo. Meu pai limitava-se ao trabalho da fazenda e evitava sumariamente qualquer conversa sobre o assunto.

Na tarde do dia anterior à festa muitos funcionários haviam pedido demissão e quatro de meus irmãos haviam partido. Os convidados de meus pais que permaneceram na sede de nossa fazenda apresentavam-se visivelmente irrequietos e pesarosos. Não havia nenhum clima favorável a comemorações, mas, por insistência de minha mãe, manteve-se o plano original.

Virgílio andava a esquivar-se pela casa durante o dia e desaparecia durante a madrugada. Vivia envolto em silêncio e fisicamente aparentava extremo cansaço apesar de que seus movimentos estavam cada vez mais ágeis e imperceptíveis. Nada se podia falar sobre ele dentro da casa pois a tudo ele ouvia não importando onde estivesse. Bastava pronunciar seu nome, mesmo aos sussurros, para que ele não demorasse a aparecer no local espreitando de algum canto de porta e detrás de algum móvel. Andava sujo e malcheiroso. Para os convidados, poupados a todo custo por meu pai de ouvirem os comentários do povo local, o aniversariante simplesmente enlouquecera. Tenho certeza, no entanto, que eles também sabiam das suspeitas que se erguiam contra meu irmão e, por extensão, a toda a nossa família. Ao checar os aposentos de alguns deles durante a madrugada pude constatar que dormiam de portas trancadas.

Em meu quarto eu deitara cedo aquela noite mas uma inquietação terrível se apossara de mim e não consegui dormir. Levantei-me e peguei um volume que retirara da biblioteca de meu pai naquela tarde. Era o “Lunis Daemonium” do ocultista medieval Moranus Malgred que trazia em seu preâmbulo o sermão do doutor em teologia Johan Keisersperg proferido em uma série de cultos religiosos em torno de Estrasburgo por volta de 1517:

“O que devemos falar sobre lobisomens? Já que existem lobisomens vagando pelas vilas, devorando homens e crianças. Conforme dizem (...) eles galopam, ferindo homens e são chamados de ber-wölff ou wer-wölff. Vocês perguntarão se sei algo sobre eles? Responderei que sim (...) Aparentemente capturam homens e crianças (...) Por sete razões:

1. Esuriem = Fome


2. Rabiem = Selvageria


3. Senectutem = Velhice


4. Experientiam = Experiência


5. Insaniem = Loucura


6. Diabolum = O diabo


7. Deum = Deus”

A esta altura de minha leitura ouvi como que tênues arranhadelas na vidraça de minha janela. Voltei a atenção para o local mas nada logrei avistar a não ser a escuridão da noite que parecia querer insinuar-se quarto a dentro. Baixei novamente a cabeça para ler mas o som de um baque violento no vidro novamente me levou a fita-lo. Desta feita avistei um vulto postado em pé do lado de fora. Era de grande estatura e tinha a cabeça e o tronco encurvados e ofegantes. De repente vi uma mão enorme recostar-se à vidraça. Sua palma amarelada sangrava perfurada por pequenas pedras e pedaços de madeira do solo da fazenda. Era a mão de quem andara de cabeça para baixo ou de quatro. Ao tocar a superfície fechada deixou-lhe uma imensa mancha de sangue e suor. No mesmo instante não tive dúvidas de que se tratasse de Virgílio e levantei-me da cama com cuidado para aproximar-me da fenda escura que era minha janela. Abri a peça cautelosamente e perscrutei as trevas no quintal. Aos poucos minha visão se acostumou à falta de luz e pude divisar uma sombra parada sob as árvores logo em frente ao meu quarto. Ofegava e rosnava aquela sombra, e vez em quando, passava as mãos no caule de uma das árvores arrancando-lhe pedaços da casca. Era mesmo Virgílio mas suas roupas estavam abertas pois seu abdôme crescera a ponto de escapar para o lado de fora arrebentando os botões da camisa e o zíper da calça. Também seus sapatos se haviam rompido devido ao inchaço de seus pés. Com uma voz que apenas lembrava a sua ele me falou pela última vez:

“Estás me vendo assim, irmão? Eu não te falei? Eu não te falei mil vezes que não agredisse com tuas palavras de ódio o povo simples daqui? Pois eles agora serão meu gado. Terão aquilo que tanto aguardavam desde a ultima vez, a mais de cinquenta anos, quando o ultimo membro da geração passada foi caçado e morto aqui mesmo nestas florestas. E tu, vai embora amanhã, para o teu próprio bem; pois a besta, quando irrompe, não reconhece nada!”

Transido de horror apressei-me a fechar e trancar a janela. Depois olhei novamente para as árvores mas não havia mais nada lá além do vento soturno da noite fria de Agosto agitando os galhos mais altos. No dia do aniversário de Virgílio instalara-se um tal clima de tensão em nossa propriedade que, de manhã bem cedo, fomos obrigados a assistir consternados a partida de mais três convidados: O professor Anton, a enfermeira Olga e o pianista que animaria a comemoração, Sir Arthur Preston. Ainda assim, estando minha mãe resoluta e irredutível, a festa teria lugar àquela noite.

Por volta das cinco da tarde ninguém imaginava qual seria o paradeiro de meu irmão. Edmondo, o segundo filho de meus pais, veio ter comigo em meu quarto. Ele sentou na cama, respirou fundo e começou a falar mas não sem antes observar como eu mesmo estava abatido e com uma aparência terrivelmente desolada. Disse ele, a respeito do que ocorrera na casa do fazendeiro Ethan Moses, na propriedade a cinco quilômetros da nossa.

“Era duas da manhã quando os cães começaram a latir desesperadamente no quintal. Eles sempre são os primeiros a detectar espíritos diabólicos rondando nas proximidades. Depois ouviu-se o grito alucinado da filha do casal. Todos acorreram imediatamente ao terceiro andar e levavam rifles potentes consigo. Estava no interior do quarto da jovem um monstro terrificante. Tinha garras, Bernard, e tinha presas; no entanto, o seu rosto era o de nosso irmão Virgílio. E andava em pé como qualquer um de nós. Tiros foram disparados mas as balas não pareceram fazer qualquer efeito sobre a fera que saltou para fora do quarto pela mesma janela por onde entrara. Lá embaixo, acossada pelos cães de caça, estraçalhou-os como bonecos e desapareceu na noite. Os homens deram-lhe caça até o amanhecer mas nada mais viram ou ouviram. No entanto, todos já estão falando de nossa família e de como somos “maus e estranhos”. Eu não agüentarei mais isso! Estou partindo agora e te aconselho a ir também. Esta festa transformou-se numa horrenda viagem aos abismos. Nossa mãe está louca, nosso pai me parece estar tomando o mesmo caminho e os poucos convidados que restam se retirarão ainda esta tarde. Ninguém tem mais coragem de permanecer aqui à noite.”

Ergui-me da cama e deixei meu irmão a falar com as paredes. Que se fosse também! Corri ao quarto de meus pais e encontrei minha mãe atirada à cama como uma moribunda terminal.

“Mãe!” Chamei. “Isso tem que parar, mãe! Ela pareceu não me ouvir ou simplesmente me ignorar ao que fui direto até a cama e a sacudi pelos braços finos e pálidos. “Temos que aprisioná-lo, mãe. Em nome de Deus!”. Ela então me lançou um olhar de fúria tão intenso que fez meu coração congelar.

“Você quer matá-lo?” Perguntou ela com uma vozinha débil de doente. “Quer matar seu próprio sangue?” Gritou desesperada. “Vá embora daqui, seu monstro!” E sua voz trazia agora tamanha angústia e ódio que a única coisa que me vi em condições de fazer foi me retirar e entregar todos ali a própria sorte. Retornei a meu quarto e de lá ouvi o barulho do motor do veículo de meu irmão se afastando da fazenda. Não havia outros transportes mais além do meu e, antes das seis e trinta, ele também partia passando pelo portão principal que permaneceu escancarado atrás de mim. Ainda pude ver meu velho pai entrando na casa deserta já envolta nas sombras noturnas e fechando a porta atrás de si. Com todo meu coração desejei que ele a tivesse trancado bem e que mantivesse, doravante, uma arma sempre ao seu alcance.

Foi a pouco menos de dez quilômetros da fazenda que senti, entre arrepios e náusea, o motor do automóvel morrer sem nenhuma explicação.

Estacionei no acostamento escuro e abri o capô. As últimas coisas que fui capaz de notar conscientemente foi o ruído do vento fustigando as árvores mais próximas e a maneira criminosa como os fios das conexões mais vitais do motor do carro haviam sido roídos por dentes afiados.



V

Então a profecia que nos assombrava na infância, cujo conhecimento eu banira para um lugar remoto e esquecido de meu subconsciente, se cumprira e cá estou eu, agora, neste descampado, a mercê de algo que não mais fazia parte de minhas memórias desde que deixei o campo e voltei-me para a vida urbana como um ordinário e alquebrado professor de matemática.

É esta a coisa que agora está às minhas voltas, no escuro, rondando-me como o leão ronda a zebra na savana. Ouço seus passos abafados pela lama, sua respiração ofegante e ansiosa, e o reconheço, muito embora suas feições já não sejam mais, nem de longe, as de meu triste irmão; e sei que, lá atrás, nos confins deste terreno abandonado, violentas vontades se contêm a espera de uma ordem para atacar. São os seus iguais, os seus companheiros-parentes de maldição, todo aquele sétimo filho de cada geração de nossa amaldiçoada família e também todas aquelas vítimas que tiveram a desventura de cruzar-lhes o caminho em alguma noite escura; em algum lugar solitário. Como ele, estavam todos condenados a vagar transmutados pelo mundo dos vivos assistindo o declínio dos seus e da própria humanidade.

Deus me perdoe, pois agora sei que eu próprio me tornei uma vítima dentre tantas deste terrível animal que se aproxima; aquele cujas presas trazem ainda resquícios de minhas vestes arrancadas durante o primeiro ataque na beira da estrada. Correm com ele duas bestas iguais em ferocidade e porte; três monstros uivadores galopando de quatro pela noite do campo e sob o testemunho das estrelas frias que do espaço parecem emitir para mim um último sorriso sarcástico. Tento fechar os olhos mas descubro que não mais enxergo com a visão do corpo e só o que posso fazer é limitar-me a assistir as terríveis hordas começando também a avançar em minha direção para me dilacerar como quiserem; e esperar pelo momento terrível em que eu mesmo me erguerei como uma delas para engrossar ainda mais as tenebrosas fileiras dos exércitos infernais.

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(1) Sabine Baring-Gould (1834 – 1924): Cavaleiro e padre da paróquia de Lewtrenchard, West Devon, Inglaterra. Escreveu “O livro dos lobisomens” no final do século XIX, um dos mais importantes estudos sobre licantropia e zoomorfismo de todos os tempos.

7.12.09

MALAGHANI - Henry Evaristo

MALAGHANI*

Henry Evaristo

http://www.akg-images.com/akg_couk/_customer/london/images/en/gallery/literature/fairy/akg3-S3001-H5.jpg

É nas fossas miasmáticas, perdidas nas noites dos meus sonhos,
que encontro Malaghani.

Maviosa Malaghani dos mil encantos! Tuas curvas são como as ondas que se espraiam ao luar!

Pois nessa vida natureza não há que não se curve ao arrepio de te ver chegando por entre os bosques, à noite!

E como do vil demônio se me atingisse o açoite, me quedo alquebrado e imóvel; incapaz de falar.

Oh Malaghani, não me olhe assim com estes dois universos aziagos que são teus olhos estranhos. Ai, que eles não me deixam mais sentir os perfumes do mundo. E não me beije com essa boca asquerosa quando o que prometeste foi que apenas destilaria seus mais suaves néctares para mim!

Estou perdido, Malaghani! Não tenho mais nenhum discernimento, pois agora digo horrível ao que em verdade é belo, e te julgo a mais celestial das criaturas!

Então vem, minha jóia, e me abraça com estas tuas mãos que a terra já viu.


E me leva para onde os mortos repastam!
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* - Inspirado em imagem proposta por Tânia Souza no fórum da Câmara dos Tormentos

5.12.09

O ABISMO E A LUA - Henry Evaristo



Na mais profunda noite dos meus tormentos me pesavam na mente a confusão e a melancolia.

O retiro e o silêncio pareciam convidar-me a um selvagem oblívio do qual me sentia presa inexorável.
E abandonei-me a um torpor irresistível onde me assolou um pesadelo execrável.

À beira de um negro abismo me prostrei,
E por sobre meu corpo vi adejar uma coluna de terríveis criaturas.

Perdido estava neste mundo louco,

E insano eu era nestas terras escuras.

O horror mais profundo eu vi colear por entre brumas e morros; e violentas sombras ouvi gritar de algum lugar no horizonte doente.

E vi a lua vermelha aspergindo seu veneno morfético por entre nuvens escuras como se disparasse uma miríade de raios em direção à decrépita terra que me abrigava. E aquela lua, como um olho vazado, se assemelhava ao olho do próprio senhor do Caos que a tudo vigiasse.
Vi horrendos seres descerem da lua e correrem pelos campos ao anoitecer; pareceram-me pequenos diabos a saltitar pela herdade dos homens. Oh, e como seus gritos causavam-me agonias extremas!

Da borda do abismo vi então emergirem seis bestas majestosas cada uma cavalgada por uma coisa-lobo com armas, brasões e escudos. E em cada peça, de ouro e diamantes, estava impressa a palavra IRA.

As bestas e seus montadores, junto com a coluna de feras aladas, deram então combate aos diabos da lua e o ar foi tomado por miasmas indescritíveis!

Enlouquecido pelas visões daquele mundo demente perdi os sentidos e caí pela borda do titânico abismo negro.
E nunca mais ser mortal algum logrou avistar-me entre os vivos, pois aqui estou e estarei cativo eternamente nestas trevas tártaras; nestas plagas profanas onde o Aqueronte escorre suas águas espessas tal qual pústula infecta. Eu, o caçador do insólito, preso nas chamas do horror onírico que tanto persegui.

À beira de um negro abismo me prostrei,
E por sobre meu corpo vi adejar uma coluna de terríveis criaturas.
Perdido estava neste mundo louco,
E insano eu era nestas terras escuras.



29.11.09

A AMADA MARIANA - Henry Evaristo

Publiquei este conto no site Recanto das Letras como parte de um "experimento". Era para ser algo rápido e descartavel; mas algumas pessoas acabaram gostando e de vez em quando me pedem para publicar aqui na CT já que meu acervo no RL já não mais se encontra disponível. Bem, aí está, então, o conto com outro título. Não me perguntem qual era o título original por que simplesmente esqueci, rssrsr. Boa leitura!

http://www.wunderground.com/data/wximagenew/h/Hockley/0.jpg

A AMADA MARIANA


Henry Evaristo

Sem dúvida Gabriel a amava. Agora mais do que nunca, vendo-a daquele jeito entregue à sua mercê, ele podia sentir todo o seu corpo se modificando, se alterando para poder estar com ela. Mais do que isso, ele podia sentir toda a força do amor que vagava pelos recantos mais ínfimos de sua alma.

Sim, a amava. E amaria para sempre. Jamais sairia do seu lado. Jamais a abandonaria naquele lugar tão distante e solitário para onde se mudara pois ambos pertenciam um ao outro. A essência de ambos era uma só e era somente um universo que os abrigava.

Gabriel então a tomou em seus braços pois não podia suportar nem mesmo a diminuta distancia que os separava. Queria fazer parte dela assim como sua própria pele. Queria desesperadamente misturar-se ao seu corpo; Sentir e explorar seu interior; Estar dentro dela como estivera em tantas e tantas vezes nas madrugadas feéricas da cidade.

Com ânsia e sofreguidão, ele mergulhou no seu mais louco devaneio e pôde sentir todo o seu ser gritando com um prazer que lhe era até então desconhecido. Uma força que nem mesmo em seus mais avassaladores momentos jamais havia conhecido. Como podia amar daquela forma? Como podia sentir tal coisa? O que havia mudado tanto no decorrer das últimas três semanas quando pela primera vez se haviam separado? Eram respostas que sua mente procurava, mesmo a despeito de todo o prazer que sentia ao penetrar fundo em seu amor maior. Com ela, a doce Mariana, naquele momento ele sentia-se pairar para outras esferas; alcançar outros universos. Ele e ela eram luz, eram atmosfera! E se lambuzavam por completo nos fluidos daquele mundo até ali inexplorado.

Não era capaz de compreender o que se passava. Estava a fazer amor com a mesma pessoa de tantas e tantas vezes; no entanto, a sensação que experimentava era tão diferente... Tão melhor... Tão devastadora que não podia mais conter seu próprio corpo. A força vinha de suas entranhas e parecia explodir em seu cérebro. No momento do clímax, não lhe foi possível conter o grito.

Mas não podia gritar. Não devia. Em algum lugar em seu subconsciente possuía uma vaga noção de que o que fazia ali estava errado; terrivelmente errado.

E foi antes que pudesse se vestir que avistou os focos das lanternas avançando pela escuridão. Estava fraco, cambaleante. O orgasmo o havia esmaecido e exaurido como jamais o fizera. Não teve forças para saltar para fora da cova onde haviam enterrado Mariana, sua noiva, há três semanas. Foi onde os homens o encontraram, chorando, tentando subir de volta e caindo sobre o cadáver putrefato e avermelhado que desenterrara.

Não foi preciso muito esforço para descobrir onde ele estava; perdido na escuridão do cemitério. O mal-cheiro que se espalhara marcara sua localização em meio às lápides.

Foi levado completamente louco ao sanatório municipal e dizem que quem dele se aproxima, ainda hoje, pode sentir o cheiro de carne podre que seu suor exala.

26.11.09

VAGANDO PELOS CAMPOS DEVASTADOS - Paulo Soriano

Paulo Soriano retorna à Câmara com mais um conto cruel e poderoso. Boa leitura!



VAGANDO PELOS CAMPOS DEVASTADOS


Paulo Soriano

Vagar pelos campos devastados pela fome, esmolando aqui e furtando acolá, é tudo o que me resta. Houve um tempo em que me eram bem-vindas a sedução e a beleza quase asfixiantes dos vales lindeiros ao Minho. Hoje, já não me comovem os meandros do belo rio. Como sempre, ele cumpre, pachorrentamente, a sua sina, quase silencioso e sempre muito mais traiçoeiro que profundo. Mas ainda me banho em suas borbulhas e afogo a minha sede na frescura de suas águas.

Há uma senda que serpenteia da cidade de Ourense à vila dos Coutos, margeando o rio como se fora uma sombra sórdida. Nestes tempos de muita fome, a vereda é quase deserta; mesmo assim, é caminho obrigatório para os que finalmente capitulam e abandonam os campos mirrados, escoando como regatos em busca do mar e das caravelas do Novo Mundo. É em sendas como esta que os vagabundos de minha espécie, que sobreviveram à peste e ao abandono, perambulam, lançando mão da sagacidade ou da lascívia para colher migalhas dos emigrantes.

Antes de morrer, vergada à fúria da peste, que vitimara meu pai e meus irmãos, minha mãe me dissera:

- Não passas de uma garota. Protege-te bem. Bem difíceis emergem os tempos que virão. És livre para esmolar e furtar. Mas não mates. E nem faças de teu corpo serventia de mancebos obscenos. Que em tua bolsa não tilinte moeda de fornicação. Toma em tua mão o que te servirá de escudo. Não deixa de ser uma espécie de amuleto eficaz. E, se procederes conforme minhas instruções, estarás de todo e para sempre protegida em tua honra.

Eu escondera as minhas roupas sob o peso duns pequenos seixos, removidos dentre as raízes de um velho álamo, quase à margem da vereda. Mas, ao retornar, depois de um demorado mergulho, notei que minhas vestes haviam desaparecido. Quem as furtara - soube pouco depois - fora um rapazote quase imberbe - feio e maltrapilho-, mas armado de adaga. Ele agora admirava, com enorme curiosidade e maior ainda excitação, o meu formoso corpo, completamente molhado e nu.

- Dá-me de volta as minhas roupas! – gritei.

O rapaz fez pouco caso de mim. Sorria-me como um néscio, mas havia volúpia em seus olhos de raposa.

- Dá-me logo de volta! – insisti, exasperada, agachando-me e escondendo os seios com os braços dispostos em cruz de Santo André.

- Sim! – disse-me o rapaz. - Dou-te sim. Mas, tudo tem um preço... Quero-te. Abre-me as pernas.

O rapaz sorriu uma fileira de dentes brancos e irregulares, resfolegando de lascívia.

- Tira logo a tua roupa, rapaz – disse-lhe finalmente, estirando-me de costas na grama e abrindo bem as pernas. Naquele momento, não houve como impedir o assédio angustiante da imagem de minha mãe moribunda.

O jovem avançou sobre mim, pondo abaixo os calções com a ansiedade de um lunático, e prestes a ejacular. Penetrou-me como um raio e, imediatamente, estremeceu. Quando, arquejante, abriu os olhos, consultando feliz o instrumento de seu sucesso, viu que todo o púbis estava encharcado de sangue. Perguntou-me, então:

- Estás naqueles dias?

- Não, não estou.

- Então, donde vem tanto sangue?

- De tuas veias, evidentemente.

Quando o jovem verificou que tinha o pênis mutilado, urrou como um animal ensandecido. Cessada a excitação, somente agora experimentava a dimensão da dor dilacerante.

- O que tu fizeste comigo? – gritou o jovem imberbe. – Que fizeste comigo, ó puta dos demônios?!

Não respondi, deixando o rapaz embeber-se de sangue e pânico. Nas águas do Minho, limpei cuidadosamente o fragmento de lâmina de navalha, antes de acomodá-lo, novamente, na abertura de minha vagina.

Vagar pelos campos devastados pela fome, esmolando aqui e furtando acolá, é tudo o que me resta. Além da honra imaculada de senhorinha casta...

ASSUNTO ENTERRADO - LINO FRANÇA JR.

Lino França Jr., um dos mais novos representantes da boa literatura fantástica nacional, está de volta às páginas da Câmara dos Tormetos. Boa leitura!

ASSUNTO ENTERRADO


Lino França Jr.


Fim de tarde. Nelson já tinha feito jus ao seu minguado salário daquele mês. Naquele dia em especial foram três enterros. Três covas para se abrir. Três covas para se fechar. Será que havia algum serial killer nas redondezas? Não. Era apenas coincidência. Mas justamente naquele dia, em que o sol estava inclemente, teve o trabalho de um mês inteiro. Os músculos estavam doloridos. A barriga roncava. Queria ir embora logo. A mulher, certamente, já estaria preparando alguma refeição para tapar o buraco do estomago. Mas o dia de trabalho ainda não findara.

Passou pela alameda dos endinheirados, onde os sepulcros de mármore eram cheios de frescura: querubins e santos de bronze, enfeitados com flores naturais que eram trocadas de dois em dois dias, e mais limpos do que o chão de sua própria casa.

Ao passar por um dos jazigos, onde repousava uma senhora de cabelos bastos e brancos, numa sepultura de azulejos negros que reluziam em contraste com o finzinho de sol que ainda brilhava no firmamento, Nelson ouviu aquela voz estridente às suas costas:

- Seu Nelson – chamou o homem – Por favor, Seu Nelson.

O coveiro virou-se e ameaçou um sorriso amarelo.

- Pois não, Seu Marcos. – respondeu

O atarracado homem usava um terno bege surrado. Dava a impressão que um dia o terno fora branco, mas de tão usado e mal lavado adquiriu aquela coloração amarelada. Marcos era o administrador do cemitério municipal. Quase nunca vinha até o fúnebre lugar, mas sempre que o fazia, trazia consigo alguma perturbação.

- Então, Seu Nelson, estamos com um problemão – disse o homem olhando em volta, como se procurasse alguma alma penada. – O senhor acredita que recebemos uma denúncia lá na prefeitura, de que profanaram uma das sepulturas aqui do cemitério? – disse o administrador.

Nelson franziu o cenho e não disse nada esperando que o homem continuasse.

- Recebemos a tal denúncia de forma anônima, dizendo que o corpo daquela menina que foi assassinada na semana passada, foi violado pelo próprio assassino que é envolvido nesses negócios de magia negra, e pra concluir a tal da magia, precisava do corpo da defunta de novo – finalizou o homem balançando a cabeça negativamente, em sinal de reprovação.

- Não é possível, Seu Marcos. Eu ando por todo o cemitério o dia inteiro e se houvesse alguma coisa estranha, e o senhor pode ter certeza que um corpo desenterrado é algo muito estranho pra mim, eu teria notado.

- Eu imagino, mas sabe como é, Seu Nelson, são ossos do ofício – disse o homem colocando a mão no ombro do coveiro. – Temos de ter certeza. É preciso checar – sentenciou, Marcos.

O coveiro arregalou os olhos querendo imaginar o que o homem queria dizer com: “É preciso checar”.

O administrador mostrou o lugar ao coveiro, como se este precisasse de instrução para localizar alguma sepultura. Nelson era mestre em enterrar defuntos, mas pela primeira vez teria de fazer o contrário. No seu íntimo, pensava que aquilo poderia lhe trazer algum mau agouro. O homem passava mais tempo dentro daquele cemitério do que na própria casa. Não havia um só jazigo que ele não soubesse a quem pertencia. Era óbvio que se houvesse ocorrido algo de anormal ali, principalmente algo tão evidente, como a violação de um dos túmulos, Nelson, certamente daria pelo acontecido. Além disso, o ofício de cavar e encher as tumbas, não era trabalho que qualquer um poderia fazer sem deixar rastro.

Entretanto, por mais absurdo que fosse a ordem dada por Marcos, ele estava ali apenas para cumprir o que lhe mandavam fazer.

Pá nas costas e má vontade para descobrir o que já sabia. A defunta estaria lá, com seu vestido branco e cercada por flores murchas e tão mortas quanto ela, descansando em seu sono eterno.
A garota não era de família abastada como as dos sepulcros que ficavam na parte alta do campo-santo. Em seu último reduto de repouso, apenas uma lápide que continha uma foto mal tirada, onde se destacavam os olhos grandes e de um azul profundo, e as datas de nascimento e morte da garota. Um vaso gasto com flores de plástico servia como adorno.

Nelson bufou e olhou uma última vez para o chefe, na esperança que este mudasse de idéia, mas de nada adiantou. Seria um trabalho árduo e sem fundamento, mas quanto mais rápido o fizesse, mas rápido poderia ir pra casa encher a pança com a gororoba da patroa.

O sol já havia se deitado, e a penumbra invadia aquele recinto de descanso. Uma tênue névoa cobria o chão. O ruído dos insetos e o coaxar dos sapos lembravam uma sombria sinfonia que servia como trilha sonora para aquela empreitada sinistra.

Bateu o instrumento no solo já endurecido. Sete palmos de terra, como o de costume. E então, começou a cavar sob o olhar penetrante do chefe, que coçava o queixo, como se apreciasse aquele momento de excitação pelo desconhecido, pelo macabro. No fundo, Marcos nutria a esperança de que aquela história fosse verdade, pois seria algo de novo e realmente importante para a pacata cidade, e principalmente para sua vida tediosa e desestimulante. A cada porção de terra vermelha que subia pelo ombro do coveiro, sua inquietação aumentava. Talvez por isso Marcos não tenha sido capaz de notar as mudanças que ocorriam em seu funcionário.

Nelson continuava a cavar mecanicamente. Ato tão natural a ele não fosse pelo presente objetivo. Depois dá terceira pá de terra tirada do sepulcro da garota assassinada, um formigamento começou a subir pelas mãos, correndo pelos braços e atingindo seu pescoço e cabeça. Os nervos do corpo do homem tremiam e suas feições sofriam alguma espécie de mutação. Esboçava um sorriso na boca de lábios finos, que mais parecia um esgar feio. Os olhos se reviravam nas órbitas e um arrepio gelado subiu pelas costas e se espalhou pelas costelas. Nelson não tinha mais controle sobre seu corpo, sobre sua mente. Nelson não era mais ele mesmo. Sua carcaça cansada servia agora de suporte para outra alma. Uma alma penada e aflita. Uma alma em busca de paz. Uma paz que só viria através de vingança.

Um som oco foi ouvido por Marcos que assistia ao homem trabalhar com eficiência incrível. Lá estava a esquife de madeira coberta por aquilo que havia sido uma coroa de flores simplória. Marcos esfregou as mãos como se estivesse à espera de um presente há muito aguardado. Um sorriso indecente marcava-lhe a face. As imagens começavam a voltar em sua mente perturbada. Primeiro a imagem da garota caminhando por uma viela erma. Depois o convite para a carona, que fora aceito ingenuamente. A confusão de imagens na cabeça de Marcos, agora adentrava ao quarto de seu apartamento fétido. A garota, de olhos azuis brilhantes, chorava copiosamente no canto do cômodo empoeirado. Seguiu-se o espancamento, o estupro, e enfim o estrangulamento, dando cabo à vida da garota.

Com as lembranças reavivadas na mente, Marcos também não se deu conta de que Nelson se afastara da cova recém aberta. A escuridão imperava nas vias estreitas e sinistras do cemitério, e Marcos não conseguiu mais enxergar o funcionário que aparentemente se evadira dali com medo da assombração da garota que teria seu sono eterno interrompido. Marcos sorriu novamente, as coisas caminhavam bem melhor do que o plano inicial traçado por ele. Colocaria novamente as mãos na pele lisa e alva da garota, e mais, tomar-lhe-ia o corpo com devassidão, e assim poderia satisfazer seus desejos macabros outra vez. Marcos pulou pra dentro da cova apoiando os pés nas laterais da catacumba. Bateu com o punho em uma das abas laterais do caixão que soltou-se produzindo um som abafado, deixando escapar uma fumaça esbranquiçada. Cada segundo que antecedia o reencontro da vítima com seu assassino, excitava ainda mais o monstro doentio. Marcos enfiou os dedos compridos por debaixo da tampa do ataúde e o puxou de uma vez. Os olhos do homem chisparam de ódio ao encontrar o vazio dentro do caixão acolchoado. Seu espanto foi ainda maior quando ouviu passos vindos de cima da cova. Olhou para cima, onde a lua cheia cintilava majestosa. Aos poucos, Marcos percebeu a imagem de Nelson que cobria o globo lunar, numa espécie de eclipse. O coveiro exibia uma expressão de fúria que contrastava com belíssimos olhos azuis e radiantes, que não pertenciam a ele, mas que foram prontamente reconhecidos pelo assassino.

A pancada seca da pá que Marcos sentiu na nuca o derrubou de imediato. O sangue quente desceu pelo pescoço, e o homem caiu perfeitamente encaixado no esquife desocupado. Seus olhos vidrados encontraram mais uma vez o azul sereno nas órbitas de Nelson, que, entretanto, brilhava de satisfação. Marcos ainda assistiu, petrificado, o coveiro fechar a tampa do caixão, além de ouvir as primeiras pás de terra deslizando por cima do ataúde.

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UM SALTO NA ESCURIDÃO - Henry Evaristo publica seu primeiro livro

O CELEIRO, de Henry Evaristo

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