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18.4.08

O SENHOR DO MEDO




O Senhor do Medo






Um conto de Jurandir Araguaia






Sempre nos visitava nas proximidades da meia-noite. Carregava, de nossa pequena e isolada vila, uma pessoa a cada seis meses. Era o suficiente para que se mantivesse vivo, conforme nos informara. Não precisava sugar todo sangue de uma vez. De forma essa que um indivíduo saudável duraria algum tempo antes de secar totalmente. Era um mito crer que os daquela estirpe podiam transformar qualquer pessoa em criatura da noite. O mais comum era hipnotizar um ou outro, fazendo com que a vítima realizasse seus desejos e atendesse aos seus caprichos. Dizia que um dia escolheria alguém para converter plenamente e substituí-lo naquela sina – havia de ser uma pessoa especial. Dizia haver uma lei: “cada morto-vivo só pode dar lugar a mais um”. A natureza devia equilibrar o caos. Afinal, se um grande número de predadores co-existir em um local, as presas podem sumir e a própria sobrevivência dos algozes terá termo. Eram mortais, como nós, mas sua extensa longevidade criou a ilusão de que eram eternos.

Apesar de nos visitar constantemente, deixando todos em alerta, não gostava de passar sustos. Misturava-se às pessoas nas ruas, saudava-as, conversava. Sua fisionomia, apesar da aparência humana, era marcante. Cabelos negros, crespos, compridos caindo pelos ombros. Olhos profundos e escuros. A pele muito clara deixava veias à mostra. Um rosto fino e queixo pontudo. Dentes brancos. Não mostrava as presas, exceto quando queria nos intimidar. Era um monstro amigo. Gostava de se mostrar jovem. Tinha poder e domínio sobre a forma que quisesse. Embora a manutenção da aparência lhe custasse muita energia – e um tanto a mais de vítimas. Se ficasse na forma pertinente, um velho, segundo contam os antigos, talvez o sangue de apenas uma vítima o mantivesse por um ou mais anos. Era um extremo sofrimento ao infeliz que lhe servia de refeição. Os pesadelos freqüentes, a sensação sempre presente da morte, o fim iminente eram torturas que a mente humana não suportava por muito tempo. Poupara o padre a nosso pedido, desde que esse prometesse não se reportar ao Papa.

As noites semestrais da entrega transformaram-se em festa. A comunidade inteira dirigia-se para a praça central. O escolhido, homem ou mulher, tinha seu nome inscrito para sempre nos livros da comunidade. Não é para menos, sua vida poupava os demais. A sobrevivência é a grande mola que move o homem.

A comunidade indicava três nomes. Deviam ser jovens e plenamente saudáveis. Daquela vez eu fui um dos indicados. As semanas que antecederam foram, para mim, de grande tortura. Se pudesse, fugiria para longe. Muitos o faziam, mas havia histórias. Contavam que o monstro mantinha diversas criaturas em alerta que o avisavam das pretensas fugas. Provavelmente ele os convertia em um lanche extra, de sorte que já houve períodos em que poupara vítimas – quem sabe tivesse eu tal ventura. Somente deixava a ilha quem autorizado fosse. Retinha o restante da família do viajante sob ameaça.

A cada vez que cruzava por mim, nas ruas, sentia-lhe dotado de uma energia estranha; uma sensação de vazio me dominava. Houve uma vez que me deparei com ele, sozinho na noite, em uma travessa. Aproximou-se lentamente. Seu rosto não se mostrava. Um capuz mantinha-o na escuridão:

- Juliano. Não é como te chamam? – sua voz soou cavernosa, mas mansa.

- Sim, respondi tremendo e suando frio.

- Já pensou em viver muito? Mais que qualquer mortal antes?

Engoli em seco aquela pergunta. Abaixei os olhos. Ele se aproximou. Fechei os olhos. Seu hálito podre alcançou-me. Quis desfalecer. Não via o seu rosto, apesar da proximidade. Duas faíscas vermelhas brilharam no que devia ser os olhos. Senti que sua boca se aproximava da minha.

- Juliano? – meu pai gritou do início da travessa. Voltei-me em um ímpeto.

- O que faz aí sozinho? – perguntou. Percebi que o monstro sumira sem que meu pai notasse.

Passei meus prováveis últimos dias me despedindo de todos, da floresta, do mar, da areia na praia. Os outros que me acompanhariam eram uma moça e um rapaz. Soube que ele urinava na cama à noite e tiveram que amarrá-lo para que não se matasse. Não sabia eu o que pensar direito. Desde que fora indicado, minha família cercou-me de cuidados. Era um tipo de lei que os indicados, na possibilidade de se despedir da vida, recebessem toda a atenção possível. Nenhuma conta ou taxa seria paga pela minha família durante mais de vinte anos. Era uma dádiva ter alguém escolhido no seio dos entes próximos.

A noite chegou. Durante o dia foi uma grande festa. Cantávamos e dançávamos até que a hora chegasse. Ele chegou voando do alto das nuvens. Realizava manobras no ar que a multidão aplaudia. Desceu no centro da Vila. Os instrumentos e o povo calaram-se. Eu e os outros estávamos perfilados. Banho tomado, longas roupas novas e aflitos. A garota parecia a mais segura. O monstro encarou cada um. Tocou em nossas faces e nos cheirou. Afastou-se. Girou sua capa e apontou o dedo em minha direção. Aproximou-se confiante. Em um ímpeto, saquei de uma estaca de madeira que escondera sob as largas e brancas vestes e que o padre havia preparado e benzido. A besta, surpreendida, recebeu minha firme estocada no coração. Soltou um horrendo grito. Agarrou-me pelos ombros, cravou-me ao pescoço suas presas, caiu ao solo contorcendo-se. Ele se esvaia em dor, um vapor saía dos poros.

- Minha maldição agora é sua! – disse antes de sumir. - Acha que não permiti que o fizesse? A herança deve ser conquistada à força. Você é digno. Seja feliz, meu filho! - Sobraram-lhe as roupas. A multidão e minha família ficaram atônitas. Alguém, em desespero, gritou:

- Vamos matá-lo! Será melhor que nos escravizarmos a outro monstro.

Muitos se lançaram em minha direção. Não sabendo a força que tinha, dei, seguindo um instinto, um salto que me lançou ao alto de uma casa próxima. A multidão parou assustada. Percebi que meus músculos tinham grande força. Minha visão um alcance incomparável. A audição afinadíssima. Sorri para a multidão e corri com grande agilidade para o castelo que herdei. Lá encontrei livros e anotações que deixara. Foram úteis. Aprendi sobre mim mesmo e minha sina. Renovei o acordo com a Vila e retorno a cada seis meses para carregar uma vítima com sangue doce e quente, um elixir que me mantém por vários meses de longa solidão...

Jurandir Araguaia

IRMANDADE DAS SOMBRAS


IRMANDADE DAS SOMBRAS PUBLICA COLETÂNEA DE CONTOS DE TERROR




A IRMANDADE DAS SOMBRAS, confraria literária que agrega diversos escritores amadores dedicados ao terror, ao horror e à fantasia, está lançando, pela Editora Câmara Brasileira de Jovens Escritores (CBJE), a sua primeira coletânea, que, em 123 páginas, reúne contos de autoria de ALEXANDRE CTHULHU, CELLY BORGES, FERNANDO FERRIC, HENRY EVARISTO, HELL, JURANDIR ARAGUAIA, LINX, MAUREN GUEDES MÜLLER, LEONARDO NUNES NUNES, LUCIANO BARRETO, OBED DE FARIA JR., PAULO SORIANO, ROGÉRIO SILVÉRIO DE FARIAS, VICTÓRIA MAGNA e WAGNER ANDREATA.


Com apresentação de HENRY EVARISTO, a antologia traça um panorama da moderna literatura fantástica nacional, reunindo 21 trabalhos de alguns dos melhores escritores brasileiros de terror, horror e ficção científica.


A organização e produção da antologia ficou a cargo de PAULO SORIANO, que mantém o “site” CONTOS GROTESCOS (http://www.contosdeterror.com.br/), dedicado à divulgação de obras fantásticas de escritores brasileiros e portugueses.

EM ALGUM LUGAR NOS ESTADOS UNIDOS


EM ALGUM LUGAR NOS ESTADOS UNIDOS


(Excerto do livro DEUSES AMERICANOS) de Neil Gaiman


Los Angeles.
23h26
Em um quarto vermelho escuro — a cor das paredes lembra fígado cru — há uma mulher vestida de forma prosaica, com um short de seda justo demais, e peitos apertados e projetados para a frente pela blusa amarela amarrada embaixo deles. Seu cabelo preto forma uma pilha alta tricotada sobre a cabeça. Em pé ao lado dela há um homem baixo que veste uma camiseta cor-de-oliva e calças jeans caras. Ele segura, na mão direita, uma carteira e um telefone celular Nokia com uma capa vermelha, branca e azul.


O quarto vermelho contém uma cama, sobre a qual há lençóis brancos de cetim e uma colcha vermelho-sangue. Ao pé da cama há uma mesinha de madeira com uma pequena estátua em pedra de uma mulher com quadris enormes segurando um castiçal.


A mulher entrega ao homem uma pequena vela vermelha.


— Aqui está — ela diz. — Acende.


— Eu?


— É. Se você quiser me possuir.


— Eu devia ter feito você só me dar uma chupada no carro.


— Talvez. Você não me quer?


A mão dela desliza pelo corpo, do quadril até o peito, um gesto de apresentação, como se estivesse demonstrando um produto novo.


Lenços de seda vermelha sobre o abajur no canto do quarto deixam a luz vermelha.


O homem a olha faminto, então pega a vela de sua mão e enfia no castiçal.


— Você tem isqueiro?


Ela lhe entrega uma carteia de fósforos. Ele arranca um fósforo, acende o pavio: a luz dá uma tremida e depois queima com uma chama firme, que confere ilusão de movimento à estátua sem rosto que está ao lado, toda quadris e peitos.


— Coloque o dinheiro atrás da estátua.


— Cinqüenta paus.


— É — ela diz. — Agora vem aqui me amar.


Ele desabotoa o jeans e tira a camiseta cor-de-oliva. Ela massageia os ombros brancos dele com seus dedos pardos; então ela o vira e começa a fazer amor com ele com as mãos, os dedos e a língua.


Para ele, parece que as luzes no quarto vermelho diminuíram, e que a única iluminação vem da vela, que queima com uma chama brilhante.


— Qual é o seu nome? — ele lhe pergunta.


— Bilquis — ela diz, levantando a cabeça. — Com Q.


— Com o quê?


— Deixa pra lá.


Ele está ofegando agora.


— Deixa eu foder você — ele diz. — Eu preciso foder você.


— Tudo bem, querido. Vamos lá. Mas você vai fazer uma coisa pra mim, enquanto a gente estiver trepando, tudo bem?


— Ei — ele diz, irritado de repente. — Eu estou pagando, sabia? Ela abre as pernas dele, com um movimento suave, sussurrando:


— Eu sei, querido, eu sei, você está me pagando, e é verdade, olhe só pra você, eu é que devia pagar, que sorte eu tenho...


Ele aperta os lábios, tentando demonstrar que a conversa da prostituta não tem nenhum efeito sobre ele, que ele não pode ser seduzido. Ela é uma puta de rua, pelo amor de Deus, ao passo que ele é praticamente um produtor, e ele conhece todos os truques para arrancar uma grana extra no último minuto, mas ela não pede dinheiro. No lugar disso, diz:


— Querido, enquanto você me comer, enquanto você enfiar aquela coisa grande e dura dentro de mim, será que você poderia me idolatrar7 — Fazer o quê?


Ela balança para a frente e para trás em cima dele: a cabeça do pênis dele cheia de sangue está se esfregando contra os lábios molhados da vulva dela.


— Você me chama de deusa? Você reza pra mim? Me idolatra com o seu corpo?


Ele sorri. Isso é tudo que ela quer? Afinal, todo mundo tem suas manias.


— Claro — ele diz.


Ela coloca a mão entre as pernas e o faz escorregar para dentro dela.


— Está bom assim, está, deusa? — ele pergunta, ofegando.


— Me idolatra, querido —, diz Bilquis, a prostituta.


— Sim — ele diz. — Eu idolatro seus peitos, seu cabelo e a sua boceta. Eu idolatro o seu quadril, os seus olhos e os seus lábios cor-de-cereja...


— Sim... — ela sussurra, cavalgando em cima dele.


— Eu idolatro os seus mamilos, por onde o leite da vida jorra. O seu beijo é mel e o seu toque queima como fogo, e eu idolatro tudo isso.


As palavras dele estão ficando mais ritmadas agora, seguindo o compasso do vaivém de seus corpos.


— Traz pra mim o seu tesão de manhã, e traz pra mim o seu alívio e a sua bênção à noite. Me deixa caminhar por lugares escuros sem que nada aconteça comigo e vir até você mais uma vez, dormir do seu lado e fazer amor com você de novo. Eu idolatro você com tudo que existe dentro de mim, e tudo que está na minha mente, com todos os lugares que eu já fui e com os meus sonhos e os meus... — ele pára, ofegante. — O que é que você está fazendo? Isso é demais. Tão demais...


E ele olha em direção aos quadris, para o lugar onde os dois viram um só, mas o dedo indicador dela toca o queixo dele e empurra sua cabeça para trás, então ele olha apenas para o rosto dela e para o teto mais uma vez.


— Continua falando, querido — ela diz. Não pára. Não está bom?


— Está melhor do que qualquer outra coisa que eu já senti — murmura para ela, de coração. — Os seus olhos são estrelas brilhando, porra, no firmamento, e os seus lábios são ondas delicadas que lambem a areia, e eu idolatro tudo isso.


E agora ele está metendo cada vez mais fundo nela: ele se sente elétrico, como se toda a parte inferior de seu corpo houvesse ganhado carga sexual: fálica, cheia de sangue, explodindo de prazer.


— Traz seu dom pra mim —, ele murmura, sem saber o que está dizendo — seu único dom de verdade, e deixa eu ficar sempre assim... Sempre tão... Eu imploro... Eu...


E, então, o prazer atinge seu ápice e se transforma em orgasmo, explodindo sua mente para o vácuo, sua cabeça e seu próprio ser num vazio, quando ele enfia mais fundo nela e mais fundo ainda...


Olhos fechados, em espasmos, ele se deleita no momento; e então sente um puxão, c se sente como se estivesse pendurado, de cabeça para baixo, apesar de o prazer continuar.


Ele abre os olhos.


O homem pensa, tentando retomar a consciência e o raciocínio, no nascimento, e pergunta a si mesmo, sem medo, em um instante de perfeita clareza pós-coito, se o que ele está vendo não é algum tipo de ilusão.


Eis o que vê:


Ele está dentro dela até o peito, e enquanto ele olha para isso com descrença e maravilha, ela está com as duas mãos sobre seus ombros e faz uma pequena pressão sobre o corpo dele.
Ele escorrega mais para dentro dela.


— Como é que você está fazendo isso comigo? — ele pergunta, ou pensa que pergunta, mas talvez seja só sua imaginação.


— Você é que está fazendo isso, querido — ela sussurra.


Ele sente os lábios da vulva dela apertados ao redor da parte superior de seu peito e de suas costas, apertando-o e o envolvendo. E fica imaginando o que aquilo pareceria a alguém que os observasse. E fica imaginando por que não está com medo. E então, ele sabe.


— Eu idolatro você com o meu corpo — ele sussurra, enquanto ela o empurra para dentro dela.
Os lábios vaginais dela se fecham melados sobre o rosto dele, e os olhos dele escorregam para dentro da escuridão.


Ela se espreguiça na cama, como um gato enorme, e então boceja.


— E — ela diz — idolatra mesmo.


O telefone Nokia toca, alto, uma melodia eletrônica de "Ode to Joy". Ela pega o aparelho, aperta uma tecla e coloca o fone no ouvido.


A barriga dela está lisa, seus lábios vaginais, pequenos e fechados. Um lustro de suor brilha na testa e no lábio superior dela.


— Sim? — ela diz.


E, após uma pausa, responde:


— Não, querida, ele não está aqui. Ele foi embora. Ela desliga o telefone antes de se deixar cair na cama do quarto vermelho escuro, então se espreguiça mais uma vez, fecha os olhos e dorme.

O ESTRANHO

A Câmara Dos Tormentos apresenta aos irmãos e amigos das sombras mais um conto clássico da literatura fantástica. Ambrose Bierce, o escritor norte-americano cujo destino ainda hoje é uma incógnita, nos brinda com todo seu talento em mais esta obra obrigatória para os amantes das letras sombrias. Boa leitura!










O ESTRANHO

Ambrose Bierce


O homem saiu da sombra para o pequeno círculo de luz de nossa fogueira e se sentou numa pedra.

– Vocês são os primeiros a explorar esta região – disse.

Ninguém retorquiu a essa declaração. A prova do que dizia era ele mesmo, que não pertencia ao nosso grupo e devia estar por perto quando acampamos. Mais: devia ter companheiros nos arredores, pois aquele não era lugar para se viver ou viajar sozinho. Por mais de uma semana só tínhamos visto, além de nós mesmos e de nossos animais, pequenos seres como lagartos e sapos de chifres. Num deserto do Arizona não se coexiste por muito tempo apenas com essas criaturas: precisa-se de ter animais de carga, suprimentos, armas – “equipamento”, enfim. E tudo isso implica camaradas. Houve dúvida quanto ao tipo de homens a que pertenceriam os camaradas desse estranho que aparecera sem cerimônia, bem como, em suas palavras, qualquer coisa tão impenetrável quanto um desafio, o que fez com que nossa meia dúzia de “aventureiros” se sentasse, com as mãos nas armas, numa atitude que significaria, dada a hora e o lugar, ostensiva expectação. O estranho não prestou atenção e começou a falar de novo no mesmo tom deliberado e monótono com que pronunciara a primeira frase:

– Trinta anos atrás Ramon Gallegos, William Shaw, George W. Kent e Berry Davis – todos de Tucon – atravessaram as montanhas Santa Catalina em direção a oeste, avançando tanto quanto a configuração do território o permitiria. Fazíamos prospecção, e nosso intuito, se não achássemos nada, era seguir até o rio Gila, num ponto próximo de Big Bend, onde supúnhamos haver um assentamento. Tínhamos um bom equipamento, mas nenhum guia – só Ramon Gallegos, William Shaw, George W. Kent e Berry Davis.

O homem repetiu os nomes devagar e com nitidez, como se para gravá-los na memória da audiência, cujos membros agora o observavam atentamente, mas com uma ligeira apreensão quanto à possibilidade de haver companheiros ocultos na treva que nos enclausurava como uma parede negra. Na atitude desse historiador voluntário não havia sugestões de qualquer propósito inamistoso. Seus modos eram mais os de um lunático inofensivo do que os de um inimigo. Nem estávamos tão desacostumados ao campo para ignorarmos que a vida solitária de muito camponês tem uma tendência a desenvolver excentricidades de conduta e de caráter que nem sempre se distinguem da aberração mental. Um homem é como uma árvore: na floresta dos seus semelhantes, ele crescerá tão reto quanto sua natureza genérica e individual o permitir. Sozinho, em lugar aberto, cederá às pressões e às torções deformadoras que o envolvem. Alguns desses pensamentos me vieram enquanto eu observava o sujeito através da sombra de meu chapéu, puxado para baixo a fim de quebrar a luz do fogo. Um pobre imbecil, sem dúvida, mas o que estaria fazendo ali, no coração do deserto?

Tendo empreendido contar esta história, gostaria de poder descrever a aparência do homem, o que seria natural. Infelizmente – ou estranhamente – não me acho em condições de fazê-lo com segurança, pois mais tarde nem sequer dois de nós concordaríamos quanto ao que ele vestia e quanto à sua aparência. E, quando tento ajuntar minhas impressões, elas me escapam. Qualquer um pode contar histórias; a narração é uma das forças elementares da raça. Mas o talento para a descrição é um dom.

Como ninguém quebrasse o silêncio, o visitante prosseguiu:

– Esta região não era o que é agora. Não havia sequer um rancho entre o Gila e o Golfo. Havia alguma caça aqui e ali nas montanhas, e perto dos raros olhos d’água havia grama suficiente para impedir que os animais morressem de fome. Se tivéssemos a boa sorte de não encontrar índios, podíamos ir passando. Mas, dentro de uma semana, o objetivo da expedição mudou da descoberta de riquezas para a preservação da vida. Tínhamos ido longe demais para podermos retornar, pois o que estivesse à frente não seria pior do que o que ficara para trás. Então continuamos, viajando à noite, para evitar os índios e o calor intolerável, e nos escondendo durante o dia, tanto quanto pudéssemos. Às vezes, depois de esgotar nossas reservas de carne selvagem e de esvaziar nossos cantis, passávamos dias sem comida e sem água. Então um olho d’água ou um poço raso no fundo de um arroio restauravam de tal maneira nossas forças e nossa sanidade que nos sentíamos em condições de matar os animais silvestres, que também os procuravam. Às vezes era um urso, outras um antílope, um coiote, um puma – o que Deus provesse: tudo era alimento.

“Certa manhã, quando batíamos uma linha de montanhas, procurando por alguma passagem, fomos atacados por um bando de apaches que seguiram nossa trilha até uma ravina, não muito longe daqui. Sabendo que seu número era de dez para um contra nós, abandonaram suas costumeiras precauções de covardia e caíram sobre nós a galope, atirando e gritando. Lutar estava fora de questão: picamos nossos fracos animais através da ravina, até onde houvesse piso para os cascos; apeamos e subimos até o chaparral de um dos sopés, abandonando todos os nossos pertences ao inimigo. Mas conservamos nossos rifles, cada um de nós – Ramon Gallegos, William Shaw, George W. Kent e Berry Davis.

– O mesmo povo de sempre – disse o humorista de nosso grupo. Era um homem do Leste, pouco familiarizado com as observâncias mais decentes do convívio social. Um gesto de desaprovação de nosso líder o fez silenciar; e o estranho prosseguiu com sua história:

– Os selvagens desmontaram também, e alguns deles subiram pela ravina, avançando para além do ponto onde a tínhamos deixado, cortando qualquer retirada por aquela direção e forçando-nos para o flanco. Infelizmente o chaparral se estendia só por uma curta distância sopé acima, e quando chegamos à parte aberta no alto recebemos o fogo de doze rifles. Mas os apaches atiram mal quando estão com pressa, e Deus providenciou para que nenhum de nós fosse atingido. Umas vinte jardas para o alto, no sopé, além da linha da vegetação, havia despenhadeiros verticais, em meio aos quais se via, bem à frente, uma estreita abertura. Corremos para ela, desembocando numa caverna pouco mais larga do que um cômodo comum de residência. Aqui, por algum tempo, estivemos a salvo: um único homem com um rifle de repetição poderia defender a entrada contra todos os apaches do lugar. Mas contra a fome e a sede não tínhamos defesa. Coragem ainda tínhamos, mas a esperança era só uma reminiscência.

“Nem um só desses índios nós vimos mais tarde; mas pela fumaça e pelo fulgor de suas fogueiras na ravina sabíamos que dia e noite eles nos vigiavam, com os rifles prontos, na extremidade do mato. Sabíamos que se tentássemos alguma coisa nenhum de nós viveria para dar três passos além da abertura. Durante três dias, revezando a guarda, nos agüentamos, até que o sofrimento se tornou insuportável. Então – era a manhã do quarto dia – Ramon Gallegos disse:

“– Señores, não sei muito sobre o Deus bom ou sobre o que agrada a Ele. Vivi sem religião e não tenho conhecimento daquela de vocês. Perdão, señores, se os escandalizo, mas para mim chegou a hora de bater o jogo dos apaches.

“Ajoelhou-se no chão de pedra da caverna e encostou a pistola contra a fronte. ‘Madre de Dios’ – disse – ‘vem agora a alma de Ramon Gallegos’.

“E então nos deixou – William Shaw, George W. Kent e Berry Davis.

“Eu era o líder: cabia a mim falar.

“– Ele era um bravo – eu disse –; sabia quando morrer e como morrer. É tolice enlouquecer por causa da sede e tombar diante das balas dos apaches, ou ser esfolado vivo; é de mau gosto. Juntemo-nos a Ramon Gallegos.

“– Tudo bem – disse William Shaw.

“– Tudo bem – disse George W. Kent.

“Estiquei os membros de Ramon Gallegos e coloquei um lenço sobre seu rosto. Então William Shaw disse:

– Eu gostaria de ter esse aspecto, nem que por um instante.

“E George W. Kent disse que também queria o mesmo.

“– Há de ser assim – eu disse. – Os diabos vermelhos esperarão uma semana. William Shaw e George W. Kent, saquem as armas e se ajoelhem.

“Fizeram-no, e eu fiquei diante deles.

“– Deus todo-poderoso, nosso Pai – eu disse.

“– Deus todo-poderoso, nosso Pai – disse William Shaw.

“– Deus todo-poderoso, nosso Pai – disse George W. Kent.

“– Perdoai nossos pecados – eu disse.

“– Perdoai nossos pecados – disseram eles.

“– E recebei nossas almas.

“– E recebei nossas almas.

“– Amém!

“– Amém!

“Deitei-os ao lado de Ramon Gallegos e cobri seus rostos.”

Houve uma rápida comoção do lado oposto do acampamento: um membro de nosso grupo se pôs de pé, a pistola em punho.

– E você – gritou ele –, você ousou escapar? Ainda ousa estar vivo? Seu cachorro covarde, farei com que se junte a eles. Enforquem-me se...

Mas com um salto de pantera o capitão o deteve, segurando-lhe o pulso.

– Contenha-se, Sam Yountsey, contenha-se!

Estávamos todos de pé agora, a não ser o estranho, que permanecia imóvel e aparentemente desatento. Alguém agarrou o outro braço de Yountsey.

– Capitão – eu disse, – há qualquer coisa errada aqui. Esse sujeito ou é um lunático ou é um simples mentiroso: um mero mentiroso ordinário a quem Yountsey não tem razão de querer matar. Se esse homem pertencia ao grupo, então haveria cinco membros, um dos quais (provavelmente ele mesmo) ele não nomeou.

– Sim – disse o capitão, soltando o insurgente, o qual se sentou –, há alguma coisa... incomum. Há alguns anos quatro corpos de homens brancos, escalpelados e lamentavelmente mutilados, foram achados junto à boca daquela caverna. Estão enterrados lá, eu vi os túmulos; poderemos conferir amanhã.

O estranho se levantou, colocando-se de pé à luz do fogo que expirava – fogo que, no sufoco de nossa atenção, esquecemos de manter.

– Havia quatro – ele disse – Ramon Gallegos, William Shaw, George W. Kent e Berry Davis.

Com essa reiterada lista de chamada dos mortos ele penetrou nas trevas, e não o vimos mais. Nesse momento, um membro do nosso grupo, que tinha estado de vigia, caminhou para nós, algo excitado e de rifle em punho.

– Capitão – disse –, durante a última meia hora três homens estiveram ali, no platô. – Apontou na direção que o estranho tomara. – Pude vê-los bem, pois havia luar; mas, como não tinham armas, e eu os cobria com a minha, pensei que estavam de passagem. Mas não se moveram, com os diabos! Deram-me nos nervos!

– Volte para o seu posto e fique lá até que os veja de novo – disse o capitão. – O resto vá se deitar de novo, ou jogo todos na fogueira.

A sentinela se retirou, obediente, resmungando, e não voltou mais. Enquanto ajeitávamos nossos cobertores, o estouvado Yountsey disse:

– Peço mil desculpas, capitão, mas quem diabos você pensa que eles são?

– Ramon Gallegos, William Shaw e George W. Kent.

– Mas e quanto a Berry Davis? Eu devia ter atirado nele.

– Sem necessidade. Você não o teria deixado mais morto. Vá dormir.









(Traduzido por Renato Suttana)

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