EU REUNO AS FORÇAS DOS ABISMOS!
Henry Evaristo
Henry Evaristo
Na minha última noite sobre esta terra logrei reunir-me com meus conselheiros subterrâneos. Alguns vieram em carruagens de luz que deixaram estacionadas do lado de fora de meu decrépito solar. No céu negro de tempestade, eram como navios ancorados nas nuvens! Uns vieram em asas, onde traziam ainda outros presos como apêndices supurados.
Depois entraram pela janela, sem cerimônia. Não eram formosos, de uma maneira que pudesse agradar aos olhos de qualquer mortal. Mas suas presenças, ali diante de mim, estupefato, representavam tudo que poderia haver de mais belo no universo. A maneira como se locomoviam por meu quarto de escrever, se arrastando sobre as paredes em hordas como sangue-sugas intumescidas e amontoadas, e até largando sobre os móveis um limo esverdeado e mau-cheiroso, era mesmo arrasadora. Alguém menos versado nos caminhos da ciência teria enlouquecido no momento. Mas eu, que com eles convivera por toda minha vida, limitei-me a descrever em meus cadernos de manuscritos tudo o que faziam. E sorria quando se aproximavam no escuro e roçavam suas peles molhadas em mim! Posso mesmo admitir que experimentava algum tipo de prazer extremo e infernal...
Depois eles se acalmaram. Se sentaram onde podiam, pelas estantes e balaustradas, pousados como espectros alados, pelas bancadas, cadeiras e estantes de minha paupérrima biblioteca. E ficaram por ali, suspirando, dando gargalhadas aqui e acolá, e revirando os olhos. Às vezes sopravam em meus ouvidos suas opiniões escabrosas a respeito de nosso mundo, e eu podia sentir meus pelos se eriçarem ante as possibilidades por eles propostas.
Ficamos todos no recinto, como se nos estudassemos, mesmo após tantos anos de parceria. Aquele, no entanto, era um momento especial. Era a noite em que eles vieram atender minhas necessidades, concedendo-me um reconhecimento por meus serviços prestados. Creio que foi Gargalon(1) que olhou pela janela, para as sombras que vagavam pelas ruas, e apontou orgulhoso a igreja negra que erigi em seu nome. Outro, desta feita Metraton(2), com seus muitos olhos, observou minha coleção de compêndios ocultos e sorriu orgulhoso. E o som que produziu estilhaçou todas as minhas taças de cristal.
Depois, ouvi uma intensa risadagem que vinha do subsolo da casa. Eram três de meus amigos que se divertiam com os rituais que encontraram por lá. Descontraídos, Mormo(2), Naamah(2) e Adramelech(2) fluiam por entre os corpos de meus sacrifícios e creio que se entretiveram com alguns pois pude ouvi-los estalar na escuridão do porão.
Passou-se muito tempo, e quando eu já havia escrito tudo o que poderia haver para escrever, um outro amigo se aproximou de minha casa. Todos já esperavam sua presença e até reclamavam de sua demora. Augusto como a água mais límpida, adentrou minha biblioteca o honrado irmão Sammael(2)e trazia com ele, pendurado em um de seus peitos, o diabo Abaddon!(2)
Ai que alegria! Agora poderiamos dar continuidade a tudo! Ergui-me, pois, altivo como se eu mesmo fosse um deles. E apontei para a janela. Moloch(2) se acercou de mim, e me olhava com um certo escárnio. Me tocou na fronte, e sobre minha testa imprimiu um estigma. No mesmo instante, vi surgir nas nádegas de Astaroth(2) o nome de minha alma e ele era: SOBERBA.
Foi então que muitos vieram, brotando de todos os cantos mais escuros da casa, e me conduziram à sacada. Lá fora a noite pétrea grassava pelas esquinas do mundo e nuvens negras se reuniam num céu de pesadelos. Olhei para o horizonte e vi quando milhões de naves incandescentes brotaram de lá. Como um bando de insetos malignos, enxamearam por todos os lados e tomaram toda a abóbada celeste. Extinguiram-se todas as luzes da terra, e o mundo mergulhou nas mais profundas trevas do caos.
De minha janela eu testemunhei o destino do homem ouvindo a gritaria das mulheres e das crianças; e todo aquele que lamentava, em todas as partes da terra, eu o ouvia em minha cabeça como se a própria trompa de Heimdall(3) é que soasse dentro de minhas entranhas!
Sammael se aproximou. Veio do interior casa e pousou suas garras sobre meus ombros. Olhamos juntos para o céu e depois para o horizonte. E vimos a terra toda, ao mesmo tempo, pois tinhamos o poder. O Veneno de Deus(4) me olhou nos olhos e queria que eu llhe falasse. Assim o fiz:
"Eis!" Disse eu e minhas palavras soaram como que amplificadas por algum sortilégio maravilhoso. Continuei: "Eis que vos entrego este universo de dores e escravidões em escâmbio por vosso reino no tártaro!". Dito isso ergui meus braços para o céu vendo surgir em minhas mãos duas bolas de fogo incandescentes. Ao meu ato todos os diabos me reverenciaram e saltaram para fora da casa, emanando dali como matilhas de coisas proscritas tomando todo o ar e todo o espaço da terra.
Vi então as massas comovidas se precipitando em abismos de desespero ante aquilo que viam se anunciando no céu. E de todos os rincões das matas mais distantes, vi saltarem as colunas de demônios, como hordas ígneas de morcegos gigantescos, que eu trouxera.
E foi assim que os diabos subiram para vosso mundo.
E foi assim que desci aos infernos onde reino incólume.
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1 - Demônio criado para este conto.
2 - Demônios da demonologia universal.
3 - Heimdall é um deus da mitologia nórdica que se anuncia tocando uma trompa gigantesca.
4 - O significado da palavra Sammael na cultura hebraica.
* Este conto é um dos resultados do 2º exercício de elaboração de contos realizado pelo forum da Câmara dos Tormentos.
4 comentários:
Muito bom este texto. Profissional, na verdade! Ficou curtinho e bem fácil e rápido de ler no monitor.
Rogerio (SC)
www.rogsildefar.tk
Assombroso, assustador, ou seja, mais uma brilhante narrativa de henry Evaristo.
Henry tem uma grande facilidade em caminhar pelos espaços mais obscuros das trevas. Excelente !!!
Henry, já tinha lido este conto, por ocasião do exercício, e como te disse, achei muito bom a idéia deste apocalipse demoníaco aberto no mundo... claro, tudo em termos de litratura, né? De preferência quero ver os capetas bem longe da gente!
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