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3.11.07

A LEI DO MAIS FRACO



A amiga e grande escritora gaúcha Mauren Guedes Müller volta a participar e enriquecer a Câmara com seu brilhantismo em mais um conto inusitado e instigante. Boa leitura!






A LEI DO MAIS FRACO




José apertou os olhos e levou a mão à testa. A dor de cabeça estava particularmente intensa naquele dia. Mas José não era de se deixar abater. Fingindo que não sentia nada, caminhou para a peça dos fundos, pegou o martelo e o serote continuou a fazer a mesa que começara a construir na véspera.
Desde que o pai morrera, José assumira o serviço da marcenaria praticamente sozinho. João trabalhava muito pouco, em dias esparsos, às vezes com um intervalo de três ou quatro ociosos entre um e outro de trabalho. O irmão mais velho acostumara-se a labutar pesado, de sol a sol. E não sabia para onde ia o dinheiro. Provavelmente, o irmão mais novo o gastava. Mas estava bem. João tinha esse direito. Afinal, a saúde frágil sempre lhe dera todos os direitos.
Desde que nascera, João sofria de asma, bronquite, anemia, era muito suscetível a infecções. Já José tinha uma saúde de ferro  exceto por aquelas dores de cabeça que o atormentavam desde criança, às vezes mais fortes, às vezes mais fracas, e por aqueles esquecimentos que vinham de vez em quando. Mas geralmente nada disso o impedia de trabalhar.
José crescera ouvindo que João era fraquinho, que João tinha de se submeter a inúmeros sofrimentos por causa da saúde, então ele, José, deveria cuidar do irmão mais novo e protegê-lo. Desde muito criança, João fora mimado por todos, especialmente pela mãe. José se lembrava como se fosse hoje da primeira vez em que o irmão mais novo lhe batera: acertara-lhe um soco no estômago, e mais outro. José segurara-lhe os pulsos e gritara com ele. Então, o pequeno desatara a berrar. A mãe viera lá da cozinha, desatinada, gritando com José, que largara imediatamente o irmão. João tivera uma crise de tosse  ou fingira ter. Então, a mãe agarrara o mais velho pelos cabelos, gritando: “Você vai matar o seu irmão!” E dera-lhe umas palmadas. Daí por diante, João aprendera que podia fazer o que quisesse com o irmão mais velho: José, mesmo sendo o mais saudável, o maior e o mais forte, não esboçaria qualquer reação. E José aprendera que jamais deveria revidar a qualquer ataque do irmão mais novo e doente, para não correr o risco de matá-lo e ter de suportar pelo resto de seus dias a vergonha e o remorso de ser um assassino fratricida.
Para chegar à marcenaria, José passou pela cozinha e deu bom-dia à mãe. Ela não lhe respondeu. José ficou se perguntando por que, e logo concluiu que devia ter feito alguma coisa que a aborrecesse, talvez houvesse repreendido o irmão mais novo ou deixado que lhe faltasse alguma coisa. Sempre fora assim: não importava o que João lhe fizesse, não era punido; já José tinha de suportar desde uma surra até o silêncio emburrado de todo o resto da família se fizesse algo com que João se sentisse ofendido, mesmo que fosse sem intenção. É, devia ser isso. Provavelmente dissera ou fizera algo que irritara João, ou que representasse uma falta para com seus deveres de irmão mais velho. Não obstante, era-lhe impossível se lembrar do que fora. Levou a mão à cabeça. Aquela dor... Bobagem. Aquela dor vinha há anos, e, se ainda não o matara, com certeza não o mataria mais. Não se fazia acompanhar por qualquer outro sintoma, exceto os tais lapsos de memória. Afora isso, José se sentia forte, bem disposto e perfeitamente saudável  saudável para trabalhar para o irmão mais novo, para protegê-lo e para suportar-lhe todas as injúrias e agressões.
Trabalhou na mesa com afinco e teve enorme satisfação em vê-la pronta. Foi quando ouviu o barulho do irmão chegando em casa. Foi até a cozinha e o ouviu perguntar rispidamente à mãe o que havia para o almoço. A pobre senhora o fez sentar-se e lhe serviu um prato. José se serviu sozinho. Sempre fora assim: para João, todos os mimos; José que se virasse. O mais velho sentou-se à mesa e pediu ao mais novo que lhe alcançasse o sal. João não lhe respondeu, sequer o olhou. Aquilo irritou-o um pouco: por mais doente que João fosse, custava-lhe alcançar-lhe o saleiro? Nesse instante, porém, João começou a tossir. Sentindo-se culpado, José levantou-se e pegou ele mesmo o frasco de sal.
No início da tarde, voltou para a marcenaria. Então, levou um choque: a mesa, que concluíra pela manhã, estava novamente inacabada. Somente uma das patas estava no lugar, as outras não estavam postas. Irritou-se profundamente. Aquilo já era demais. Que o irmão não trabalhasse quase, podia aceitar; mas que não viesse desfazer o seu serviço! Dirigiu-se para a cozinha, bravo. A alguns metros da porta, porém, estacou.
Pôde ouvir João gritando com a mãe.
Não era incomum o caçula agredir a mãe de ambos, mas aquilo sempre irritava o mais velho, que não admitia aquele atrevimento. Entrou na cozinha a tempo de ver o mais jovem empurrar a mãe contra o chão. A pobre senhora gritou de dor. João pareceu levar um susto ao perceber que atirara a mãe ao solo: engastou-se, disse algumas imprecações e correu para o quarto, visivelmente perturbado. Mas José não se apiedou dele: correu até a mãe e tentou levantá-la. Porém, teve a impressão de que, por mais força que tivesse  desde criança, José sempre fora robusto , não conseguia mover o corpo dela do solo, não conseguia levantá-la um milímetro que fosse.
A mãe soluçava baixinho. José falou com ela. Ela o ignorou completamente. Parecia mesmo que não o ouvia, que não o enxergava. Ela sentou-se no chão. O filho tentou enxugar-lhe as lágrimas. A mãe olhou na direção da porta por onde João saíra e murmurou:
 Você ainda vai me matar, João...
 Não vai  respondeu José, abraçando-a, enquanto sentia a raiva crescer dentro de si.  Eu não vou permitir!
Mas ela não lhe devolveu o abraço. Apenas suspirou profundamente e repetiu:
 Você ainda vai me matar... Não basta o que fez a José?...
Súbito, José levou a mão à cabeça. Sentiu uma dor intensa e, de repente, a lembrança lhe veio, como um relâmpago, tão terrível que o fez estremecer, congelar, petrificar-se.
Tinha dez anos e estava na marcenaria, com um serrote, aprendendo a moldar as peças de um banquinho, quando o irmãozinho mais novo chegou diante dele. José mal teve tempo de ver que João erguera o martelo. Um só golpe. Queda. Sangue. As fortes luzes do hospital. Alguém dizendo aquelas palavras estranhas, “traumatismo craniano” e “edema cerebral”. Seu pai angustiado. Sua mãe em prantos. João se fazendo de desentendido, como se não atinasse na gravidade do que havia feito. E rindo. Um riso maroto, meio que escondido. Um pequeno caixão de madeira, branco, e, dentro dele...
José abriu os olhos. Largou a mãe e avançou para o quarto. Cansara de ouvir que a vida privara João de muitas coisas! Acaso isso lhe tinha dado o direito de tirar a sua?... Num ímpeto, entrou, furioso, disposto a usar de todas as suas energias, disposto a voltar do além, se conseguisse, disposto a qualquer coisa para obter, enfim, vingança.
Quando entrou no quarto, João estava sentado em uma cadeira, tentando desesperadamente respirar, em meio a um ataque de asma. Desta vez, porém, José não lhe teria pena. Avançou para ele, e então...
Então, seus olhos mortos não viram mais o homem que agredira sua mãe, nem mesmo o menino de oito anos que o assassinara. Viram apenas um bebê. Um bebê arroxeado, que tentava respirar, esforçava-se para viver, lutava contra as doenças que lhe roubavam todas as forças...
José fechou os olhos. A dor voltou por um momento. Quando se foi, levou também suas lembranças...
José se aproximou do irmão mais novo, que agora via novamente adulto, e o ajudou a se levantar, a chegar à janela, abri-la, respirar o ar puro. De alguma forma, João conseguiu sentir a ajuda, o impulso, embora não lhe agradecesse, embora sequer o olhasse. Mas isso não importava a José.
A única coisa que lhe importava era que estava ali o seu irmão mais moço, de saúde frágil. E ele, José, que era o mais velho, o mais forte e o mais saudável, tinha o dever de cuidar dele e de protegê-lo, enquanto... Enquanto estivesse vivo...


SETEMBRO DE 2007

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Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias ou opiniões; qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera coincidência.



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