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28.1.09

O MEDO À ESPREITA

Na sequência de UM SUSSURRO NAS TREVAS a Câmara resolve publicar mais um conto clássico do mestre Lovecraft. Especialmente dedicado, se assim nos é permitida a ousadia, à nossa querida amiga e colaboradora escritora Tânia Mara Souza, de Campo Grande. Boa leitura!

O Medo à Espreita

Howard Phillips Lovecraft

I. A sombra na chaminé

Trovejava na noite em que fui ao solar deserto no topo da Tempest Mountain para me defrontar com o medo que estava à espreita. Eu não estava só, pois a temeridade não se confundia, então, com aquele amor pelo grotesco e o terrível que fez de minha carreira uma sucessão de horrores singulares na literatura e na vida.

Estavam comigo dois homens fortes e leais que chamei quando chegou o momento, homens que, por sua peculiar adequação, havia muito se tinham associado a mim em minhas pavorosas investigações.

Saíramos discretamente do vilarejo por causa dos repórteres que ainda se demoravam por lá depois do pânico sinistro de um mês antes — o pesadelo da morte arrepiante. Mais tarde, pensei, eles poderiam ajudar-me, mas não os queria naquele momento. Praza Deus eu os tivesse deixado partilhar da busca, pois assim não teria de suportar, sozinho e por tanto tempo, o segredo, suportá-lo sozinho temendo que o mundo me achasse louco ou ele próprio enlouquecesse com as implicações diabólicas da coisa. Agora que, de qualquer sorte, estou contando tudo para que as aflições não me enlouqueçam, gostaria de não o haver ocultado. Pois eu, e somente eu, sei que tipo de pavor estava à espreita naquela montanha espectral e desolada.

Metidos num pequeno automóvel, cobrimos as milhas de morros e florestas primitivas até a encosta arborizada o impedir de seguir em frente. A região apresentava um aspecto mais sinistro do que o usual agora que a víamos à noite e sem as multidões costumeiras de investigadores, o que freqüentemente nos induziu a usar a lanterna de acetileno apesar da atenção que ela poderia atrair. Não era uma paisagem salubre depois de escurecer, e acredito que teria notado sua morbidez mesmo se não tivesse conhecimento do terror que andava à solta por lá. Criaturas selvagens não havia — elas ficam alertas quando a morte furtiva aproxima-se. As velhas árvores atingidas pelos raios pareciam extraordinariamente grandes e retorcidas, e o restante da vegetação terrivelmente denso e febril, enquanto curiosos montículos e outeiros no terreno coberto de mato esburacado por fulguritos sugeriam-me serpentes e crânios humanos avolumados a proporções gigantescas.

O medo estivera à espreita na Tempest Mountain por mais de um século. Isto eu logo fiquei sabendo pelos relatos dos jornais sobre a catástrofe que, pela primeira vez, atraiu o interesse mundial para a região. O lugar é uma elevação solitária e remota naquela parte das Catskills, onde a civilização holandesa penetrara, um dia, fraca e provisoriamente, deixando para trás, ao regredir, apenas algumas mansões arruinadas e uma população degenerada de posseiros habitando vilarejos esquálidos em ladeiras isoladas. Pessoas normais raramente visitavam o local antes da constituição da polícia estadual, e, mesmo agora, somente policiais montados o patrulham irregularmente. O medo, porém, é uma velha tradição em todas as povo-ações vizinhas, pois é o tópico principal da conversa simples dos pobres mestiços que às vezes abandonam seus vales para trocar cestos tecidos à mão pelos produtos de primeira necessidade primitivos que não podem derrubar com um tiro.

O medo estava à espreita no temido e deserto solar Martense que coroava o cume alto, mas não escarpado, cuja propensão a freqüentes tempestades lhe valera o nome de Tempest Mountain. Por mais de cem anos, a vetusta casa de pedra rodeada de bosques fora o mote de histórias extremamente violentas e repulsivas, histórias sobre uma morte colossal, silenciosa e arrepiante que rondava o lado de fora da casa no verão. Com chorosa insistência, os posseiros contavam casos de um demônio que atacava os viajantes solitários depois do escurecer, ora os carregando embora, ora os deixando desmem-brados, em estado de pavor absoluto; às vezes, eles segredavam histórias de trilhas de sangue seguindo na direção do longínquo solar. Para alguns, o trovão tirava o medo à espreita para fora de sua morada, enquanto que para outros, o trovão era a sua voz.

Ninguém que fosse de fora da região acreditava nessas histórias variadas e conflitantes, com suas descrições extravagantes, incoerentes, sobre um demônio apenas vislumbrado, mas nenhum agricultor ou aldeão duvidava de que o solar Martense fosse mal-assombrado. A história local excluía essa dúvida, muito embora os investigadores que haviam visitado a construção depois de alguns relatos especialmente exaltados dos posseiros jamais houvessem encontrado a menor evidência de malignidade. As velhas avós narravam mitos estranhos sobre o espectro dos Martense, mitos sobre a própria família Martense, sua singular desigualdade hereditária nos olhos, sua extensa e desnaturada crônica familiar e o assassinato que a amaldiçoara.

O terror que me levou àquele ambiente foi uma confirmação súbita e agourenta das mais desvairadas lendas dos montanheses. Certa noite estivai, depois de uma tempestade de violência sem precedente, a região foi despertada por uma correria de posseiros que uma mera ilusão não teria provocado. As hordas deploráveis de nati-vos gritavam e guinchavam sobre o indescritível horror que se descera sobre eles e não se mostravam inseguras. Não o haviam visto, mas tinham ouvido gritos de tal monta saídos de um vilarejo, que sabiam que uma morte rastejante havia chegado.

Pela manhã, gente da cidade e policiais montados da guarda estadual acompanharam os abalados montanheses até o lugar aonde diziam que a morte comparecera. A morte estava mesmo por lá. O chão embaixo de uma povoação de posseiros cedera depois de um raio, destruindo vários barracos malcheirosos, mas, a esses danos materiais, sobrepunha-se uma devastação orgânica que empanava por completo a sua importância. Dos possíveis setenta e cinco nativos que habitavam o local, não se avistou nenhum vivo. A terra revolvida estava coberta de sangue e restos humanos evidenciando, com extrema eloqüência, a devastação provocada pelas presas e garras do demônio, embora não houvesse uma trilha visível afastando-se da carnificina. Todos prontamente concordaram que o causador daquilo devia ser algum animal pavoroso, e nenhuma voz ergueu-se para renovar a acusação de que aquelas mortes enigmáticas poderiam ser atribuídas aos sórdidos assassinos tão comuns nas comunidades decadentes. Essa acusação só foi retomada quando se deu pela falta, entre os mortos, de vinte e cinco membros, talvez, da população estimada, e mesmo assim era difícil explicar o assassinato de cinqüenta pela metade desse número. Mas persistia o fato de que, numa noite estivai, um raio caíra dos céus extinguindo uma vila cujos corpos estavam horrivelmente misturados, mastigados e dilacerados.

A alvoroçada gente do mato relacionou imediatamente o horror ao assombrado solar Martense, embora os dois locais ficassem mais de três milhas distantes. Os policiais mostraram-se mais céticos, incluindo o solar em suas investigações por mera formalidade e descartando-o sumariamente quando o encontraram por completo deserto. Os campônios e aldeões, porém, esmiuçaram o lugar com infinito cuidado, revirando tudo que havia no interior da casa, perscrutando lagoas e riachos, batendo os arbustos e esquadrinhando as matas próximas. Foi tudo em vão; a morte havia partido sem deixar nenhum traço, salvo a própria destruição.

No segundo dia de busca, o caso foi amplamente ventilado pelos jornais. Repórteres infestaram a Tempest Mountain. Eles a descreveram com grande detalhe e com muitas entrevistas para elucidar o caso de horror tal como era contado pelas velhas locais. Eu acompanhei as matérias de início com indiferença, especialista que sou em horrores, mas, depois de uma semana, captei uma atmosfera que me deixou especialmente animado, e assim, em 5 de agosto de 1921, registrei-me entre os repórteres que lotavam o hotel de Lefferts Corners, o vilarejo mais próximo da Tempest Mountain e quartel-general reconhecido dos investigadores. Três semanas mais tarde, a dispersão dos repórteres deixou-me livre para iniciar uma terrível investigação com base nos inquéritos e levantamentos minuciosos em que me havia ocupado neste ínterim.

Assim, nessa noite estivai, enquanto os trovões ribombavam ao longe, desci do carro e escalei com dois companheiros armados as últi-mas encostas onduladas da Tempest Mountain, dirigindo o facho de uma lanterna elétrica para os paredões cinzentos espectrais que começavam a surgir por entre os gigantescos carvalhos à nossa frente. Naquela mórbida solidão noturna iluminada pela luz fraca e inconstante da lanterna, a enorme elevação em forma de caixa instigava misteriosas sugestões de medo que durante o dia não se revelavam, mas isso não me fez hesitar, pois viera com a firme intenção de testar uma idéia. Acreditava que o trovão fazia o demônio mortífero sair de algum temível lugar secreto e, fosse aquele demônio uma entidade sólida ou uma pestilência vaporosa, pretendia vê-lo.

Eu já havia revistado por inteiro as ruínas antes e, portanto, conhecia meu plano muito bem, havendo escolhido para sede de minha vigília o antigo quarto de Jan Martense, cujo assassinato reveste-se de particular importância nas lendas rurais. Por estranho que pareça, eu sentia que os aposentos dessa antiga vítima seriam os melhores para meus fins. O quarto, medindo perto de seis metros quadrados, continha, como os outros, um pouco de entulho que algum dia havia sido o mobiliário. Ficava no segundo andar, no canto sul da casa, e tinha uma imensa janela voltada para o leste e uma estreita para o sul, ambas sem vidraças nem gelosias. No lado oposto à grande janela, havia uma enorme lareira em estilo holandês, com ladrilhos decorados com motivos bíblicos representando o filho pródigo, e, no lado oposto à janela estreita, uma cama espaçosa encravada na parede.

Enquanto os trovões abafados pelas árvores iam ficando mais fortes, tratei de preparar os detalhes de meu plano. Primeiro pendurei, lado a lado, no peitoril da janela grande, três escadas de corda que havia trazido. Sabia, porque as havia testado, que chegariam até um ponto apropriado do gramado externo. Em seguida, nós três arrastamos uma grande armação de cama de quatro colunas de um outro quarto, encostando-a, de lado, à janela. Havendo forrado a cama de ramos de pinheiro, ali nos dei-tamos os três com as automáticas à mão, dois descansando enquanto um ficava de vigia. De qualquer direção que o monstro pudesse vir, nossa possível fuga estava preparada. Se viesse do interior da casa, tínhamos as escadas na janela; se viesse de fora, a porta e a escadaria. A julgar pelos fatos precedentes, não achamos que ele iria perseguir-nos até mais longe, mesmo na pior das hipóteses.

Meu turno de vigia foi da meia-noite à uma, quando, a despeito da casa sinistra, da ja-nela desprotegida e da aproximação dos raios e trovões, eu me senti singularmente sonolento. Estava acomodado entre meus dois companheiros, George Bennett do lado da janela e William Tobey do lado da lareira. Bennett dormia, tendo sentido, ao que parece, a mesma sonolência anormal que me afetara, por isso designei Tobey para o turno seguinte ainda que também ele estivesse cabeceando. E curiosa a intensidade com que eu estivera observando a lareira.

O aumento da tempestade deve ter-me afetado os sonhos, pois, no breve intervalo em que estive adormecido, visões apocalípticas me acometeram. Em certo momento, fiquei meio acordado, provavelmente porque o que estava dormindo perto da janela passou, sem querer, o braço sobre meu peito. Eu não estava desperto o bastante para verificar se Tobey estava cumprindo seus deveres de vigia, mas senti uma ansiedade distinta naquele momento. Nunca antes a presença do mal me oprimira de maneira tão intensa. Depois, devo ter caído de novo no sono, pois foi de um caos nebuloso que minha mente despertou sobressaltada quando a noite encheu-se de gritos pavorosos além de tudo que minha imaginação e experiência anteriores pode-riam proporcionar-me.

Em meio àquela gritaria, a alma mais secreta do medo e da agonia humanos agarrou-se desesperadamente aos portais escuros do esquecimento. Despertei para a loucura vermelha e os escárnios do diabolismo, enquanto aquela angústia demente e cristalina recuava reverberando, cada vez mais longe, mais longe, para visões inconcebíveis. Não havia luz, mas eu pude perceber, pelo espaço vazio à minha direita, que Tobey fora-se, só Deus sabe para onde. Sobre meu peito, jazia ainda o braço pesado do companheiro adormecido à minha esquerda.

Foi então que aconteceu o estrondo devastador do raio que abalou toda a montanha, iluminou as criptas mais escuras do venerável cemitério e fendeu a patriarca entre as árvores retorcidas. Ao estrondo infernal de uma estu-penda bola de fogo, o homem adormecido ergueu-se sobressaltado, enquanto o clarão do lado de fora da janela projetava nitidamente sua sombra na chaminé acima da lareira da qual meus olhos nunca se afastavam. O fato de eu ainda estar vivo e são é um prodígio que não posso explicar. Não posso explicar porque a sombra naquela chaminé não era a de George Bennett, nem a de alguma outra criatura humana, mas de uma monstruosidade ímpia dos abismos mais profundos do inferno, uma abominação informe que nenhuma mente poderia apreender por inteiro e nenhuma pena, ainda que canhestramente, poderia descrever.

Um instante depois eu estava só, tremendo e balbuciando, naquele solar amaldiçoado. George Bennett e William Tobey não haviam deixado traço, nem mesmo de luta. Nunca mais se soube deles.

II. Um passante na tempestade

Depois daquela pavorosa experiência no solar rodeado pela mata, passei muitos dias prostrado em meu quarto de hotel, em Lefferts Corners. Não me lembro exatamente de como consegui chegar ao carro, dar a partida e escapar sem ser visto para a vila, pois não guardo nenhuma lembrança nítida, salvo a de árvores titânicas de galhos retorcidos, os rugidos infernais da trovoada e as sombras diabólicas cruzando os montículos que pontilhavam e riscavam a região.

Enquanto tremia e meditava sobre aquela alucinante sombra projetada, tinha a certeza de ter ao menos vislumbrado um dos horrores supremos da Terra — uma daquelas indescritíveis influências malignas dos espaços ulteriores cujas tênues vibrações demoníacas às vezes ouvimos chegando dos cantos mais remotos do espaço e que a piedosa finitude de nossa visão nos poupa de ver. A sombra que eu vira eu não ouso analisar nem classificar. Alguma coisa postara-se entre mim e a janela naquela noite, mas eu sentia calafrios quando não conseguia livrar-me do instinto de classificá-la. Se ao menos ela houvesse rosnado, ou latido, ou soltado uma risada sarcástica — isso teria abrandado a repulsa abissal. Mas foi tudo tão silencioso...

Ela pousou um braço, ou uma pesada pata dianteira, em meu peito... Era orgânica, certamente, ou havia sido... Jan Martense, cujo quarto eu havia invadido, estava enterrado no cemitério perto do solar... Preciso encontrar Bennett e Tobey se estiverem vivos... Por que ela os pegou e me deixou por último?... O torpor é tão sufocante, e os sonhos tão horríveis...

Não demorou para eu perceber que teria de contar minha história a alguém ou sofreria um colapso. Já me decidira a não abandonar a busca do medo à espreita, pois, em minha temerária ignorância, algo me dizia que a incerteza seria pior que a compreensão, por mais terrível que essa viesse a se mostrar. Assim, decidi-me sobre o melhor caminho a seguir, quem escolher para minhas confidencias e como rastrear a coisa que havia eliminado dois homens e projetado uma sombra de pesadelo.

Meus principais conhecidos em Lefferts Corners haviam sido os afáveis repórteres; mui-tos tinham ficado por lá para recolher os ecos finais da tragédia. Foi entre eles que resolvi es-colher um colega e, quanto mais refletia, mais minhas preferências recaíam em Arthur Munroe, um homem magro e moreno, nos seus trinta e cinco anos, cuja cultura, gostos, inteligência e temperamento pareciam indicar alguém avesso a idéias e experiências convencionais.

Em certa tarde do começo de setembro, Arthur Munroe ouviu a minha história. Percebi, desde o começo, que ele mostrou-se também interessado e simpático. Quando concluí, ele analisou e discutiu o assunto com grande perspi-cácia e discernimento. Seu conselho, ademais, foi eminentemente prático, pois recomendou um adiamento das operações no solar Martense até nos prepararmos com dados históricos e geográficos mais detalhados. Por iniciativa dele, vasculhamos a região atrás de informações sobre a terrível família Martense e encontramos um homem que possuía um velho diário muito esclarecedor. Conversamos também de-moradamente com os mestiços montanheses que não haviam fugido do medo e da confusão para encostas mais distantes. Dispusemos, para preceder nossa tarefa culminante, um exame completo e definitivo dos locais associados às várias tragédias das lendas dos posseiros.

Os resultados dessa investigação não foram inicialmente esclarecedores, mas nossa tabulação pareceu revelar uma tendência muito significativa: o número de horrores relatados era, de longe, maior em áreas ou relativamente próximas da casa evitada, ou ligadas a ela por extensões da floresta doentia e hipertrofiada. Havia, por certo, exceções. Aliás, o horror que chamara a atenção do mundo ocorrera num descampado distante do solar e de suas matas adjacentes.

Quanto à natureza e à aparência do medo à espreita, nada pudemos obter dos assustados e ignorantes moradores dos barracos. Num mesmo fôlego, eles o chamavam de cobra e de gigante, um demônio-trovão e um morcego, um abutre e uma árvore andante. Nós, porém, nos sentíamos autorizados a supor que se tratava de um organismo vivo altamente suscetível a tempestades elétricas e, apesar de alguns relatos sugerirem asas, acreditávamos que a sua aversão por espaços abertos favorecia a teoria de sua locomoção por terra. A única coisa de fato incompatível com essa última visão era a rapidez com que a criatura devia ter-se deslocado para realizar todas as proezas que lhe eram atribuídas.

Quando ficamos conhecendo melhor os posseiros, achamo-los curiosamente parecidos sob muitos aspectos. Eram animais simples, recuando lentamente na escala evolutiva devido a sua lamentável ascendência e ao seu isolamento brutalizante. Temiam os forasteiros, mas aos poucos foram acostumando-se a nós e acabaram sendo de grande ajuda quando batemos todas as matas e arrasamos todas as divisórias da casa à procura do medo à espreita. Quando pedimos para nos ajudarem a encontrar Bennett e Tobey, ficaram pesarosos, porque queriam mesmo nos ajudar, mas sabiam que essas vítimas haviam deixado tão por completo o mundo quanto a sua própria gente desaparecida. Estávamos plena-mente convencidos de que um grande número deles havia sido morto e removido, da mesma forma que os animais selvagens haviam sido há muito exterminados, e esperávamos, apreensivos, a ocorrência de novas tragédias.

Em meados de outubro, nossa falta de progressos nos intrigou. Com a claridade das noites, nenhuma agressão diabólica ocorreu, e a total inutilidade de nossas buscas na casa e na região quase nos levou a considerar o medo à espreita um agente imaterial. Temíamos a chegada do tempo frio interrompendo nossas investigações, pois estávamos todos convencidos de que o demônio geralmente se aquietava no inverno. Assim, havia uma espécie de pressa e ansiedade em nossa última exploração, à luz do dia, no vilarejo assediado pelo medo, agora deserto por causa do pavor dos posseiros.

O malfadado vilarejo de posseiros não tinha nome, mas era muito antigo, incrustado numa fenda protegida, mas desmaiada, entre duas elevações chamadas, respectivamente, Cone Mountain e Maple Hill. Ele ficava mais perto da Maple Hill que da Cone Mountain; alguns de seus casebres eram, de fato, escavados na encosta do primeiro desses montes. Geograficamente, ele ficava a cerca de três quilômetros a noroeste da base da Tempest Mountain e a quatro quilômetros do solar rodeado de carvalhos. Da distância entre o vilarejo e o solar, três quilômetros e meio do lado da povoação formavam um espaço inteiramente descoberto, uma planície quase horizontal, exceto por uns outeiros baixos em forma de serpente, com uma vegetação de capim e arbustos esparsos. Considerando essa topografia, concluímos que o monstro devia ter vindo da Cone Mountain, da qual saía um braço arborizado para o sul até uma pequena distância do contraforte mais ocidental da Tempest Mountain. A elevação do terreno, nós atribuímos conclusivamente a um deslizamento de terra de Maple Hill, em cuja encosta uma árvore solitária, alta e fendida havia sido o ponto de impacto do raio que convocara o demônio.

Quando, pela vigésima vez ou mais, Arthur Munroe e eu esquadrinhávamos com minúcia cada centímetro do vilarejo devastado, tomou-nos um certo desalento mesclado com novos e vagos temores. Era muito estranho, mesmo quando tantas coisas insólitas e assustadoras pareciam comuns, encontrar um cenário tão desprovido de pistas depois de acontecimentos tão espantosos; e nós andávamos de um lado para outro, debaixo do céu de chumbo que escurecia, com aquele zelo trágico e desorientado resultante da combinação de um sentido de futilidade com a necessidade de ação. Nossos cuidados eram extremos. Cada casebre era visitado de novo, cada escavação na encosta era pesquisada novamente à procura de corpos, cada passagem espinhosa da encosta adjacente era mais uma vez esquadrinhada atrás de tocas e cavernas, mas foi tudo em vão. Como já comentei, porém, novos e vagos temores pairavam ameaçadores sobre nós, como se gigantescos grifos com asas de morcego nos espreitassem de abismos siderais.

À medida que a tarde avançava, a visão ia ficando cada vez mais difícil e podíamos ouvir o rumor da tormenta formando-se sobre a Tempest Mountain. Esse som, num lugar como aquele, decerto nos excitou, embora menos do que teria feito se já houvesse anoitecido. Naquelas circunstâncias, esperávamos que a tempestade fosse durar até muito depois de escurecer, e, com essa esperança, interrompemos nossas buscas incertas na encosta e nos dirigimos ao vilarejo habitado mais próximo com a intenção de reunir um grupo de posseiros para nos ajudar na investigação. Apesar de tímidos, um grupo dos mais jovens inspirou-se em nossa liderança protetora para prometer alguma ajuda.

Mal nos havíamos afastado, porém, desabou uma chuva tão torrencial e cegante, que era um imperativo absoluto encontrarmos algum abrigo. A escuridão extrema, quase noturna, do céu nos fazia tropeçar, mas, guiados pelos relâmpagos freqüentes e por nosso conhecimento detalhado da vila, logo alcançamos as últimas casinhas do agrupamento, uma combinação he-terogênea de troncos e tábuas cuja porta e a única e minúscula janela remanescentes davam para a Maple Hill. Trancando a porta às nossas costas contra a fúria do vento e da chuva, encaixamos a tosca vedação, que nossas buscas freqüentes nos haviam ensinado onde encontrar, na janela. Era terrível ficarmos ali, sentados em caixas raquíticas, naquela escuridão de breu, mas tratamos de fumar nossos cachimbos e, de tempos em tempos, acendíamos as lanternas de bolso.

De vez em quando, podíamos ver o clarão de um relâmpago através das rachaduras da parede. A tarde estava tão escura, que intensificava o brilho de cada clarão.

A vigília na tempestade fez-me recordar, estremecendo, minha noite apavorante na Tempest Mountain. Meu espírito retornou àquela estranha pergunta tão recorrente desde que a coisa medonha acontecera, e mais uma vez cismei sobre as razões pelas quais o monstro, tendo-se aproximado dos três vigilantes, seja pela janela, seja pelo interior, havia começado pelos homens das pontas e deixado o do meio por último, quando a titânica bola de fogo o afugen-tou. Por que não havia apanhado suas vítimas na ordem natural, eu em segundo lugar, de qualquer lado que se houvesse aproximado? Com que espécie de tentáculo de longo alcance ele agarrava suas presas? Saberia que eu era o líder e teria me poupado para um destino pior que o de meus companheiros?

Estava no meio dessas reflexões quando, como que num plano dramático para intensificá-las, caiu nas proximidades um raio terrível acompanhado por um ruído de terra deslizando, enquanto o feroz ulular do vento ascendia a alturas infernais. Estava claro que a árvore solitária da Maple Hill havia sido novamente atingida, e Munroe levantou-se de sua caixa e foi até a minúscula janela para verificar o estrago. Quando tirou a vedação, o vento e a chuva entraram uivando de maneira ensurdecedora, impedindo-me de ouvir o que ele dizia, mas esperei enquanto ele curvava-se para fora e tentava aquilatar o pandemônio da natureza.

O abrandamento gradual do vento e a dispersão da insólita escuridão nos informou que a tempestade estava passando. Eu esperava que ela fosse durar até a noite para ajudar em nossa busca, mas um furtivo raio de sol passando por um buraco de nó de madeira às minhas costas excluiu essa possibilidade. Sugerindo a Munroe que era melhor conseguirmos um pouco de luz antes de cair uma nova chuvarada, destranquei e abri a porta tosca. O chão do lado de fora era uma massa singular de lama e poças d’água, com novos montículos formados pelo leve deslizamento de terra, mas nada vi que justificasse o interesse que mantinha meu com-panheiro curvado, em silêncio, para fora da janela. Cruzando até onde ele estava, toquei em seu ombro, mas ele não se mexeu. Então, quando o sacudia vigorosamente e virava, senti as gavinhas sufocantes de um horror canceroso cujas raízes estendiam-se a passados infinitos e abismos imensuráveis das trevas que se estendem além dos tempos.

Pois Arthur Munroe estava morto. E, no que restara de sua cabeça mastigada e sem olhos, já não havia um rosto.

III. O que significava o clarão vermelho

Na noite tempestuosa de 8 de novembro de 1821, com uma lanterna projetando sombras espectrais, ali estava eu cavando, solitário e embrutecido, a sepultura de Jan Martense. Começara a cavar à tarde, porque a tempestade estava formando-se, e, agora que escurecera e a tempestade desabara sobre a folhagem densa, eu estava contente.

Creio que minha mente ficou um tanto perturbada pelos fatos desde 5 de agosto: a sombra diabólica no solar, a tensão geral e o desapontamento e aquilo que ocorrera na vila durante um vendaval em outubro. Depois daquilo, eu havia cavado uma sepultura para alguém cuja morte eu não pudera compreender. Sabia que outros também não poderiam, por isso os deixei pensar que Arthur Munroe perdera-se. Eles o procuraram sem nada encontrar. Os posseiros poderiam ter compreendido, mas não ousei apavorá-los ainda mais. Eu próprio me sentia curiosamente insensível. Aquele choque no solar havia produzido alguma coisa em meu cérebro, e tudo em que eu conseguia pensar era procurar um horror que agora havia adquirido uma estatura cataclísmica em minha imaginação, uma procura que o destino de Arthur Munroe me fizera jurar que manteria secreta e solitária.

O cenário de minhas escavações, sozinho, teria bastado para acovardar qualquer pessoa comum. Árvores primitivas, apavorantes por seus descomunais tamanhos, idade e aspecto grotesco me espreitavam como pilares de algum diabólico tempo druídico, abafando a tempesta-de, aplacando o vento mordente e deixando passar um pouco de chuva apenas. Além dos troncos lacerados do fundo, iluminados pelos fracos lampejos filtrados dos relâmpagos, erguiam-se as pedras úmidas cobertas de hera do solar deserto enquanto, um pouco mais perto, estava o abandonado jardim holandês cujos passeios e canteiros encontravam-se infestados por uma vegetação hipertrofiada, fétida, fúngica e esbranquiçada que jamais vira a luz plena do sol. E, mais perto ainda, havia o cemitério, onde as árvores deformadas projetavam galhos insanos quando suas raízes deslocavam as lajes profanas e sugavam o veneno do que jazia embaixo. Aqui e ali, por baixo da mortalha de folhas pardas que apodreciam e se putrefaziam na escuridão da mata antediluviana, eu podia divisar os contornos sinistros de alguns daqueles outeiros baixos que caracterizavam a região trespassada pelos raios.

A História me conduziu a essa sepultura arcaica. A História, de fato, era tudo que me restava depois de tudo mais terminar em zombeteiro satanismo. Eu agora acreditava que o medo à espreita não era um ser material, mas um fantasma com presas lupinas que cavalgava o relâmpago no meio da noite. E acreditava, em virtude de todo o folclore local que havia desenterrado na busca junto com Arthur Munroe, que o fantasma era o de Jan Martense, morto em 1762. Este era o motivo para estar cavando estupidamente em seu túmulo.

O solar Martense fora erguido em 1670 por Gerrit Martense, um abastado mercador de Nova Amsterdã que não gostou da passagem do poder para o domínio britânico e havia construído aquele faustoso domicílio num cume arborizado remoto cujas intocada solidão e insólita paisagem o agradaram. O único contratempo importante do lugar eram as violentas tempestades de verão. Ao escolher a colina e construir o seu solar, Mynheer Martense havia atribuído essas freqüentes irrupções naturais a alguma peculiaridade do ano, mas, com o tempo, ele percebeu que o local era especialmente propenso a tais fenômenos. Por fim, considerando que as tempestades eram uma ameaça a sua própria vida, adaptou um porão onde poderia proteger-se de suas ocorrências mais violentas.

Sabe-se ainda menos dos descendentes de Gerrit Martense do que dele próprio, pois todos foram criados no ódio à civilização inglesa e educados para evitar os colonos que a aceitavam. Sua vida era muito reclusa e as pessoas diziam que, por causa de seu isolamento, eles tinham-se tornado pessoas de poucas palavras e difícil compreensão. Ao que parece, todos eram portadores de uma peculiar dissemelhança hereditária de olhos, tendo geralmente um olho azul e outro castanho. Seus contatos sociais foram ficando cada vez mais raros até que eles finalmente deram para se casar com a numerosa população servil que havia na propriedade. Muitos degenerados da populosa família cruzaram o vale e mesclaram-se com a população mestiça que mais tarde viria a gerar os desgraçados posseiros. O resto havia-se aferrado com teimosia ao solar ancestral, encerrando-se cada vez mais no clã e desenvolvendo uma reação neurótica às freqüentes tempestades.

A maior parte dessas informações veio ao mundo por meio do jovem Jan Martense, que, movido por algum tipo de inquietação, alistou-se no exército colonial quando as notícias sobre a Convenção de Albany chegaram à Tempest Mountain. Ele foi o primeiro dos descendentes de Gerrit a ver alguma coisa do mundo externo e, quando voltou, em 1760, depois de seis anos de campanhas militares, foi odiado como um intruso por seu pai, seus tios e seus irmãos, apesar de ter os olhos desiguais dos Martense. Ele já não poderia compartilhar as peculiaridades e preconceitos dos Martense, e as próprias tem-pestades da montanha não conseguiam inebriá-lo como antes. Seu ambiente, agora, o deprimia, e ele chegou a escrever muitas vezes a um amigo de Albany sobre seus planos para deixar o abrigo paterno.

Na primavera de 1763, Jonathan Gifford, o amigo de Albany de Jan Martense, ficou preocupado com o silêncio de seu cor-respondente, especialmente por causa das condições e disputas no solar Martense. Decidido a visitar Jan em pessoa, partiu a cavalo para as montanhas. Seu diário afirma que ele chegou à Tempest Mountain em 20 de setembro, encontrando o solar em avançado estado de decrepitude. Os soturnos Martense, cuja aparência de animal sujo o deixou chocado, disseram-lhe com sons guturais entrecortados que Jan havia morrido. Insistiram em que ele fora atingido por um raio no outono anterior, e agora estava enterrado atrás dos maltratados jardins. Mostraram a sepultura árida e sem lápide ao visitante. Alguma coisa nos modos dos Martense produziu um sentimento de repulsa e suspeita em Gifford, e uma semana mais tarde ele voltou com uma pá e um enxadão para inves-tigar aquele lugar sepulcral. Encontrou o que já esperava: um crânio cruelmente esmagado por golpes selvagens; e, retornando a Albany, acusou abertamente os Martense do assassinato de seu parente.

Faltaram evidências legais, mas a história alastrou-se rapidamente por toda a região, e, da-quela época em diante, os Martense foram colocados em ostracismo pelo mundo. Ninguém queria negociar com eles, e sua propriedade dis-tante era evitada como um lugar maldito. De alguma forma, eles conseguiram seguir vivendo autonomamente com o produto de sua proprie-dade, pois as luzes ocasionais que brilhavam nas colinas distantes atestavam a persistência de sua presença. Essas luzes foram vistas até 1810, mas, já perto dessa época, haviam-se tornado muito inconstantes.

Neste ínterim, formou-se uma mitologia diabólica sobre o solar e a montanha. O lugar era evitado com redobrada atenção e investido de toda sorte de segredos míticos que a tradição poderia fornecer. Ficou sem ser visitado até 1816, quando a persistente ausência das luzes foi notada pelos posseiros. Nessa ocasião, um grupo fez investigações, encontrando a casa deserta e quase em ruínas.

Não encontraram esqueletos por lá, daí terem inferido que o caso era de partida, e não de morte. O clã parecia ter partido havia muitos anos, e os alpendres improvisados indicavam o tanto que se haviam multiplicado antes da mi-gração. Seu nível cultural descera muito, como ficava claro pelos móveis decadentes e a prataria espalhada que deviam ter sido havia muito abandonados quando os donos partiram. Mas, embora os temidos Martense houvessem parti-do, o medo da casa assombrada persistiu e ficou ainda mais forte quando novas e estranhas histórias começaram a correr entre os montanheses. Lá estava ela, deserta, temida e associada ao fantasma vingador de Jan Martense. Lá estava ela ainda na noite em que escavei o túmulo de Jan Martense.

Descrevi minha demorada escavação como estúpida, e assim ela era, de fato, tanto no método como nos objetivos. Não demorou para o esquife de Jan Martense ser desenterrado — continha agora apenas pó e salitre —, mas, em minha gana para exumar seu fantasma, cavei irracional e desordenadamente embaixo de onde ele fora depositado. Deus sabe o que eu esperava encontrar — sentia apenas que estava escavando a sepultura de um homem cujo fantasma deam-bulava à noite.

É impossível dizer que profundidade monstruosa eu havia alcançado quando minha pá, e logo depois meus pés, desmoronaram solo abaixo. O fato, nas circunstâncias, era fantástico, pois a existência ali de um espaço subterrâneo vinha confirmar, de maneira terrível, minhas loucas teorias. Na pequena queda, meu lampião apagou-se, mas tirei uma lanterna elétrica do bolso e avistei o estreito túnel horizontal que se afastava indefinidamente em ambas as direções. Ele era largo o bastante para um homem esguei-rar-se por ele, e, conquanto nenhuma pessoa sã teria tentado fazê-lo naquele momento, eu esqueci perigo, razão e limpeza em minha ânsia obstinada de desvendar o medo à espreita. Escolhendo a direção da casa, arrastei-me com ousadia por aquela cova estreita, contorcendo-me às cegas e às pressas para diante e só ocasionalmente acendendo a lanterna que conservava estendida à minha frente.

Que linguagem poderá descrever o espetáculo de um homem perdido na terra abismai, tateando, contorcendo-se, revirando-se, espremendo-se, arrastando-se como um louco por túneis sinuosos escavados numa escuridão imemorial sem qualquer noção de tempo, segurança, direção ou objetivo definido? Havia algo de hediondo naquilo, mas foi o que fiz. Eu o fiz por tanto tempo, que a vida desfez-se numa recordação distante, igualando-me às toupeiras e vermes das profundezas espectrais. Na verdade, foi por acidente apenas que, depois de curvas intermináveis, balancei minha esquecida lanterna elétrica, fazendo-a reluzir fantasticamente nas paredes de barro endurecido que se estendiam até uma curva à frente.

Eu vinha arrastando-me desse jeito havia algum tempo, de forma que minha bateria estava quase sem carga quando a passagem inclinou-se abruptamente para cima, alterando meu avanço. E, quando ergui os olhos, não estava preparado para o que vi cintilando à distância: dois reflexos diabólicos de minha bruxuleante lanterna, dois reflexos brilhando com um fulgor maligno e inconfundível, provocando recordações alucinadas. Parei automaticamente, embora me faltasse cabeça para retroceder. Os olhos apro-ximaram-se, mas eu só pude distinguir a garra da coisa que se aproximava.

Mas que garra! Em seguida, eu ouvi, muito ao longe, lá no alto, um leve estrondo que reconheci. Era a trovoada selvagem da montanha, elevada a um furor histérico — eu devia estar arrastando-me para cima já havia algum tempo e a superfície estava agora muito perto. E, quando o trovão abafado retumbou, aqueles olhos ainda me fitavam com uma vaga malignidade.

Graças a Deus, eu não sabia então do que se tratava, pois poderia ter morrido. Mas fui sal-vo pelo próprio trovão que a havia conclamado, pois, depois de uma pavorosa espera, explodiu do céu exterior invisível um daqueles freqüentes raios do lado da montanha cujas conseqüências eu havia notado, aqui e ali, como rasgos de terra revolvida e fulguritos dos mais variados tama-nhos. Com um furor ciclópico, ele rasgou o chão acima daquela cova abjeta, cegando-me e ensurdecendo-me, mas sem me reduzir completamente à inconsciência.

Agarrei-me, espojei-me no caos da terra revolvida pelo deslizamento até a chuva que caía sobre minha cabeça me recompor e pude notar que alcançara a superfície num ponto conhecido: um lugar íngreme, desmaiado, na encosta sudoeste da montanha. Uma sucessão de relâmpagos iluminou o solo revirado e os restos do curioso outeiro baixo que se estendera da encosta superior arborizada, mas não havia nada naquele caos que assinalasse o local de meu egresso da catacumba letal. Meu cérebro estava em estado tão caótico como a terra e, quando um distante clarão vermelho eclodiu no horizonte meridional, eu mal percebi o horror pelo qual havia passado.

Dois dias depois, porém, quando os pos-seiros explicaram-me o significado do clarão vermelho, senti um horror ainda maior do que me haviam causado a cova de lama, a garra e os olhos, um horror maior por suas estarrecedoras implicações. Num vilarejo a muitas milhas de distância, uma orgia de medo sucedera ao raio que me trouxera à superfície, e uma coisa indescritível havia saltado de uma árvore para dentro de uma cabana de telhado frágil.

Ela havia feito algo, mas os posseiros tinham ateado fogo à cabana antes que ela pudesse escapar. Ela estivera realizando aquilo no exato momento em que a terra desmoronara sobre a coisa com a garra e os olhos.

IV. O horror nos olhos

Não pode ser normal a mente de alguém que, sabendo o que eu sabia dos horrores da Tempest Mountain, saísse sozinho em busca do medo que estava à espreita naquele lugar. O fato de que pelo menos duas das encarnações do medo estavam destruídas não passava de uma frágil garantia de segurança física e mental neste Aqueronte de diabolismo multiforme, mas prossegui em minha busca com zelo ainda maior à medida que os fatos e as revelações iam-se tornando mais monstruosos.

Quando fiquei sabendo, dois dias depois de meu terrível rastejar por aquela cripta dos olhos e da garra, que uma criatura maligna havia aparecido a vinte milhas de distância no mesmo instante em que os olhos me fitavam, experimentei verdadeiras convulsões de pavor. Mas aquele pavor estava tão misturado com a admiração e uma excitação grotesca, que a sensação era quase agradável. Às vezes, na agonia de um pesadelo, quando potências invisíveis nos fazem rodopiar sobre os telhados de curiosas cidades mortas rumo ao abismo sorridente de Nis, é um alívio, e mesmo uma delícia, gritar freneticamente e atirar-se junto com o medonho vórtice da sina onírica em qualquer abismo sem fundo e escancarado que possa existir. E assim foi com o pesadelo ambu-lante de Tempest Mountain. A descoberta de que dois monstros haviam assombrado o lugar causou-me um desejo insano de mergulhar na própria terra da região maldita e desenterrar, com as mãos nuas, a morte que espreitava de cada polegada do solo venenoso.

Tão logo me foi possível, visitei o túmulo de Jan Martense e escavei inutilmente onde já havia cavado antes. Um extenso desmoronamento havia apagado qualquer traço da passagem subterrânea, enquanto a chuva varrera tanta terra para dentro da escavação, que eu não poderia dizer até que profundidade havia cavado no outro dia.

Também fiz uma árdua viagem até o vilarejo distante onde a criatura letal havia sido queimada, sem muito êxito. Entre as cinzas da fatídica cabana, encontrei vários ossos, mas, aparentemente, nenhum do monstro. Os posseiros disseram que a coisa fizera apenas uma vítima, mas nisto os julguei imprecisos, pois, além do crânio completo de um ser humano, havia um outro fragmento de osso que parecia ter pertencido algum dia a um crânio humano.

Embora houvessem visto a rápida queda do monstro, ninguém poderia dizer qual era a apa-rência exata da criatura. Os que a tinham vislumbrado, chamaram-na simplesmente de um diabo. Examinando a grande árvore onde ela estivera de tocaia, não pude discernir alguma marca especial. Tentei encontrar uma trilha na floresta escura, mas nesta ocasião não consegui suportar a visão daqueles troncos grossos e do-entios ou daquelas enormes raízes serpeantes que se retorciam de maneira tão maligna antes de mergulharem no solo.

Meu passo seguinte foi vasculhar com atenção microscópica o vilarejo deserto onde a morte comparecera com maior freqüência e onde Arthur Munroe vira algo que não vivera para descrever. Apesar de haver-me esmerado nas buscas anteriores, agora eu tinha novos dados para testar, pois meu horrível rastejar sepulcral me convencera de que ao menos uma das fases da monstruosidade havia sido uma criatura subterrânea. Desta vez, em 14 de novembro, minha busca concentrou-se nas encostas da Cone Mountain e da Maple Hill com vista para o infausto vilarejo, e dei uma atenção toda especial à terra solta da região do deslizamento nesta última elevação.

A tarde de minha busca não revelou nada, e o crepúsculo chegou quando eu estava na Ma-ple Hill olhando para baixo, para o vilarejo e, por sobre o vale, para a Tempest Mountain. O pôr-do-sol fora estupendo e agora a lua surgira quase cheia, inundando de prata a planície, a encosta distante e os curiosos outeiros baixos que se erguiam aqui e ali. Era um cenário tranqüilo, bucólico, mas, sabendo o que ele ocultava, eu o detestei. Detestei a lua zombeteira, a planície hipócrita, a montanha festiva e aqueles outeiros sinistros. Tudo me parecia maculado por um contágio abjeto e inspirado por uma associação espúria que encobria potências ocultas.

Então, enquanto olhava absorto para a paisagem enluarada, meu olhar foi atraído por alguma coisa singular na natureza e na disposição de alguns elementos topográficos. Sem ter um conhecimento preciso de geologia, desde o início eu me havia interessado pelos curiosos montes e outeiros da região. Havia notado que eles estavam distribuídos em toda a roda da Tempest Mountain, embora fossem menos numerosos na planície do que perto do próprio cume da montanha, onde a glaciação pré-histórica certa-mente havia encontrado menor oposição para suas caprichosas e fantásticas investidas.

Agora, à luz daquela lua baixa que projetava sombras longas, misteriosas, ocorreu-me que os diversos pontos e linhas do sistema de montes tinham uma relação peculiar com o cume da Tempest Mountain. Aquele cume era com certeza o centro de onde irradiavam, indefinida e irregularmente, as linhas ou fileiras de pontos, como se o abjeto solar Martense lançasse tentáculos visíveis de pavor. A idéia da existência desses tentáculos provocou-me um calafrio inexplicável, e eu parei para analisar meus motivos para acreditar que aqueles outeiros eram um fenômeno glacial.

Quanto mais eu analisava, menos acreditava, e, em minha mente recém-desperta, começaram a martelar analogias grotescas, horríveis, relacionadas a certos aspectos da superfície e da minha experiência subterrânea. Antes que desse por isso, estava balbuciando palavras desconexas: “Meu Deus!... montículos de toupeiras... o maldito lugar deve estar coalhado... quantos... aquela noite no solar... elas pegaram Bennet e Tobey primeiro... um de cada lado...”. Logo depois eu estava cavando freneticamente no montículo que me ficava mais próximo, cavando com desespero, tremendo, mas quase em júbilo, cavando até que enfim soltei um grito com uma espécie de emoção deslocada quando dei com um túnel, ou toca, como aquele onde havia rastejado naquela outra noite infernal.

Depois disso, lembro-me de ter corrido com a pá na mão, uma corrida medonha pelas campinas enluaradas eriçadas de pequenos morros e pelos precipícios doentios da assombrada floresta da encosta, saltando, gritando, ofegando, rumando para o terrível solar Martense. Lembro-me de ter cavado irracionalmente em todas as partes do porão atulhado de urzes, cavado para encontrar o cerne e o centro daquele universo maligno de montes. E, depois, lembro-me de como ri ao dar com a passagem, a abertura na base da velha chaminé, onde o mato espesso crescia projetando sombras singulares à luz da única vela que trazia comigo. O que ainda restava em baixo naquela colméia infernal, emboscado e à espera de ser convocado pelo trovão, eu não sabia. Dois haviam sido mortos; talvez aquilo houvesse acabado com eles. Mas havia ainda aquela vontade ardente de atingir o âmago do segredo do medo, que, uma vez mais, eu viera a considerar definido, material e orgânico.

Minhas indecisas especulações sobre se deveria explorar a passagem sozinho e imediatamente com minha lanterna ou tentar reunir um grupo de colonos para a busca foram interrompidas alguns instantes depois por uma súbita rajada de vento, vinda de fora, que apagou a vela, deixando-me na mais absoluta escuridão. A Lua já não brilhava através das frinchas e aberturas acima de mim e, com uma sensação de fatídico alarme, eu ouvi o sinistro e agourento rumor da tempestade aproximando-se.

Uma confusa associação de idéias apossou-se de meu cérebro, levando-me a caminhar às apalpadelas até o canto mais distante do porão. Meus olhos, porém, não se desviaram em nenhum momento da horrível abertura na base da chaminé, e pude vislumbrar os tijolos derrubados e as urzes doentias quando o brilho tênue dos relâmpagos transpunha a mata externa e iluminava as frinchas do alto da parede. A cada segundo, uma mistura de medo e curiosidade me consumia. O que a tempestade chamaria — teria sobrado alguma coisa a ser chamada? Guiado por um relâmpago, acomodei-me atrás de uma densa moita de arbustos que me permitia observar a abertura sem ser visto.

Se Deus tiver piedade, algum dia apagará de minha consciência a visão que eu tive e irá deixar-me viver em paz os anos que me restam. Não consigo dormir à noite e preciso tomar soníferos quando troveja. A coisa aconteceu abruptamente, sem aviso: a correria infernal como que de ratos de abismos remotos e impensáveis, o arquejar demoníaco e os grunhidos abafados e, então, daquela abertura embaixo da chaminé, a monumental irrupção de vida morfética — uma abjeta maré de corrupção orgânica mais devastadoramente medonha que a mais negra das conjurações de loucura e morbidez mortais.

Espumando, fervendo, borbulhando como a gosma de uma serpente, ela arrastou-se para fora daquela abertura escancarada, espalhando-se como um contágio purulento e escorrendo para fora do porão por cada ponto de saída — escorrendo para fora para se espalhar pela mata amaldiçoada no meio da noite, disseminando o medo, a loucura e a morte.

Deus sabe quantos poderiam haver — deviam ser milhares. Era estarrecedor ver aquela torrente deles sob os clarões intermitentes dos relâmpagos. Quando seu número reduziu-se o suficiente para poderem ser vistos como organismos separados, percebi que eram demônios, ou macacos, cabeludos, deformados e anãos — caricaturas monstruosas e diabólicas dos símios. Eram tão abjetamente silenciosos, que mal se ouviu um guincho quando um dos últimos des-garrados virou-se com a habilidade de uma longa prática para se servir, de modo habitual, de um companheiro mais fraco. Outros agarraram o que sobrou e comeram com avidez, babando de satisfação. Depois, apesar do susto e da repugnância, minha curiosidade mórbida triunfou, e, quando a última das monstruosidades esgueirou-se sozinha daquele misterioso mundo inferior de pesadelo, saquei a automática e disparei nela encoberto pelo trovão.

Sombras uivantes, deslizantes, torrenciais daquela gosmenta loucura vermelha caçando-se mutuamente por intermináveis passagens ensangüentadas de fulgurante céu purpurino...; fantasmas informes e mutações caleidoscópicas de uma cena fantasmagórica relembrada; florestas de carvalhos monstruosos hipertrofiados com raízes serpeantes retorcendo-se e sugando os humores inomináveis de uma terra verminosa povoada por milhões de monstros canibais; tentáculos em forma de montículos de terra tateando de núcleos subterrâneos de perversão poliposa...; raios enfurecidos sobre paredes cobertas de heras malignas e arcadas demoníacas asfixiadas pela vegetação bolorenta... Deus seja louvado pelo instinto que me levou inconsciente a lugares habitados por gente, ao pacífico vilarejo adormecido sob as plácidas estrelas do céu cristalino.

Em uma semana me recompus o suficiente para convocar um grupo de homens de Albany para explodir com dinamite o solar Martense e todo o cume da Tempest Mountain, obstruir todas as covas-montículos que encon-trasse e destruir certas árvores hipertrofiadas cuja existência parecia um insulto à sanidade mental. Consegui dormir um pouco depois de terem feito isso, mas jamais terei o verdadeiro repouso enquanto recordar aquele inominável segredo do medo à espreita. A coisa irá perseguir-me, pois quem poderá saber se o extermínio foi completo e se fenômenos análogos não poderão existir no mundo todo? Sabendo tudo que eu sei, quem poderia pensar nas cavernas ocultas da Terra sem um pavor infernal de futuras possibilidades? Não posso ver um poço ou uma entrada do trem metropolitano sem estremecer... Por que os mé-dicos não me dão algo para dormir ou para tranqüilizar de fato meu cérebro quando troveja?

O que vi sob o facho da lanterna depois de atirar na coisa indescritível retardatária foi tão simples, que quase um minuto se passou até eu compreender e ficar fora de mim. A coisa era nauseante, um imundo gorila esbranquiçado com presas agudas amareladas e pelagem emaranhada. Era o produto final da degeneração mamífera, o pavoroso resultado da proliferação, multiplicação e alimentação canibalesca isoladas em cima e em baixo da superfície do solo, a encarnação de todo o rosnante, caótico e sorridente pavor que espreita por trás da vida.

Ela olhou para mim enquanto morria, e seus olhos tinham a mesma qualidade estranha que marcava aqueles outros olhos que me haviam fitado no subterrâneo e instigado nebulosas recordações. Um olho era azul, o outro castanho.

Eram os olhos desiguais dos Martense de que falam as velhas lendas, e eu soube, num torrencial cataclismo de horror indizível, o que se havia passado com a família desaparecida, com a terrível casa de Martense ensandecida pelo trovão.

FONTE:

site LENDAS E CONTOS ASSOMBROSOS (http://contosassombrosos.blogspot.com)

22.1.09

UM SUSSURRO NAS TREVAS

Mais uma vez a Câmara brinda seus leitores com um conto clássico; mestre maior da literatura de terror, H.P.Lovecraft está de volta com um de seus contos mais famosos e arrepiantes. Boa leitura!


Um Sussurro nas Trevas

H. P. Lovecraft


FAÇO QUESTÃO de frisar que não me vi diante de qualquer horror concreto final das contas. Dizer que um choque mental foi a causa do que inferi - a gota d'água que me fez fugir em disparada da solitária fazenda de Akeley, pelos morros em meia-lua de Vermont, num veículo de que lancei mão sem-cerimônia — equivale a ignorar os fatos mais simples de minha experiência final. Não obstante a enormidade das coisas que vi e escutei, e apesar da confessada nitidez da impressão que tais coisas produziram em mim, mesmo agora não posso provar se eu estava certo ou errado em minha terrível inferência. Afinal de contas, o desaparecimento de Akeley nada prova. Não se encontrou nada de estranho em sua casa, apesar das marcas de balas por dentro e por fora. Era como se ele houvesse saído casualmente para um passeio pelas colinas e não voltasse. Não havia sequer sinais de um hóspede ou de que aqueles horríveis cilindros e máquinas tivessem ficado guardados no estúdio. Por outro lado, nada significa também o fato de que ele temesse mortalmente as inúmeras colinas verdes e os regatos intermináveis entre os quais nascera e se criara, pois milhares de pessoas estão sujeitas a esses mesmos receios mórbidos. A excentricidade, ademais, poderia facilmente explicar os atos estranhos e as apreensões esquisitas que ele vinha demonstrando ultimamente.
No que me diz respeito, tudo começou com as inundações que assolaram o Vermont a 3 de novembro de 1927, um desastre sem precedentes. A esse tempo, como ainda hoje, eu lecionava literatura na Universidade de Miskatonic em Arkham, Massachusetts, e nutria um interesse ardoroso pelo folclore da Nova Inglaterra. Pouco tempo depois da cheia, em meio ao grande número de notícias que davam conta de sofrimentos, infortúnios e assistência organizada aos desabrigados, começaram a aparecer na imprensa notas esquisitas sobre coisas que desciam por alguns dos rios mais engrossados. Assim, muitos amigos meus se entregaram a discussões acaloradas sobre a questão e me procuraram na esperança de que eu pudesse esclarecê-la de algum modo. Senti-me envaidecido ao ver meus estudos de folclore serem levados a sério e fiz o que me foi possível para depreciar as histórias absurdas e mal articuladas que pareciam ser, evidentemente, resultado de antigas superstições rurais. Divertia-me ver tantas pessoas educadas insistindo em que algum estrato de verdades obscuras e distorcidas talvez embasassem a boataria.
Os relatos trazidos à minha atenção chegavam sobretudo na forma de recortes de jornais; no entanto, uma das narrativas tinha uma fonte oral e foi repetida a um amigo meu numa carta enviada por sua mãe, que residia em Hardwick, Vermont. O gênero do fato descrito era essencialmente o mesmo em todos os casos, ainda que parecesse haver três instâncias distintas — uma ligada ao rio Winooski, perto de Montpelier, outra associada ao rio Ocidental, no condado de Windham, depois de Newfane, e uma terceira relacionada ao rio Passumpsic, no condado de Caledônia, ao norte de Lyndonville. É claro que vários recortes mencionavam outros episódios, mas, bem analisados, todos pareciam resumir-se nesses três. Em cada um dos casos, pessoas do campo informavam ter visto um ou mais objetos notáveis e estranhíssimos nas águas caudalosas que desciam dos montes pouco freqüentados, e havia a tendência generalizada de se associar essas visões a um ciclo primitivo e meio esquecido de lendas reticentes que os mais velhos ressuscitaram.
As pessoas acreditavam ver formas orgânicas que não se assemelhavam a nada que já houvessem visto. Havia, naturalmente, muitos cadáveres humanos que desciam as correntes naquele período trágico, mas as pessoas que descreviam aquelas formas estranhas asseveravam estarem certas de que não eram humanas, apesar de uma ou outra similitude superficial de tamanho e contorno geral. Tampouco poderiam ser qualquer espécie de animal conhecido no Vermont, diziam as testemunhas. Eram coisas rosadas, com mais ou menos um metro e meio de comprimento, com corpos crustáceos dotados de grandes pares de barbatanas dorsais ou asas membranosas, além de vários conjuntos de membros articulados, e que mostrava uma espécie de elipsóide torcida, coberta de inumeráveis antenas, curtíssimas, no lugar onde normalmente estaria uma cabeça. Fato notável era a estreita coincidência das descrições, oriundas de fontes diferentes. No entanto, o espanto era minorado pelo fato de que as velhas lendas, em dada época correntes em toda a região das montanhas, fornecia uma imagem morbidamente vívida que bem poderia ter influenciado a imaginação de todas as supostas testemunhas. Cheguei à conclusão de que tais testemunhas -sempre interioranos ingênuos e simples — teriam visto, de relance, os corpos mutilados e inchados de pessoas ou animais domésticos nas torrentes em turbilhão; depois, haviam permitido que o folclore, ainda conservado no fundo da lembrança, atribuísse a esses restos feições fantásticas.
O antigo folclore, ainda que nebuloso, evasivo e em grande parte esquecido pela presente geração, tinha caráter singularíssimo e obviamente refletia a influência de crendices indígenas ainda mais recuadas. Conquanto nunca tivesse estado no Vermont, eu conhecia bem aquelas narrativas, através da raríssima monografia de Eli Davenport, que compreende material obtido oralmente, antes de 1839, entre os habitantes pioneiros do Estado. Esse material, ademais, coincidia de perto com as histórias que eu havia escutado pessoalmente de campônios idosos nas montanhas de New Hampshire. Em síntese, aludia a uma raça oculta de seres monstruosos, que habitariam algum ponto das montanhas mais remotas - nas densas florestas dos picos mais altos e nos vales sombrios por onde correm riachos provenientes de nascentes ignotas. Pouquíssimas vezes esses seres eram vistos, porém indícios de sua presença eram trazidos por aqueles que se aventuravam em certas montanhas ou se embrenhavam em determinados desfiladeiros fundos e apertados que até mesmo os lobos evitavam.
Havia estranhas marcas de pés ou garras na lama à beira dos ribeirões e em tratos inóspitos, bem como curiosos círculos de pedras, em torno das quais a grama desaparecera, e que não pareciam ter sido dispostos ou inteiramente moldados pela natureza. Havia, ainda, certas cavernas de duvidosa profundidade nas encostas das montanhas; suas bocas estavam fechadas, por matacões, de um modo dificilmente acidental e um número mais que razoável de pegadas seguia na direção dessas entradas, ou saíam delas - se é que, na verdade, a direção de tais pegadas podia ser avaliada com justeza. E, acima de tudo, havia as coisas que pessoas aventurosas tinham contemplado, ainda que muito raramente, no crepúsculo dos vales mais remotos e nas impenetráveis matas perpendiculares, para além dos limites normais até onde os montes eram escalados.
Seria menos inquietante se os relatos esparsos sobre tais criaturas não se coadunassem tão bem. Na verdade, quase todos os boatos tinham vários pontos em comum; levavam a crer que as criaturas eram uma espécie de enorme caranguejo vermelho-claro, com diversos pares de pernas e duas grandes asas, como de morcego, no meio do dorso. Às vezes caminhavam com todas as pernas, em outras ocasiões usavam somente o par mais anterior, utilizando os demais membros para carregar grandes objetos de natureza indeterminada. De certa feita, tinham sido vistos em grande número, e em um grupo menor estava a vadear um raso curso d'água num bosque; eram três daquelas criaturas, caminhando numa formação disciplinada. De outra vez, um deles tinha sido visto voando. Lançara-se do alto de uma colina desnuda e solitária, à noite, e desaparecera no céu, mas antes disso suas grandes asas haviam sido silhuetadas contra a lua cheia.
De maneira geral, tais criaturas pareciam não se interessar pêlos seres humanos, muito embora de vez em quando fossem responsabilizados pelo sumiço de pessoas de caráter mais aventureiro... principalmente daquelas que construíam casas perto demais de determinados vales ou nas proximidades do topo de certas montanhas. Muitas localidades passaram a ser consideradas como inadequadas para se viver nelas, e a idéia persistia muito depois de se haver esquecido a causa de tal opinião. As pessoas levantavam os olhos para alguns dos precipícios no alto de montanhas vizinhas com um sobressalto, mesmo quando não pensavam no número de colonos que ali haviam desaparecido ou em quantas casas haviam sido reduzidas a cinzas nas encostas mais baixas dessas graves e verdes sentinelas.
No entanto, muito embora as lendas rezassem que as criaturas só pareciam fazer mal àqueles que lhes invadiam a privacidade, mais tarde surgiram relatos a respeito de sua curiosidade em relação aos homens e sobre suas tentativas de implantar postos avançados no mundo humano. Falavam-se das insólitas marcas de garras que haviam sido percebidas ao redor de janelas de fazendas, de manhã, e de desaparecimentos de pessoas em regiões além das áreas obviamente assombradas por tais seres. Havia, ademais, comentários sobre vozes que zumbiam, imitando a fala humana, e que faziam surpreendentes ofertas a viajantes solitários em estradas e trilhas nas densas florestas, bem como sobre crianças que teriam ficado horrivelmente assustadas com coisas vistas ou ouvidas nas florestas virgens, que às vezes chegavam até o quintal de suas casas. Na série final de lendas — a série que precedera de imediato o declínio da superstição e o abandono de contacto mais estreito com os lugares temidos - havia referências medrosas a ermitões e fazendeiros solitários que, num ou outro período de suas vidas, pareciam ter sofrido uma repelente alteração mental, pessoas que eram evitadas ou das quais se murmurava que se haviam vendido a seres estranhos. Num dos condados do nordeste parece mesmo que esteve em moda, por volta de 1800, acusar misantropos de serem aliados ou representantes daquelas criaturas repugnantes.
Quanto à natureza de tais criaturas, as explicações naturalmente discrepavam. O nome que se dava a eles mais comumente era "aqueles" ou "os antigos", ainda que outros termos tivessem utilização local ou efêmera. É possível que a maioria dos colonos puritanos os encarassem simplesmente como parentes do demônio, tornando-os objeto de amedrontada especulação teológica. As pessoas cuja ascendência os faziam conhecedoras de lendas célticas - sobretudo os escoceses-irlandeses de New Hampshire, bem como ramos dessa etnia que se haviam fixado em Vermont por terem ganho terras do governador Wentworth - ligavam tais criaturas, vagamente, às fadas malignas e às "pessoinhas" dos pântanos e brejos, e se protegiam com encantamentos mal recordados e que eram passados de geração a geração. No entanto, eram os índios que possuíam as teorias mais fantásticas. Conquanto as lendas diferissem de tribo para tribo, havia um acentuado consenso com relação a determinadas características essenciais; as lendas indígenas afirmavam, todas elas, que as criaturas não pertenciam a este mundo.
Os mitos dos Pennacook, que eram os mais coerentes e pitorescos, diziam que os Alados provinham da Grande Ursa, e que possuíam minas em nossas montanhas, donde extraíam uma espécie de pedra que não podiam conseguir em nenhum outro mundo. Não residiam na Terra, afirmavam os mitos, mas tão-somente mantinham aqui postos avançados, e depois de haverem minerado enormes quantidades daquela pedra, voavam com a carga para suas estrelas no norte. Só faziam mal às pessoas que se aproximavam excessivamente deles ou que os espionavam. Os animais os evitavam devido a uma aversão instintiva, e não porque fossem por eles perseguidos. As criaturas não podiam comer as coisas e os animais da Terra, e por isso traziam seu próprio alimento das estrelas. Fazia mal chegar perto delas, e certos caçadores jovens que se haviam aventurado pêlos morros onde habitavam nunca mais tinham regressado. Também não era bom escutar o que sussurravam à noite nas florestas, com suas vozes semelhantes às das abelhas e que tentavam arremedar os sons humanos. As criaturas conheciam as línguas de todas as raças de homens -Pennacooks, Hurons, homens das Cinco Nações - mas, ao que parecia, não possuíam idioma próprio, nem precisavam disso. Conversavam com suas cabeças, que mudavam de cor para indicar o que desejavam.
Todas essas lendas, é claro, tanto as dos índios como as dos brancos, morreram durante o século XIX, e só ocasionalmente ressurgiam aqui e ali, como um atavismo. Os costumes dos naturais do Vermont se fixaram; e tão logo suas estradas habituais e seus locais de residência passaram a obedecer a um certo plano fixo, eles foram se esquecendo gradativamente quais medos e receios haviam determinado qual plano, e acabaram por esquecer até mesmo que tinham existido medos e receios. Na maioria, as pessoas sabiam apenas que certas regiões montanhosas eram consideradas altamente insalubres, que ali as terras eram ruins ou "azarentas", e que quanto mais longe delas se estivesse, melhor. Com o tempo, as marcas do hábito ou do interesse econômico ficaram de tal maneira gravadas que deixou de haver motivo para que as pessoas saíssem dos locais que eram aprovados, e assim as montanhas assombradas ficaram abandonadas, mais por acidente do que por intenção. Salvo por ocasião de raros surtos locais de medo, somente vovós amantes de prodígios ou octogenários saudosistas se referiam, de vez em quando e em murmúrios, a seres que habitariam aqueles montes. Mas mesmo essas pessoas admitiam que não havia muito o que temer de tais seres, agora que se haviam acostumado à presença de casas e povoados e que os homens haviam deixado inteiramente o território escolhido por tais criaturas.
Eu havia tomado conhecimento de tudo isso em minhas leituras e em certas histórias coletadas em New Hampshire. Assim, quando começaram a aparecer os boatos, por ocasião das cheias, percebi facilmente de que lastro folclórico provinham. Expliquei tudo isso pormenorizadamente a meus amigos, e foi com hilaridade que constatei que várias almas ingênuas continuavam a insistir em que talvez existisse uma pitada de verdade nos relatos. Essas pessoas tentavam observar que as lendas antigas mostravam uma persistência e uma uniformidade significativas, e que a natureza praticamente inexplorada das montanhas do Vermont fazia com que fosse inconveniente sermos dogmáticos com relação ao que poderia existir ou não nelas; tampouco essas pessoas se deixavam persuadir por meu argumento de que todos os mitos obedeciam a um molde conhecido, comum à maior parte da humanidade, e que haviam sido formadas em fases primitivas de experiência imaginativa, que sempre produziam o mesmo tipo de ilusão.
De nada valeu demonstrar a esses obstinados que os mitos do Vermont diferiam pouquíssimo, em essência, daquelas lendas universais de personificação natural que haviam enchido o mundo antigo com faunos, dríades e sátiros, que haviam sugerido os kallikanzarai da Grécia moderna ou dado ao País de Gales e à Irlanda suas crenças em raças estranhas, pequenas e ocultas de trogloditas e seres subterrâneos. Não adiantou, da mesma forma, apontar a crença, de semelhança ainda mais notável, dos nepaleses das montanhas nos temidos Mi-Go ou "abomináveis homens das neves", que segundo eles se escondem entre o gelo e os pináculos rochosos dos cumes do Himalaia. Quando terminei de expor tudo isso, meus oponentes usaram contra mim minha própria argumentação, alegando que tais lendas só podiam indicar alguma realidade histórica original; que justamente a universalidade desses mitos indicava a existência real de alguma estranha raça terrestre mais antiga que os homens, que havia sido levada a se ocultar nos ermos depois do advento e a dominação da humanidade, e que possivelmente teria sobrevivido em número cada vez menor até épocas relativamente recentes. . . ou mesmo até o presente.
Quanto mais eu zombava dessas teorias, mais esses amigos cabeçudos as sustentavam; acrescentavam que mesmo sem a herança de tais lendas, os relatos recentes eram por demais claros, coerentes, detalhados e sadiamente prosaicos para serem de todo ignorados. Dois ou três extremistas fanáticos chegaram ao ponto de insinuar possíveis significados nos antigos mitos indígenas, que davam aos seres ocultos uma origem extraterrestre; para corroborar o que diziam, citaram os livros bizarros de Charles Fort, autor que afirma que viajantes de outros mundos e do espaço remoto têm visitado a Terra com freqüência. A maior parte de meus adversários, entretanto, era formada por românticos que insistiam em transferir para a vida real os mitos fantásticos de "pessoinhas", popularizados pela esplêndida literatura de horror de Arthur Machen.
II
Como era natural nas circunstâncias, esse acalorado debate terminou chegando à imprensa, na forma de cartas ao Arkham Advertiser; algumas dessas cartas foram transcritas nos jornais das regiões do Vermont de onde vinham os relatos das cheias. O RutlandHerald estampou meia página de excertos das cartas, defendendo ambos os lados da questão, ao passo que o Brattleboro Reformer reproduziu na íntegra um de meus longos ensaios históricos e mitológicos, que saiu acompanhado de comentários que apoiavam e aplaudiam minhas céticas conclusões. Na primavera de 1928 eu me havia transformado quase numa celebridade em todo o Vermont, apesar do fato de nunca ter posto os pés nesse Estado. Foi então que vieram as cartas desafiadoras de Henry Akeley, que me impressionaram de modo tão profundo e que me levaram, pela primeira e última vez, ao reino fascinante de precipícios verdes e murmurantes regatos de florestas.
A maior parte do que sei a respeito de Henry Wentworth Akeley foi obtido através de correspondência com seus vizinhos e com seu filho único, residente na Califórnia, depois de minha experiência em sua fazenda solitária. Ele era, como vim a descobrir, o último representante, em sua terra natal, de uma longa e eminente estirpe de juristas, administradores e fidalgos lavradores. Nele, contudo, a família se desviara de assuntos práticos para a erudição pura; de modo que ele se fizera um notável estudioso de matemática, astronomia, biologia, antropologia e folclore, na Universidade de Vermont. Antes disso, eu nunca tinha ouvido falar dele, nem ele forneceu muitos elementos autobiográficos em suas comunicações. No entanto, à primeira vista percebi tratar-se de homem de caráter, educação e letras, ainda que fosse um misantropo, com pouco ou nada de vaidades mundanas.
Apesar da total implausibilidade do que ele afirmava, não me foi possível deixar de levar Akeley mais a sério do que eu havia levado todos os demais contestadores de meus pontos de vista. Para começar, ele se encontrava realmente próximo aos fenômenos reais — visíveis e tangíveis — sobre os quais teorizava de maneira tão grotesca; e, em segundo lugar, e isso era extraordinário, ele estava disposto a deixar suas conclusões sem um arremate definitivo, como procederia um verdadeiro homem de ciência. Não o moviam quaisquer preferências pessoais, e era sempre orientado por aquilo que considerava ser provas categóricas. É evidente que desde o começo julguei-o enganado, mas respeitei-o por se enganar de maneira inteligente; e em momento algum imitei alguns de seus amigos, que atribuíam suas idéias, tanto quanto o medo que ele nutria pêlos solitários montes verdes, à insanidade mental. Eu percebia que o homem era digno de ser levado em conta, e sabia que o que ele afirmava decorria certamente de alguma circunstância estranha que merecia investigação, por menor que fosse sua relação com as causas fantásticas que ele aceitava. Mais tarde, vim a receber dele certas provas materiais que colocaram a questão num plano um tanto diferente e espantosamente absurdo.
A melhor coisa que posso fazer consiste em transcrever por inteiro, na medida do possível, a longa carta com que Akeley se apresentou, e que constituiu marco tão importante em minha própria história intelectual. Essa carta não está mais comigo, porém minha memória guarda quase todas as palavras de sua inacreditável mensagem; e mais uma vez reitero minha confiança na sanidade do homem que a escreveu. Eis o texto, que chegou às minhas mãos na caligrafia trôpega e arcaizante de uma pessoa que, evidentemente, não tivera muito a ver com o mundo durante sua vida de recluso erudito.
Townshend, Windham County, Vermont 5 de maio de 1928
Exmo. Sr.
ALBERT N. WILMARTH RUA SALTONSTALL, 118 ARKHAM, MASSACHUSETTS
Prezado Senhor:
Foi com grande interesse que li a transcrição, no Brattleboro Reformer de 23-IV-28, de sua carta sobre as recentes histórias sobre corpos estranhos que foram avistados flutuando nas cheias de nossos rios no outono p.p. e sobre as curiosas lendas com que tão bem coincidem. É fácil entender o motivo que levaria um forasteiro a assumir a atitude que o senhor defende, e até mesmo por que o redator dos comentários do jornal concorda com o senhor. Essa é a atitude que em geral assumem as pessoas educadas, tanto no Vermont como fora do Estado, e foi também minha própria atitude na juventude (tenho agora 57 anos), antes que meus estudos, tanto os de natureza geral quanto os realizados com base no livro de Davenport, me levassem a realizar algumas explorações em partes dos montes daqui que habitualmente não são visitados.
Fui conduzido a esses estudos pelas estranhas narrativas antigas que eu costumava ouvir da boca de lavradores idosos, nada letrados; mas hoje penso que oxalá não me tivesse interessado absolutamente por esses assuntos. Posso dizer, sem falsa modéstia, que as disciplinas da antropologia e do folclore não me são de modo algum estranhas. Estudei-as aprofundadamente na universidade, e estou familiarizado com as obras das autoridades mais acatadas, como Tylor, Lubbock, Prazer, Quatrefages, Murray, Osborn, Keith, Boule, G. Elliott Smith, etc. Não é novidade para mini que histórias sobre raças ocultas são tão antigas quanto a própria humanidade. Li as transcrições de cartas suas, e de outras que concordam com elas, no RutlandHerald, e suponho que sei em que pé se encontra no momento a controvérsia.
O que lhe desejo dizer nesta carta é que, em minha opinião, seus oponentes acham-se mais perto da verdade do que o senhor, muito embora a racionalidade pareça estar de seu lado. Aquelas pessoas acham-se mais perto da verdade do que elas próprias imaginam, pois evidentemente guiam-se somente pela teoria, e não podem saber aquilo que eu sei. Se eu soubesse tão pouco sobre o assunto quanto elas sabem, eu me sentiria justificado em pensar como elas. Eu estaria inteiramente do lado do senhor.
Como o senhor pode perceber, estou-me retardando em circunlóquios, provavelmente porque na verdade tenho medo de tocar no assunto que desejo expor. A verdade nua e crua é que possuo provas concretas de que coisas monstruosas realmente vivem nas florestas dos montes altos que ninguém visita. Não vi nenhuma das coisas que, tal como noticiado, estiveram flutuando rio abaixo, mas vi coisas semelhantes, em circunstâncias que não gostaria de descrever. Já vi pegadas, e de algum tempo a esta parte as tenho visto mais perto de minha própria casa (resido na antiga propriedade dos Akeley, ao sul de Townshend, do lado do monte Escuro) do que ouso lhe contar. E entreouvi vozes nas florestas, em certos pontos delas, vozes que nem tentarei descrever por escrito.
Num desses sítios, escutei-as com tamanha intensidade que levei para lá um fonógrafo, equipado com um ditafone e cera virgem, e farei o possível para que o senhor tenha oportunidade de escutar a gravação que fiz. Reproduzi essa gravação para algumas das pessoas mais idosas daqui, e uma das vozes quase as paralisou de medo, em virtude de sua semelhança com uma certa voz (a voz zumbidora das florestas mencionada por Davenport) sobre a qual falavam suas avós e que elas tentavam imitar. Sei muito bem o que a maioria das pessoas pensa a respeito de um homem que diz "ouvir vozes". . . Mas antes que o senhor tire conclusões, peco-lhe que escute a gravação e pergunte a alguns dos moradores mais velhos destes ermos o que pensam a respeito. Se o senhor puder explicá-la em termos normais, muito bem; mas tem de haver alguma coisa por trás disso. Ex nihilo nihilfit, como o senhor sabe.
Meu intuito ao lhe escrever não consiste em iniciar uma polêmica, mas sim passar-lhe informações que, em meu entender, um homem com seus interesses julgará bastante interessantes. O que lhe digo aqui é particular. Publicamente, estou de seu lado, pois certas coisas me ensinam que não convém às pessoas saberem demasiado a respeito desses assuntos. Meus próprios estudos são atualmente de todo privados, e de modo algum pretendo dizer alguma coisa que atraia a atenção das pessoas e as faça visitar os lugares que explorei. É verdade, infelizmente é verdade, que existem criaturas não humanas que nos vigiam constantemente; que mantém espiões entre nós, a colherem informações. Foi de um homem desgraçado que, se era mentalmente são (e acredito que era) foi desses espiões, obtive grande parte de meu conhecimento sobre o assunto. Mais tarde ele veio a suicidar-se, mas tenho motivos para crer que existem outros atualmente.
As coisas vêm de outro planeta e são capazes de viver no espaço interestelar e de voar nele, com asas desajeitadas e potentes, que de alguma forma funcionam no éter, mas que são demasiado ineficientes na atmosfera para ser-lhes de muita valia aqui na Terra. Falarei sobre isso mais tarde, se o senhor não decidir a não me dar ouvidos, julgando-me louco varrido. Esses seres vêm até aqui a fim de obterem metais, em minas que cavam profundamente nas montanhas, e creio que sei de onde eles procedem. Não nos farão mal algum se os deixarmos em paz, mas ninguém saberá dizer o que acontecerá se nos mostrarmos demasiado curiosos com relação a eles. É evidente que um bom exército de homens teria condições de erradicar sua colônia de mineração. É isso que eles receiam que aconteça. No entanto, se tal viesse a suceder, um número maior deles viria de fora... uma quantidade inimaginável. Poderiam conquistar a Terra com toda facilidade, mas até hoje não tentaram isso porque não tiveram necessidade. Preferem deixar as coisas como estão para se pouparem trabalho.
Creio que pretendem livrar-se de mim, devido ao que descobri. Nas florestas do morro Redondo, a leste daqui, encontrei uma enorme pedra preta, com hieróglifos desconhecidos, meio desgastados pelo tempo. E depois que a trouxe para casa, tudo se tornou diferente. Se julgarem que suspeito de muitas coisas, de duas uma: ou me matarão ou me levarão para o lugar de onde vieram. De vez em quando, levam daqui homens educados, a fim de se manterem informados sobre o estado de coisas no mundo humano.
Com isso, chego a meu segundo objetivo em lhe escrever: instá-lo a abafar o atual debate, ao invés de lhe dar ainda mais publicidade. As pessoas devem ficar longe daquelas montanhas, e por isso, a curiosidade popular não deve ser de modo algum atiçada ainda mais. Só Deus sabe o perigo que já existe, causado por incorporadores e agentes imobiliários que invadem o Vermont no verão, com chusmas de visitantes que correm de um lado para o outro e enchem os morros de bangalôs malfeitos.
Apreciaria continuar a trocar correspondência com o senhor, e farei o possível para lhe mandar aquela gravação e a pedra negra (já tão erodida que fotografias não mostram muita coisa), por via expressa se o senhor assim desejar. Digo "farei o possível" porque acredito que aquelas criaturas de uma maneira ou de outra conseguem influir nas coisas por aqui. Numa fazenda perto da aldeia mora um sujeito furtivo e arrogante, Brown, que, segundo julgo, serve de espião para eles. Pouco a pouco, estão tentando me tirar do mundo, porque eu sei coisas demais a respeito do mundo deles.
É impressionante o modo como conseguem descobrir o que faço. É possível que o senhor nem receba esta carta. Creio que serei obrigado a deixar essa área do país e ir morar com meu filho em San Diego, na Califórnia, se as coisas piorarem, mas não é fácil para uma pessoa abandonar a terra em que nasceu e onde a família viveu durante seis gerações. Além do mais, dificilmente eu teria coragem de vender esta casa a alguém, agora que as criaturas passaram a observá-la de perto. Tenho a impressão de que estão procurando recuperar a pedra preta e destruir a gravação fonográfica, mas não permitirei que o façam, se puder. Possuo alguns canzarrões, policiais, que sempre os mantém a distância, pois até agora são poucos por aqui, e se locomovem com dificuldade. Tal como disse, suas asas não são de grande valia para vôos curtos em nossa atmosfera. Estou na iminência de decifrar aquela pedra (com grandes sustos e padecimentos), e tendo em vista seu conhecimento do folclore, talvez o senhor pudesse me fornecer achegas suficientes para me ajudar. Suponho que o senhor esteja a par dos tenebrosos mitos a respeito das épocas anteriores à aparição do homem na Terra — os ciclos Yog-Sothoth e de Cthulhu — aos quais há referências oblíquas no Necronomicon. De certa feita tive acesso a um exemplar dessa obra, e pelo que ouvi dizer o senhor possui um deles, guardado a sete chaves em sua biblioteca na universidade.
Para concluir, Sr. Wilmarth, acredito que, com nossos conhecimentos, possamos ser utilíssimos um para o outro. Não desejo fazer com que o senhor corra qualquer perigo, e julgo ser de meu dever adverti-lo de que manter em sua posse a pedra e a gravação não será muito seguro; no entanto, penso que o senhor achará que vale a pena correr os riscos, por amor à ciência. Irei de carro até Newfane ou Brattleboro a fim de lhe remeter o que o senhor me autorizar, pois nesses lugares os correios são mais seguros. Talvez convenha informar-lhe que atualmente vivo inteiramente sozinho, uma vez que não posso mais ter criados. Não ficam aqui por causa das coisas que tentam aproximar-se da casa de noite, e que mantêm os cães ladrando incessantemente. Fico contente ao pensar que não me enfronhei tanto nisso enquanto minha mulher era viva, pois ela teria ficado louca.
Na esperança de que não o esteja incomodando demasiado, e que o senhor decida entrar em contacto comigo, ao invés de jogar essa carta no lixo, como delírio de louco, subscrevo-me,
Atenciosamente
Henry W. Akeley
P.S. Estou providenciando cópias adicionais de certas fotografias que tirei, e que, em minha opinião, ajudarão a corroborar alguns pontos a que me referi. As pessoas mais idosas as julgam monstruosamente fiéis à realidade. Eu as enviarei em breve, se o senhor estiver interessado em vê-las.
Seria difícil descrever minha sensação ao ler esse estranho documento pela primeira vez. Segundo todas as regras comuns, eu deveria ter gargalhado ainda mais diante dessas maluquices do que das teorias, muito mais moderadas, que anteriormente me haviam levado ao riso. No entanto, havia no tom daquela carta alguma coisa que me fazia encará-la com paradoxal seriedade. Não que eu acreditasse, por um só momento, na abstrusa raça proveniente das estrelas de que falava meu correspondente; mas o fato foi que, após algumas graves dúvidas iniciais, vim a me persuadir estranhamente da sua sanidade mental e de sua sinceridade. Convenci-me também de que ele havia estado diante de algum fenômeno verdadeiro, ainda que singular e anormal, que ele não era capaz de explicar, salvo daquela maneira fantasiosa. Era forçoso crer que ele havia imaginado tudo aquilo, refleti; por outro lado, eu não podia deixar de pensar que o caso merecia investigação. O homem parecia exageradamente agitado e alarmado com alguma coisa, mas era difícil imaginar que sua aflição fosse inteiramente destituída de motivo. Mostrava-se ele bastante específico e lógico em muitas coisas. E, afinal, sua história se ajustava à perfeição a alguns mitos antigos - até com as mais desvairadas lendas indígenas.
Era bastante possível que ele tivesse realmente escutado vozes perturbadoras nas montanhas e que tivesse, com efeito, encontrado a pedra preta de que falava, apesar das inferências delirantes que tinha feito... inferências provavelmente sugeridas pelo homem que se confessara um espião a serviço dos seres alienígenas e que mais tarde se suicidara. Era fácil deduzir que esse homem devia ter sido louco varrido, mas que, provavelmente, mostrava um comportamento lógico que levara o ingênuo Akeley (já então predisposto a crer nessas coisas, devido a seus estudos do folclore) a acreditar em suas narrativas. Quanto aos fatos mais recentes... tinha-se a impressão, pela impossibilidade de Akeley manter seus criados, que seus vizinhos mais ignorantes estavam tão convencidos quanto ele que sua casa era sitiada por seres fantásticos à noite. O fato de os cães ladrarem não devia levar a conclusões apressadas.
Havia ainda a questão da gravação fonográfica, que nada fazia crer que não tivesse sido obtida da maneira por ele descrita. Aquilo devia ter uma explicação, porém. Talvez fossem ruídos de animais, enganosamente semelhante à linguagem humana, ou mesmo a fala de algum homem que perambulasse às ocultas pela floresta, de noite, um ser humano que estivesse reduzido a um estado pouco superior ao dos animais. Meus pensamentos voltavam então à pedra negra coberta de hieróglifos e a especulações sobre qual seria sua explicação. E o que dizer das fotografias que Akeley estava disposto a me enviar, e que os anciãos do lugar achavam tão terrivelmente convincentes?
Relendo a carta, com sua caligrafia garranchosa, eu senti, mais do que antes, que meus crédulos oponentes talvez estivessem mais perto da verdade do que eu havia admitido. Afinal de contas, era possível que existissem naquelas montanhas interditas alguns ermitões, solitários e talvez malformados por hereditariedade, muito embora decerto aquela história de monstros das estrelas só pudesse ser fantasia. E se nas montanhas habitava gente esquisita, a presença de corpos estranhos nas caudais não seria inteiramente absurda. Seria excessiva presunção imaginar que tanto as velhas lendas como as notícias recentes tivessem, a fundamentá-las, essa dose de verdade? Ainda assim, mesmo enquanto eu alimentava essas dúvidas, sentia-me envergonhado pelo fato de um desvario tão grande quanto a carta de Henry Akeley tê-las feito nascer em meu espírito.
Por fim, acabei respondendo a carta de Akeley, assumindo um tom de polido interesse e solicitando mais pormenores. Sua resposta me chegou às mãos quase pela volta do correio e continha, com efeito, alguns instantâneos de cenas e objetos que ilustravam o que ele tinha a contar. Ao ver de relance aquelas imagens, quando as tirei do envelope, senti uma curiosa impressão de medo e de proximidade a coisas proibidas. Isto porque, a despeito da vagueza da maioria delas, tinham uma força horrivelmente sugestiva, intensificada pelo fato de serem fotografias verdadeiras -vínculos ópticos reais com o que retratavam e produto de um processo impessoal de comunicação, sem preconceitos, falibilidade ou má fé.
Quanto mais eu olhava aquelas fotografias, mais me convencia de que eu não me enganara ao conceder seriedade a Akeley e à sua história. Evidentemente, aquelas fotos representavam prova concludente de que havia nas montanhas do Vermont alguma coisa que se situava muitíssimo além do campo de nosso conhecimento e nossa convicção ordinárias. O pior de tudo era uma pegada... uma fotografia tirada num ponto em que o sol brilhava sobre um pequeno lamaçal, em algum lugar de um planalto deserto. Que não se tratava de nenhuma falsificação grosseira, eu podia perceber num átimo, pois os seixos definidos com nitidez e as hastes de capim presentes no campo de visão proporcionavam uma clara indicação da escala e não deixavam nenhuma possibilidade de um truque, como dupla exposição. Eu chamei a coisa de "pegada", que significa "vestígio que o pé deixa no solo"; entretanto, aquilo mais se parecia à marca de uma garra. Ainda agora não posso descrevê-la direito, e o melhor que posso fazer é dizer que se assemelhava, horrendamente, à marca de uma pata de caranguejo e que parecia haver uma certa ambigüidade com relação à sua direção. Não era uma marca muito funda ou recente, mas parecia ser do tamanho de um pé humano mediano. A partir de um bulbo central, pares de pinças serrilhadas se projetavam em direções opostas. Ou seja, sua função era bastante enigmática, se é que o objeto fosse exclusivamente um órgão locomotor.
Outra fotografia (evidentemente se tratava de uma exposição prolongada, em local fortemente sombreado) mostrava a boca de uma caverna, com um rochedo arredondado fechando a abertura. No solo desnudo, à sua frente só se podia discernir uma densa trama de trilhas curiosas, e quando examinei a fotografia com uma lupa tive a certeza inquietante de que as marcas eram semelhantes à da outra foto. Um terceiro instantâneo mostrava um círculo de pedras eretas, como as levantadas pêlos druidas, no topo de um morro. Em torno do círculo críptico, a grama estava muito pisada e desgastada, muito embora eu não conseguisse detectar nenhuma marca no chão, nem mesmo com a lupa. Que o local era extremamente inóspito era evidenciado pelo verdadeiro mar de montes desabitados, que formava o fundo e se estendia em direção a um horizonte enevoado.
Entretanto, se a fotografia mais perturbadora era a da "pegada", a que despertava maior curiosidade era a da grande pedra preta achada nas matas do morro Redondo. Akeley a havia fotografado sobre uma mesa que era, obviamente, seu local de estudo, pois eu podia ver prateleiras de livros e um busto de Milton ao fundo. Como era de esperar, o objeto tinha sido fotografado em posição vertical e apresentava superfície irregularmente curva, com cerca de palmo e meio de largura por três palmos de altura. No entanto, afirmar qualquer coisa de definitivo a respeito daquela superfície ou sobre a forma geral do objeto como um todo quase ultrapassa o poder da linguagem. Que estranhíssimos princípios geométricos haviam orientado seu talhe (pois eu estava convicto de que a pedra fora talhada artificialmente), era coisa que eu não podia sequer começar a conjecturar; e nunca, até então, eu vira uma coisa que me parecesse tão esquisita e inequivocamente estranha a este nosso planeta. Quanto aos hieróglifos em sua superfície, eu podia perceber pouquíssimos, mas um ou dois que pude discernir me causaram um choque. Evidentemente, podiam ser fraudulentos, pois outras pessoas além de mim já tinham lido o monstruoso e abominável Necronomicon, de Abdul al-Hazred, o árabe louco. No entanto, senti um calafrio ao reconhecer certos ideogramas que o estudo me ensinara a relacionar aos mais enregeladores e blasfemos murmúrios de coisas que haviam tido uma espécie de semivida louca antes que se formassem a Terra e os demais planetas interiores do sistema solar.
Das cinco fotografias restantes, três eram de paisagens de pântanos e montes que pareciam mostrar vestígios de ocupação, sub-reptícia, de seres tétricos. Uma outra mostrava uma marca esquisita no solo, bem perto da casa de Akeley; segundo ele dizia, tinha tirado a fotografia de manhã, depois de uma noite em que os cães haviam latido muito mais que de costume. Estava muito desfocada, e na verdade não permitia conclusões seguras; mas assemelhava-se diabolicamente à outra marca fotografada no planalto ermo. A última fotografia era da propriedade de Akeley; um belo sobrado branco, com sótão, com seus cento e poucos anos, atrás de um gramado bem-cuidado e um caminho ladeado de pedras que levava a um portal georgiano entalhado com bom gosto. Vários canzarrões policiais, enormes, estavam sentados junto de um homem de rosto simpático, de barba grisalha e aparada, que julguei ser o próprio Akeley... que fotografara a si mesmo, como se podia inferir pelo cabo propulsor, de bulbo, em sua mão.
Das fotografias, passei à carta, redigida numa caligrafia de letras apertadas. E durante as três horas seguintes estive mergulhado num abismo de indizível horror. As questões que Akeley havia antes tratado por alto eram agora expostas em minudências; apresentava ele longas transcrições de palavras entreouvidas de noite nas florestas, longas descrições de hediondas formas rosadas avistadas ao crepúsculo entre moitas nos morros, bem como uma terrível narrativa cósmica derivada da aplicação de uma profunda e variegada erudição às intermináveis arengas do louco que se declarara espião e que se matara. Vi-me diante de nomes e termos que havia encontrado alhures, ligados às coisas mais horrendas que se podem imaginar - Yuggoth, Grande Cthulhu, Tsathoggua, R'lyeh, Nyarlahotep, Azathoth, Hastur, Yian, Leng, o lago de Hali, Bethmoora, o Signo Amarelo, L'mur-Kathulos, Bran e o Magno Inominando - e fui arrastado, por eras sem nome e por dimensões inconcebíveis, a mundos de existência prístina e remota sobre os quais o delirante autor do Necronomicon só havia feito conjecturas vaguíssimas. Ouvi falar das fontes da vida primeva, e das correntes que de lá haviam brotado; e, finalmente, do minúsculo regato que saía de uma daquelas correntes que se haviam emaranhado com os destinos de nosso próprio mundo.
Minha cabeça rodopiava. E ao passo que antes procurara dar explicações aos fatos, agora comecei a acreditar nas maravilhas mais absurdas e incríveis. O acúmulo de provas vitais era de uma vastidão e uma concludência horripilantes; e a atitude serena e científica de Akeley - uma atitude inimaginavelmente distante daquela que se poderia esperar de um demente, um fanático, um histérico ou mesmo do sonhador extravagante - exerceu um efeito tremendo em meu raciocínio e meu julgamento. Quando por fim terminei de ler a carta, pude entender os medos que ele passara a sentir, e estava pronto a fazer qualquer coisa a meu alcance a fim de manter as pessoas afastadas daqueles montes inóspitos e assombrados. Mesmo agora, depois que o tempo embotou as primeiras impressões e me faz quase questionar minha própria experiência e as dúvidas atrozes, há coisas naquela carta de Akeley que eu não gostaria de repetir ou mesmo formular por escrito. Sinto quase satisfação pelo fato de a carta, a gravação e as fotografias não existirem mais... e gostaria, por motivos que em breve esclarecerei, que o novo planeta além de Netuno nunca tivesse sido descoberto.
Com a leitura daquela tarde, terminou para sempre a polémica que eu vinha mantendo em público sobre o horror do Vermont. Argumentações apresentadas por oponentes permaneciam sem resposta ou eu as descartava com promessas, e por fim a controvérsia minguou e cessou de vez. Passei o fim de maio e o mês de junho em correspondência com Akeley; de vez em quando uma carta se extraviava, de modo que tínhamos de refazer nosso caminho e realizar um considerável trabalho de cópia. Em síntese, o que estávamos tentando fazer era comparar anotações a respeito de obscuros dados mitológicos para chegarmos a uma correlação mais clara dos horrores do Vermont com o conjunto geral de lendas primitivas.
Desde o início, concluímos que aquelas monstruosidades e o demoníaco Mi-Go himalaio pertenciam a uma única e mesma ordem de pesadelo encarnado. Havia ainda absorventes conjecturas zoológicas, que eu teria apresentado ao professor Dexter, em minha universidade, não fora Akeley haver ordenado, categoricamente, que eu nada dissesse, a qualquer pessoa, a respeito daquele assunto. Se dou mostras de desobedecer a essa determinação agora, é apenas por pensar que, nesta altura dos acontecimentos, uma advertência com relação àquelas distantes montanhas do Vermont (e sobre aqueles picos dos Himalaias, onde a cada dia que passa um maior número de ousados exploradores se aventura) é mais propício à segurança pública do que seria o silêncio. Uma atividade específica que estávamos realizando era o deciframento dos hieróglifos gravados naquela infame pedra negra — uma decodificação que bem nos poderia conduzir a segredos mais profundos e mais assombrosos que qualquer outro jamais detectado pelo homem.
III
Perto do fim de junho chegou a gravação fonográfica, remetida de Brattleboro, uma vez que Akeley não se dispunha a confiar no ramal que operava ao norte daquela localidade. Ele havia começado a ter uma crescente sensação de espionagem, agravada pelo extravio de algumas de nossas cartas; e referia-se muito aos atos suspeitos de certos homens, que ele considerava instrumentos e agentes dos seres alienígenas. Desconfiava sobretudo do soturno fazendeiro chamado Walter Brown, que morava sozinho numa casa velha, construída num morro perto das matas mais densas, e que era freqüentemente visto a perambular pelas esquinas de Brattleboro, Bellows Falls, Newfane e South Londonderry, sem nenhum motivo aparente. Akeley estava convencido de que era de Brown uma das vozes que ele havia entreouvido, em certa ocasião, travando uma conversa horrenda. E em outra ocasião havia encontrado uma "pegada" ou marca de garra perto da casa de Brown, marca essa que poderia ter o mais nefasto significado. A marca estava, curiosamente, junto de pegadas do próprio Brown — e voltada para estas.
Assim sendo, a gravação foi remetida de Brattleboro, aonde Akeley foi em seu Ford, por desertas estradas secundárias do Vermont. Confessou, num bilhete que acompanhava a gravação, que começava a sentir medo daquelas estradas e que só se dispunha a ir comprar provisões em Townshend em plena luz do dia. Não valia a pena, ele reiterava sempre, saber demasiado, a menos que se estivesse muito longe daquelas silenciosas e problemáticas montanhas. Muito em breve ele viajaria para a Califórnia, a fim de morar com o filho, embora fosse difícil abandonar um lugar no qual se concentravam todas as suas recordações, pessoais e ancestrais.
Antes de reproduzir a gravação na máquina comercia que tomei de empréstimo à administração da universidade, repassei cuidadosamente todas as explicações contidas nas diversas cartas de Akeley. A gravação, conforme ele relatava, havia sido obtida mais ou menos à l hora da manhã do dia Io de maio de 1915, perto da boca fechada de uma caverna, no ponto em que a encosta oeste da montanha Escura se ergue do pântano de Lee. Àquele lugar fora sempre atribuída a existência de vozes estranhas, sendo este o motivo pelo qual ele havia levado consigo o fonógrafo, o ditafone e a cera virgem, à espera de resultados. A experiência já lhe ensinara que a véspera do Io de maio - a medonha noite sabática das lendas européias — provavelmente seria mais frutífera que qualquer outra data, e ele não se decepcionou. Era interessante notar, contudo, que jamais voltara a escutar vozes naquele mesmo lugar.
Ao contrário da maior parte das vozes entreouvidas nas florestas, os sons contidos na gravação tinham um quê de ritualístico e entre eles havia uma voz palpavelmente humana, que Akeley nunca soubera a quem atribuir. Não era a de Brown, e parecia pertencer a uma pessoa de melhor educação. Era a segunda voz, no entanto, que constituía o busílis... pois se tratava do amaldiçoado zumbido que não parecia em nada humano, apesar das palavras humanas, pronunciadas com boa prosódia e entonação educada.
O fonógrafo e o ditafone não haviam funcionado muito bem durante todo o tempo de gravação, e havia a prejudicá-los, naturalmente, a natureza remota e abafada do ritual entreouvido; assim, o vozerio fixado na cera estava muito fragmentado. Akeley me havia enviado uma transcrição do que, segundo acreditava, diziam as vozes, e lancei um olhar ao papel, enquanto preparava a máquina. O texto tinha antes um mistério sombrio do que uma hediondez ostensiva, muito embora o conhecimento de sua origem e da maneira como havia sido obtida me transmitissem todo o horror associativo que nenhum conjunto de palavras poderia perfeitamente traduzir. Apresento-o aqui na íntegra, tal como me lembro, e estou bastante certo de que memorizei bem o texto, não só por haver lido a transcrição, mas por ter reproduzido a gravação vezes sem conta. Não se trata de uma coisa que eu pudesse esquecer facilmente!
(Sons indistintos) (Uma voz humana, masculina e educada)
...é o Senhor da Floresta, mesmo para... e as dádivas dos homens de Leng... e das fontes da noite aos abismos do espaço, e dos abismos do espaço às fontes da noite, sempre o louvor ao Grande Cthulhu, a Tsathoggua, e Àquele que Não Deve Ser Nomeado. Sejam sempre louvados, e haja abundância para o Bode Negro das Florestas. Iä! Shub-Niggurath! O Bode de Mil Filhos!
(Um zumbido imitando voz humana)
Iä! Shub-Niggurath! O Bode Negro da Floresta, de Mil Filhos!
(Voz humana)
E sucedeu que o Senhor das Florestas, estando. . . sete e nove, descendo os degraus de ônix... rende (tri)buto a Ele, o do Abismo, Azathoth, A Ele de Quem Tu nos contaste marav(ilhas)... nas asas da noite, para além do espaço, para além d. . . até Aquele de Quem o filho mais novo é Yuggoth, girando em solidão no espaço negro, na borda...
(Voz zumbidora)
...caminhai entre os homens e aprendei seus costumes, para que Ele. o do Abismo, os conheça. A Nyarlahotep. Poderoso Mensageiro, todas as coisas devem ser contadas. E Ele há de assumir a semelhança de homens, a máscara de cera e o manto que oculta, e há de descer do mundo dos Sete Sóis para zombar. . .
...(Nyarl)ahotep, Grande Mensageiro, portador de estranha alegria a Yuggoth, através do vazio, Pai do Milhão de Eleitos, Errante entre. . .
(Vozes interrompidas pelo final da gravação)
Eram essas as palavras que eu haveria de escutar quando liguei o fonógrafo. Foi com um traço de medo e relutância que premi o botão e escutei os arranhões preliminares da ponta de safira e fiquei satisfeito com o fato de as primeiras palavras, distantes e fragmentárias, serem pronunciadas por voz humana — uma voz macia e educada, com sotaque vagamente bostoniano, e que decerto não pertencia a nenhum nativo das montanhas do Vermont. Escutando aquela reprodução tantalizantemente débil, eu constatava que as palavras eram idênticas às da transcrição que Akeley havia preparado com muito cuidado. Aquela macia voz bostoniana entoava "Iä Shub-Niggurath! O Bode de Mil Filhos!..."
Foi então que ouvi a outra voz. Até hoje ainda tremo quando me lembro do que senti ao ouvi-la, embora estivesse preparado pêlos relatos de Akeley. Aquelas pessoas a quem descrevi a gravação afirmam não ver nela nada senão grosseira impostura ou loucura. Mas se pudessem escutar pessoalmente aquela coisa maldita, ou ler as cartas de Akeley, principalmente aquela segunda carta que ele me enviou, com um volume enciclopédico de informações, sei que pensariam outra coisa. Hoje, acho que foi uma pena eu não haver desobedecido a Akeley e reproduzido a gravação para outras pessoas... e foi pena, também, que todas as suas cartas tenham-se perdido. Para mim, devido a meu contacto de primeira mão com os sons e por causa do conhecimento que eu tinha das circunstâncias que cercavam sua obtenção, aquela voz era alguma coisa de monstruoso. Ela se sucedia rapidamente à voz humana no responsório do ritual, mas em minha imaginação era um eco mórbido que atravessava, sinuosamente, abismos inimagináveis que partiam de infernos inimagináveis. Faz mais de dois anos que fiz tocar pela última vez aquele blasfemo cilindro de cera; mas neste exato momento, e em qualquer outro momento, ainda escuto aquele zumbido débil e diabólico, tal como o ouvi pela primeira vez.
"Iä! Shub-Niggurath! O Bode Negro da Floresta de Mil Filhos! "
No entanto, ainda que a voz continue a soar em meus ouvidos sem cessar, até hoje não consegui analisá-la suficientemente bem para poder descrevê-la em palavras. Era como o zunido de um inseto horrendo e gigantesco que tivesse sido, por milagre, transformado na fala articulada de uma espécie alienígena, e tenho certeza absoluta de que os órgãos que o produziam não podiam ter nenhuma semelhança com os órgãos vocais do homem... ou de qualquer outro mamífero. Havia singularidade de timbre, amplitude e matizes que colocavam aquele fenômeno inteiramente fora da esfera da humanidade e da vida terrestre. A maneira súbita como começou a soar daquela primeira vez quase me aturdiu e escutei o resto da gravação numa espécie de torpor. Quando chegou a passagem mais longa daquele zumbido, houve como que uma intensificação acentuada daquela sensação de blasfema infinitude que havia tomado conta de mim durante a passagem anterior, mais curta. Por fim, a gravação terminou de repente, durante uma alocução desusadamente límpida daquela voz humana e bostoniana. Mas depois de a máquina ter-se desligado automaticamente, fiquei por longo tempo paralisado.
Creio ser excusado dizer que reproduzi aquela gravação demoníaca muitas outras vezes, e que fiz tentativas exaustivas de analisá-la e comentá-la, trocando opiniões com Akeley. Seria inútil e cansativo registrar aqui todas as conclusões a que chegamos; mas talvez não seja desinteressante observar que concordamos em que havíamos obtido uma chave para deslindar alguns dos mais repulsivos costumes daquelas insondáveis religiões antigas da humanidade. Além disso, parecia-nos claro que havia antigas e complexas alianças entre aquelas criaturas ocultas e certos membros da raça humana. Até que ponto iam essas alianças, e de que maneira se podiam comparar as que existiam hoje com as existentes em eras mais remotas, não tínhamos nenhum meio de saber. No entanto, sobrava margem para um volume ilimitado de horrorizadas conjecturas. Parecia haver um vínculo tenebroso e imemorial, em vários estágios definidos, entre o homem e a infinitude inominada. As blasfêmias que apareciam na Terra, segundo éramos levados a crer, vinham do trevoso planeta Yuggoth, nos confins do sistema solar. Contudo, esse planeta não passava do posto avançado, povoado, de uma medonha raça interestelar cuja origem suprema deveria situar-se muito além do imaginável, além mesmo do continuum espaço-tempo einsteiniano.
Nesse ínterim, continuamos a discutir a respeito da pedra preta e da melhor maneira de fazê-la chegar a Arkham, uma vez que Akeley julgava desaconselhável que eu o fosse visitar no cenário de seus estudos de pesadelo. Por algum motivo, Akeley receava confiar o objeto a qualquer meio de transporte comum ou plausível. Por fim, ele decidiu levar a pedra até Bellows Falis, de onde a embarcaria pela rede ferroviária de Boston e do Maine, através de Keene, Winchendon e Fitchburg, ainda que isso o obrigasse a dirigir por estradas mais solitárias e através de mais florestas do que a estrada principal, que passava por Brattleboro. Disse-me ele que havia observado um homem vagueando pelo escritório da transportadora em Brattleboro na ocasião em que remetera a gravação fonográfica. Era um homem cujos atos e fisionomia estavam longe de serem tranqüilizantes. Dera mostras de estar ansioso por conversar com os funcionários e havia embarcado no trem no qual a gravação fora remetida. Akeley confessou que não se sentira inteiramente tranqüilo com relação à gravação até eu haver acusado seu recebimento.
Mais ou menos nessa época — a segunda semana de julho — extraviou-se outra carta minha, como vim a saber por uma comunicação ansiosa de Akeley. Depois disso, ele me pediu que não lhe escrevesse mais para Townshed, e que enviasse toda e qualquer correspondência para a posta-restante de Brattleboro; ele faria viagens frequentes até lá, de carro ou pela linha de ônibus que havia substituído o serviço de passageiros do ramal ferroviário, cujas composições atrasavam-se constantemente. Percebi que ele se tornava cada vez mais ansioso, pois detinha-se, em suas cartas, a falar pormenorizadamente dos latidos dos cães nas noites sem lua e das marcas frescas de garras que às vezes encontrava na estrada e na lama do terreiro da fazenda, quando amanhecia. De certa feita referiu-se a um verdadeiro exército de marcas, formando uma linha fronteira a uma linha igualmente densa e resoluta de marcas das patas dos cães, e mandou-me um instantâneo fotográfico horrivelmente perturbador para comprovar o que dizia. Isso ocorreu após uma noite em que os cães haviam latido e ladrado como nunca.
Na manhã de quarta-feira, 18 de julho, recebi um telegrama expedido de Bellows Falis, no qual Akeley informava estar despachando a pedra preta pela B. & M., no trem número 5508, que partiria de Bellows Falis às 12:15 e que deveria chegar à Estação Norte de Boston às 16:12. Calculei que a encomenda certamente estaria em Arkham por volta das 12 horas do dia seguinte. Por isso, passei toda a manhã de quinta-feira em casa, a fim de recebê-la. Mas o meio-dia chegou e passou sem que a encomenda aparecesse. Quando telefonei para o escritório da companhia, fui informado de que não havia chegado nenhuma encomenda para mim. Minha próxima providência, tomada em meio a crescente alarme, consistiu em dar um telegrama interurbano para o agente da companhia, na Estação Norte de Boston; e não foi com grande surpresa que soube que meu despacho não havia aparecido. O trem 5508 havia chegado com um atraso de apenas 35 minutos na véspera, mas não havia trazido nenhum pacote endereçado a mim. Contudo, o agente prometeu realizar uma investigação. Terminei o dia remetendo a Akeley uma carta noturna em que historiava a situação.
Com louvável presteza, o escritório de Boston emitiu um relatório na tarde seguinte, e o agente telefonou assim que teve em mãos os dados. Ao que parecia, o funcionário do serviço de entregas, que viajava na composição 5508, lembrava-se de um incidente que poderia estar relacionado com minha perda: uma discussão com um homem que tinha uma voz curiosíssima, magro, de cabelos claros e aspecto rude, quando o trem parou em Keene, New Hampshire, pouco depois das 13:00.
Esse homem, disse ele, estava tomado de grande agitação por causa de uma caixa pesada que, segundo declarou, estava esperando, mas que nem estava no trem nem havia sido registrada nos livros da companhia. Dera o nome de Stanley Adams, e tinha uma voz tão rouquenha, grave e esquisita, que o empregado se sentira anormalmente tonto e sonolento por escutar o que ele dizia. O rapaz não se lembrava direito de como a conversa tinha terminado, mas afirmava que se sentira imediatamente mais desperto assim que o trem recomeçou a viagem. O agente de Boston acrescentava que esse empregado era um jovem de inteira confiança, com antecedentes conhecidos e que trabalhava na companhia há longos anos.
Naquela noite fui a Boston a fim de me entrevistar com o funcionário em pessoa, depois de obter seu nome e endereço no escritório da empresa. Tratava-se de um rapaz franco e simpático, mas constatei que ele não podia acrescentar nada a seu relato anterior. Estranhamente, não tinha muita certeza de que pudesse sequer reconhecer o estranho novamente. Compreendendo que ele não tinha mais o que informar, voltei para Arkham e passei a noite em claro, escrevendo cartas para Akeley, para a companhia e para o departamento de polícia e o agente da estação em Keene. Acreditava que o homem de voz estranha, que tão notavelmente havia perturbado o funcionário, só podia ter um papel crucial naquela situação ominosa, e eu esperava que os empregados da estação de Keene e os registros do telégrafo tivessem alguma coisa a informar sobre ele e sobre a maneira como se apresentara como destinatário da encomenda que a mim tinha sido dirigida.
Devo admitir, não obstante, que minha investigação deu em água de barreia. O homem de voz esquisita realmente tinha sido visto a perambular pela estação de Keene no começo da tarde de 18 de julho, e uma pessoa parecia associá-lo vagamente com uma caixa pesada. Entretanto, era de todo desconhecido por ali, nem tinha sido visto outra vez depois disso. Não havia ido à agência dos telégrafos nem recebido qualquer mensagem, ao que se sabia; tampouco qualquer mensagem que pudesse ser considerada referente à presença da pedra negra no trem 5508 havia sido passada pela agência, destinada a mim ou a qualquer outra pessoa. Naturalmente, Akeley também participou dessas investigações, e chegou até a fazer uma viagem pessoal a Keene, a fim de conversar com pessoas que freqüentavam a estação. No entanto, sua atitude em relação ao episódio era mais fatalista do que a minha. Parecia considerar a perda da caixa um cumprimento prodigioso e ameaçador de tendências inevitáveis, e na verdade não tinha a mínima esperança de que ela fosse recuperada. Falou a respeito dos indubitáveis poderes telepáticos e hipnóticos das criaturas das montanhas e de seus agentes, e numa de suas cartas insinuou que não acreditava que a pedra ainda estivesse neste planeta. De minha parte, senti-me verdadeiramente colérico, pois achava que havia pelo menos uma possibilidade de tomarmos conhecimento de coisas portentosas e assombrosas, a partir dos hieróglifos antigos e indistintos. Aquele caso me teria espicaçado a mente por muito tempo se as cartas seguintes de Akeley não houvessem aberto uma nova fase no tétrico problema das montanhas, e que de imediato exigiu toda minha atenção.
IV
As coisas desconhecidas, escreveu Akeley numa caligrafia que se tornava lamentavelmente trêmula, haviam começado a acuá-lo com um grau de determinação inteiramente novo. Os latidos noturnos dos cachorros, sempre que a lua se mostrava baça ou ausente, haviam-se tornado agora terríveis; além disso, houvera tentativas de molestá-lo nas estradas abandonadas pelas quais ele era obrigado a trafegar de dia. No dia 2 de agosto, seguindo em direção à vila em seu carro, ele dera com um tronco de árvore atravessado no caminho, num ponto em que a estrada cruzava um trecho denso da floresta. Os latidos desesperados dos dois canzarrões que ele levava consigo lhe mostraram perfeitamente que espécie de seres deviam estar à espreita nas proximidades. Ele não se atrevia a imaginar o que poderia ter acontecido se os cães não estivessem ali... mas agora nunca saía sem a companhia de pelo menos dois cães de sua fiel e forte matilha. Episódios análogos haviam ocorrido nos dias 5 e 6 de agosto. Da primeira vez, um tiro roçara seu carro; da segunda, os latidos dos cães indicaram novamente a presença de criaturas odientas.
No dia 15 de agosto recebi uma carta frenética, que me deixou enormemente perturbado, fazendo-me desejar que Akeley pusesse de lado sua reticência solitária e pedisse a ajuda da lei. Haviam ocorrido fatos assustadores na noite de 12 para 13, com balas zunindo pela fazenda, e três dos doze cães tinham sido encontrados mortos a tiro na manhã seguinte. Havia miríades de marcas de patas na estrada, e entre elas estavam as pegadas de Walter Brown. Akeley havia começado a telefonar para Brattleboro, a fim de obter novos cães, mas a ligação fora cortada antes que ele pudesse falar muita coisa. Mais tarde ele foi até Brattleboro de carro, e ficou sabendo ali que guardas-linhas tinham encontrado o fio principal cortado de propósito num ponto em que passava pelas montanhas desertas, ao norte de Newfane. Entretanto, estava prestes a voltar para casa, com quatro excelentes animais novos e várias caixas de munição para sua carabina de repetição. A carta tinha sido escrita nos correios de Brattleboro e chegou-me sem tardança.
A essa altura, minha atitude em relação ao assunto deixava rapidamente de ser científica para se tornar alarmadamente pessoal. Temia o que pudesse acontecer a Akeley em sua fazenda remota e solitária, e, por que não dizer, sentia também algum medo por mim mesmo, agora que eu estava decididamente ligado ao estranho problema das montanhas. A coisa estava indo mais longe. Porventura chegaria até a mim? Ao responder a carta, instei com Akeley para que ele procurasse ajuda, e insinuei que eu poderia tomar providências se ele não o fizesse. Falei em ir ao Vermont pessoalmente, a despeito de suas admoestações e em ajudá-lo a explicar a situação às autoridades. Contudo, recebi dele um telegrama, expedido de Bellows Falis, que dizia o seguinte:
AGRADEÇO SEU INTERESSE MAS VOCÊ NADA PODE FAZER PT NÃO INTERVENHA DE MODO ALGUM POIS ISSO PREJUDICARIA AMBOS PT ESPERE EXPLICAÇÃO
HENRY AKELY
Entretanto, o caso se complicava a olhos vistos. Depois que respondi esse telegrama, recebi um bilhete trêmulo de Akeley com uma notícia aterradora: não só ele jamais havia enviado aquele telegrama como tampouco recebera a carta para a qual o telegrama constituía uma óbvia resposta. Investigações apressadas em Bellows Falis revelaram-lhe que o telegrama havia sido passado por um homem esquisito, de cabelos claros, com uma voz curiosamente grossa e rouquenha. Nada mais pôde saber. O funcionário mostrou-lhe o texto original, rabiscado a lápis pelo remetente, mas a caligrafia era inteiramente desconhecida. Era visível que a assinatura tinha sido escrita erradamente, — A-K-E-L-Y —, sem o segundo "E". Certas conjecturas seriam inevitáveis, mas em meio à crise ele não parou para refletir sobre elas.
Referiu-se à morte de outros cães e à compra de outros, bem como à troca de tiros, coisa que se tornara comum a cada noite sem luar. As pegadas de Brown e de pelo menos mais um ou dois seres humanos calçados agora eram encontradas regularmente entre as marcas de garras, na estrada e no terreiro da fazenda. A situação, admitia Akeley, estava ficando insustentável. E por certo não se passaria muito tempo antes que ele tivesse de ir morar com o filho na Califórnia, vendesse ou não a propriedade. Mas não era fácil abandonar o único lugar que ele realmente podia chamar de lar. Ele tinha de tentar agüentar um pouco mais. Talvez conseguisse afugentar os intrusos, sobretudo se ostensivamente desistisse de novas tentativas de deslindar seus segredos.
Escrevi incontinenti a Akeley, reiterando minhas ofertas de ajuda, e falei novamente em visitá-lo e auxiliá-lo a convencer as autoridades do perigo atroz que ele estava correndo. Em sua resposta, ele deu a impressão de estar menos contra esse plano do que suas atitudes anteriores levariam a prever, mas disse que gostaria de esperar um pouco mais, o suficiente para ajeitar suas coisas e se conformar com a idéia de abandonar um torrão natal que ele amava quase morbidamente. As pessoas não viam com bons olhos seus estudos e especulações, e seria melhor sair dali em silêncio, ao invés de deixar a região em polvorosa e criar dúvidas generalizadas com relação à sua própria saúde mental. Ele já tinha agüentado o suficiente, admitia, mas se possível gostaria de sair dali honrosamente.
Essa carta chegou às minhas mãos no dia 28 de agosto, e logo escrevi e postei a resposta mais encorajadora de que fui capaz. Ao que parece, esse encorajamento teve efeito, pois Akeley não se mostrava tão aterrorizado como antes quando acusou o recebimento de meu bilhete. Contudo, não estava muito otimista e manifestou a opinião de que era apenas a lua cheia que estava mantendo as criaturas a distância. Ele esperava que não houvesse muitas noites de nuvens pesadas, e falou vagamente em se hospedar em algum lugar em Brattleboro quando a lua começasse a minguar. Mais uma vez dirigi-lhe uma carta animadora, mas a 5 de setembro chegou uma outra carta dele, que evidentemente havia cruzado com minha própria missiva nos correios. E a essa carta eu não podia dar resposta tão esperançosa. Em vista de sua importância, creio que seria melhor transcrevê-la na íntegra. Faço-o da melhor maneira que posso, de memória. Redigida na mesma caligrafia trêmula das cartas anteriores, ela dizia, essencialmente, o seguinte:
Segunda-feira
Prezado Wilmarth,
Esta carta constitui um post-scriptum um tanto desalentado à minha última comunicação. A noite passada foi bastante nublada, ainda que não chovesse, e não houve sequer uma réstia de luar. Foi horrível, acredito que o fim esteja se aproximando, apesar de toda nossa esperança. Passada a meia-noite, alguma coisa caiu no telhado da casa, e os cachorros correram, todos eles, para ver do que se tratava. Eu podia ouvi-los pulando e arranhando as paredes, e um deles conseguiu subir ao telhado, saltando da puxada baixa. Houve uma luta terrível lá em cima, e escutei um zumbido horroroso, que nunca mais hei de esquecer. E aí comecei a sentir um cheiro nauseabundo. Mais ou menos ao mesmo tempo, alguém começou a atirar contra a janela, e as balas quase roçaram em mim. Em minha opinião, a linha principal das criaturas das montanhas havia chegado bem perto da casa quando os cachorros se dividiram por causa do barulho no telhado. Ainda não sei o que havia lá em cima, mas creio (e tremo ao pensar nisso) que as criaturas estejam aprendendo a utilizar melhor suas asas feitas para o espaço. Apaguei a luz e comecei a procurar brechas nas janelas, e fiz a ronda da casa, disparando a carabina, alto o suficiente para não atingir os cães. Com isso, terminou a algazarra, mas de manhã encontrei grandes poças de sangue no quintal, ao lado de poças de um fluido verde e viscoso que tinha o pior cheiro que jamais senti na vida. Subi ao telhado e encontrei lá mais desse fluido viscoso. Cinco cães estavam mortos. Creio que eu mesmo atingi um deles, por atirar baixo demais, pois ele tinha sido abatido pelas costas. Agora estou consertando as vidraças destroçadas pêlos tiros e daqui a pouco vou a Brattleboro, a fim de comprar novos cães. Creio que os homens do canil me consideram louco. Espere urna carta com mais detalhes. Acho que estou disposto a viajar daqui a uma ou duas semanas, muito embora pensar nisso quase me parta o coração. Desculpe-me a pressa.
Akeley
No entanto, não foi esta a única carta a cruzar com a minha. Na manhã seguinte, 6 de setembro, recebi mais uma. Dessa vez, eram garranchos frenéticos que me deixaram inteiramente transtornado e sem saber o que dizer ou fazer. Tal como antes, acredito que o melhor a fazer seja citar o texto tão fielmente quanto me permitir a memória.
Terça-feira
O céu não limpou, de modo que hoje à noite não haverá luar mesmo. Eu teria mandado puxar energia para a casa e instalaria um refletor, se não soubesse que eles haveriam de cortar os fios tão logo eu os consertasse.
Acho que vou enlouquecer. É possível que tudo quanto lhe escrevi desde o começo seja sonho ou loucura. As coisas sempre foram horríveis, mas dessa vez passaram dos limites. Na noite passada eles conversaram comigo, naquela maldita voz de zumbido, e me disseram coisas que não me atrevo a lhe repetir. Eu os escutava claramente, acima do latido dos cachorros, e num certo momento em que silenciaram, uma voz humana os ajudou. Fique longe disso, Wilmarth... é pior do que eu ou você jamais suspeitamos. Agora não pretendem deixar que eu vá para a Califórnia. Querem me levar vivo, ou aquilo que teórica e mentalmente equivale a vivo, não só a Yuggoth, mas ainda mais além, para fora da galáxia e possivelmente para além dos confins mais remotos do espaço. Eu lhes respondi que não iria aonde querem levar-me, ou da maneira horrível como pretendem levar-me, mas acho que não há solução. Minha propriedade fica tão afastada que em breve hão de vir tanto de dia como de noite. Morreram mais seis cachorros, e senti presenças em todos os trechos de mata da estrada quando fui a Brattleboro hoje.
Cometi um erro ao lhe enviar aquela gravação fonográfica e a pedra preta. É melhor você destruir a gravação, antes que seja tarde demais. Amanhã lhe escreverei um novo bilhete, se ainda estiver vivo. Gostaria de poder providenciar que meus livros e minhas coisas ficassem guardadas em Brattleboro. Eu partiria sem nada de meu se pudesse, mas alguma coisa dentro de mim me contém. Posso ir para Brattleboro, onde estaria em segurança, mas lá me sinto tão prisioneiro quanto em minha casa. E tenho a impressão de que não conseguiria ir muito longe, mesmo que abandonasse tudo e tentasse. É horrível. Não se envolva nisto.
Com estima, Akeley.
Passei a noite sem dormir, depois de receber essa medonha carta, e me senti de todo perplexo com relação ao que poderia restar de sanidade mental em Akeley. Muito embora o conteúdo de sua carta fosse inteiramente insano, sua expressão, em vista de tudo que acontecera anteriormente, tinha um tom de persuasão feroz. Não fiz nenhuma tentativa de escrever, julgando ser melhor esperar até que Akeley tivesse tempo de responder à última carta que eu lhe enviara. Essa resposta realmente chegou no dia seguinte, ainda que as informações novas que ela trazia suplantassem todos os pontos levantados pela carta que ela, nominalmente, respondia. Eis o que dizia, segundo me recordo, o texto dessa carta, em garranchos e manchada, como se redigida da maneira mais apressada e frenética que se possa imaginar.
Quarta-feira
Wilmarth:
Recebi sua carta, mas agora não adianta mais discutir nada. Estou inteiramente resignado. Admito até que ainda me reste força de vontade para lutar contra eles. Não posso fugir, mesmo que estivesse disposto a desistir de tudo e correr. Vão me pegar.
Recebi urna carta deles ontem — o carteiro a entregou pessoalmente, quando estive em Brattleboro. Escrita e postada em Bellows Falis. Ela diz o que eles querem fazer comigo... não posso repetir o que dizem. Cuidado com você também! O céu continua nublado e a lua diminui a cada noite. Gostaria de me atrever a pedir ajuda... talvez isso me desse novo ânimo, mas qualquer pessoa que ousasse vir aqui me chamaria de louco, a menos que por acaso acontecesse alguma coisa que comprovasse minhas alegações. Eu não poderia chamar gente aqui sem alguma razão plausível. Estou inteiramente afastado das pessoas e vivo assim há anos.
Mas ainda não lhe disse o pior, Wilmarth. Segure-se para ler o que vou escrever, pois você vai sentir um choque. Mas estou contando a pura verdade. É o seguinte: vi e toquei uma daquelas criaturas, ou parte de uma dessas criaturas. Por Deus, amigo, que horror! Estava morta, naturalmente. Um dos cães a havia abatido, e eu a encontrei perto do canil, hoje de manhã. Tentei guardá-la no lenheiro, para poder convencer as pessoas de tudo que eu contasse, mas a coisa se evaporou dentro de poucas horas. Não sobrou nada. Como você se lembra, todas aquelas coisas nos rios só foram avistadas na primeira manhã depois da enchente. E isso ainda não foi o pior. Tentei fotografar a criatura para que você a visse, mas quando revelei o filme, não havia nada visível nela, exceto o lenheiro. De que matéria seria constituída aquela coisa? Eu a vi e a toquei, e todas elas deixam marcas de garras. Evidentemente, era feita de matéria. Mas, que espécie de matéria? A forma é indescritível. Era um enorme caranguejo com uma porção de anéis empilhados uns sobre os outros, ou nós de uma substância densa e parecida com corda, coberta de tentáculos no local onde estaria a cabeça. A substância viscosa verde é seu sangue ou linfa. E uma quantidade maior deles deve chegar à Terra a qualquer momento. Walter Brown anda desaparecido. Não tem sido visto perambulando como de costume pelas vilas. Devo tê-lo atingido com um de meus tiros, e as criaturas, ao que parece, sempre procuram carregar seus mortos e feridos.
Cheguei à cidade esta tarde sem qualquer dificuldade, mas estou com a impressão de que estão começando a não me importunar porque têm certeza de que vão me pegar. Estou escrevendo nos correios de Brattleboro. Talvez esta carta seja de adeus. Se assim suceder, escreva a meu filho George Goodenough Akeley, Pleasant Street, n° 176, San Diego, Califórnia, mas não venha aqui. Escreva ao rapaz se não receber notícias minhas dentro de uma semana, e procure informações nos jornais.
Vou jogar agora meus dois últimos trunfos... se ainda me restarem forças. Primeiro, vou tentar envenenar as coisas com gás (obtive os produtos químicos necessários e preparei máscaras, para mim e para os cães) e depois, se isso não der certo, vou contar ao xerife. Podem trancafiar-me num hospício, se quiserem — afinal isso será melhor do que as outras criaturas me fariam. E possível que eu os convença a prestar atenção às marcas em torno da casa. São tênues, mas eu as encontro toda manhã. Suponhamos, entretanto, que a polícia alegue que eu as forjei. Isso é possível, pois todo mundo me considera um tipo esquisitão.
Deverei tentar fazer com que um policial passe uma noite aqui comigo e comprove o que digo... muito embora seja bastante possível que as criaturas descubram e evitem importunar-me nessa noite. Cortam os fios sempre que tento telefonar de noite. Os inspetores da companhia telefônica acham isso muito estranho, e poderiam testemunhar em meu favor, isso se não imaginarem que eu mesmo os cortei. Já faz mais de uma semana que não peço que consertem os fios novamente.
Eu poderia conseguir que alguns dos roceiros depusessem em meu favor, a respeito da realidade dos horrores, mas todos riem do que eles dizem, e, de qualquer modo, evitam a minha casa há tanto tempo que nem têm conhecimento das coisas que vêm acontecendo. Não há dinheiro que persuada um daqueles lavradores miseráveis a chegar a um quilômetro de minha casa. O carteiro escuta as coisas que eles contam e brinca comigo a respeito. Meu Deus! Às vezes me dá vontade de lhe contar o quanto existe de verdade nisso! Acho que tentarei fazer com que ele observe as marcas no chão, mas sucede que ele passa aqui à tarde e a essa hora geralmente as marcas já desapareceram. Se eu conservasse uma delas, cobrindo-a com uma caixa ou uma panela, certamente ele haveria de pensar que se tratava de uma falsificação ou de uma brincadeira.
Gostaria que não me tivesse tornado tão eremita, pois por isso as pessoas não passam mais por aqui como costumavam fazer. Nunca me atrevi a mostrar a pedra negra ou as fotografias, nem a tocar aquela gravação, a não ser para as pessoas ignorantes daqui da roça. Os outros diriam que eu havia forjado tudo e só fariam rir. Entretanto, é possível que eu ainda me anime a exibir as fotografias. Elas mostram aquelas marcas com toda clareza, muito embora as coisas que as produziram não possam ser fotografadas. É uma pena que ninguém tenha visto aquela coisa de manhã, antes que ela se evaporasse!
Mas não me importo. Depois de tudo por que passei, talvez um hospício não seja lugar tão ruim. Os médicos talvez me ajudem a tomai a decisão de sair desta casa, e só isso me poderá salvar.
Escreva para meu filho George se não tiver notícias minhas em breve. Adeus. Destrua aquela gravação, e não se envolva nisso.
Com estima, Akeley.
Posso afirmar que essa carta me fez mergulhar no mais negro terror, e eu não sabia o que dizer em resposta, mas rabisquei algumas palavras incoerentes, de conselhos e encorajamento, e as enviei por remessa registrada. Lembro-me de recomendar a Akeley que se mudasse para Brattleboro imediatamente e que se colocasse sob a proteção das autoridades. Acrescentei que eu iria àquela cidade com a gravação fonográfica, a fim de ajudar a convencer os tribunais quanto à sua saúde mental. Além disso, já era tempo, creio que escrevi isso, de alertar a população em geral contra aquela ameaça que a cercava de perto. Observe-se que nesse momento de tensão, minha própria fé em tudo quanto Akeley dizia e afirmava era praticamente total, muito embora eu acreditasse que sua impossibilidade de obter uma fotografia do monstro morto se devesse não a uma aberração da natureza, mas a algum erro que ele houvesse cometido, devido à excitação.
Foi então que, cruzando, ao que parece, com meu bilhete frenético e chegando às minhas mãos na tarde de sábado, 8 de setembro, recebi aquela carta tranqüilizadora e curiosamente diferente, muito bem datilografada numa máquina de escrever nova — aquela estranha carta, que deve ter assinalado uma transição prodigiosa em todo o pesadelo que se desenrolava nas montanhas solitárias. Mais uma vez vou transcrevê-la de memória, tentando, por motivos especiais, reter o máximo possível do estilo. O carimbo dos correios era de Bellows Falis, e tanto a assinatura quanto o texto da carta estavam datilografados, como é comum fazerem os neófitos da datilografia. No entanto, o texto estava muito bem apresentado para um aprendiz. E concluí que Akeley devia ter utilizado uma máquina de escrever em algum período anterior, talvez na universidade. A bem da verdade, devo dizer que aquela carta representou para mim um alívio; no entanto, debaixo desse alívio havia uma ponta de desassossego. Se Akeley estivera em seu juízo perfeito quando aterrorizado, estaria ele agora são em sua tranqüilidade? E o que seriam as "melhores relações" a que ele aludia? Tudo aquilo implicava uma reviravolta total na atitude anterior de Akeley! Mas eis o que dizia essencialmente a carta, transcrita cuidadosamente com a ajuda de uma memória de que tenho certo orgulho.
Townshend, Vermont Quinta-feira, 6 de setembro de 1928
Meu prezado Wilmarth:
É para mim um prazer poder tranqüilizá-lo com relação a todas as tolices que lhe escrevi. Ao dizer "tolices" refiro-me à minha atitude de pavor, e não à descrição de determinados fenômenos. Tais fenômenos são bastante reais e importantes. Meu engano consistiu em assumir uma atitude anômala com relação a eles.
Acredito ter mencionado que meus estranhos visitantes estavam começando a estabelecer contacto comigo, e a tentar tais contactos. Na noite passada, esse diálogo tornou-se verdadeiro. Em resposta a certos sinais, recebi em casa um mensageiro daqueles que estavam lá fora... um ser humano, apresso-me a dizer. Falou-me ele muita coisa que nem eu nem você havíamos sequer começado a perceber, e mostrou-me com clareza o quanto havíamos entendido mal o objetivo dos Alienígenas em manter sua colônia secreta neste planeta.
Ao que parece, as horrendas lendas a respeito do que eles ofereceram aos homens e sobre o que pretendem com relação à Terra decorrem inteiramente de um mal-entendido néscio da linguagem alegórica — uma linguagem, naturalmente, moldada por experiências culturais e por hábitos mentais muitíssimo diferentes de tudo com que possamos sonhar. Minhas próprias conjecturas, admito francamente, passaram tão longe do alvo como qualquer palpite de fazendeiros iletrados e índios ignorantes. Aquilo que eu havia considerado mórbido, vergonhoso e ignóbil é, na realidade, digno de admiração, expressivo e até mesmo glorioso — e meu ponto de vista anterior foi tão-somente uma fase da tendência eterna do homem a odiar, temer e evitar aquilo que é inteiramente diferente.
Agora lamento o mal que infligi a esses seres incríveis, que vieram de tão longe, no decurso de nossas escaramuças noturnas. Oxalá eu houvesse consentido em conversar pacífica e razoavelmente com eles desde o começo! No entanto, não mostram ressentimento em relação a mim, uma vez que suas emoções estão organizadas de uma maneira muito diferente da nossa. Por infelicidade deles, têm como seus agentes humanos no Vermont alguns espécimes humanos ínfimos — o falecido Walter Brown, por exemplo. Ele provocou em mim um profundo preconceito em relação a eles. Na verdade, nunca fizeram mal deliberadamente a seres humanos, posto que muitas vezes tenham sido cruelmente vilipendiados e espionados por nossa espécie. Há todo um culto secreto de homens maus (um homem com sua erudição mística há de me compreender quando eu os relaciono com Hastur e o Signo Amarelo), dedicado ao objetivo de localizá-los e lhes fazer mal, em nome de poderes monstruosos de outras dimensões. É contra esses agressores — e não contra a humanidade normal — que se voltam as precauções drásticas dos Alienígenas. A propósito, fiquei sabendo que muitas de nossas cartas extraviadas foram roubadas não pelos Alienígenas, mas pêlos emissários desse culto maligno.
Tudo que os Alienígenas desejam do homem é paz e um crescente relacionamento intelectual. Esse relacionamento faz-se absolutamente necessário agora, quando invenções e máquinas estão expandindo nosso conhecimento e movimentos, tornando cada vez mais difícil aos Alienígenas manterem postos avançados secretos neste planeta. Os seres do espaço desejam conhecer o homem mais plenamente, e desejam também que alguns dos próceres da filosofia e da ciência humanas conheçam-nos melhor. Com esse intercâmbio de conhecimentos, todos os perigos desaparecerão e haveremos de estabelecer um modus vivendi satisfatório. A simples idéia de que haja qualquer intenção de escravizar ou degradar a humanidade é ridícula.
Como começo dessas melhores relações, os Alienígenas escolheram naturalmente a mim — o conhecimento que possuo deles já é considerável — como seu principal intérprete na Terra. Muito me foi dito na noite passada — fatos estupendos e esclarecedores — e muito mais me será comunicado oportunamente, tanto por escrito quanto oralmente. Não serei chamado ainda a empreender nenhuma viagem, ainda que provavelmente eu o queira fazer mais tarde — empregando meios especiais, que transcendem tudo quanto até agora nos habituamos a considerar como a experiência humana. Minha casa não será mais sitiada. Tudo voltou ao normal, e os cães doravante terão outras ocupações. Ao invés de terror, recebi uma abundante benesse de conhecimentos e aventura intelectual, que poucos outros mortais jamais conheceram.
Os Alienígenas serão, talvez, os seres orgânicos mais maravilhosos que existem no espaço e no tempo, ou mesmo além deles — membros de uma raça cósmica da qual todas as demais formas de vida não passam de variações degeneradas. São mais vegetais do que animais, se é que tais termos podem ser aplicados à espécie de matéria de que são constituídos, e possuem estrutura um tanto fungóide. No entanto, a presença de uma substância clorofilóide e a existência de um singularíssimo sistema nutritivo os distinguem inteiramente dos fungos cromofíticos. Com efeito, essas criaturas compõem-se de uma forma de matéria totalmente desconhecida em nossa parte do espaço, uma matéria cujos elétrons apresentam uma freqüência vibratória inteiramente diferente. É por isso que os seres não podem ser fotografados com os filmes e chapas comuns de nosso universo conhecido, muito embora nossos olhos os possam ver. Na posse de conhecimentos adequados, porém, qualquer bom químico seria capaz de preparar uma emulsão fotográfica que registrasse suas imagens.
O gênero tem a singularidade de ser capaz de transpor o vácuo interestelar, onde não há calor ou ar, em plena forma corpórea, e alguns de seus variantes não podem fazê-lo sem adjutório mecânico ou curiosas transposições cirúrgicas. Apenas algumas espécies possuem as asas resistentes ao éter que caracterizam a variedade do Vermont. Aqueles que habitam determinados picos remotos no Velho Mundo foram trazidos de outro modo. Sua semelhança externa com a vida animal e com o tipo de estrutura que entendemos como sendo material é antes questão de evolução paralela do que de afinidade próxima. Sua capacidade cerebral excede a de qualquer outra forma de vida sobrevivente, muito embora os tipos alados de nossa região montanhosa não sejam, de modo algum, os mais desenvolvidos. Seu modo habitual de linguagem é a telepatia, ainda que possuam órgãos vocais rudimentares, os quais, após uma ligeira operação (pois a cirurgia é, entre eles, altamente desenvolvida e banal), são capazes de duplicar, grosso modo, a fala de todos os tipos de organismos que ainda utilizam a fala.
Seu principal habitat imediato é um planeta ainda não descoberto e quase sem luz na fímbria de nosso próprio sistema solar — além de Netuno e o nono, em distância, a partir do Sol. É esse planeta, como inferimos acertadamente, o objeto chamado misticamente de "Yuggoth" em certos escritos antigos e interditos. E esse planeta será em breve o palco de uma estranha concentração mental, num esforço de facilitar o relacionamento telepático. Eu não me surpreenderia se os astrônomos se tornassem suficientemente sensíveis a essas correntes de força mental para descobrirem Yuggoth quando os Alienígenas desejarem que o façam. Mas Yuggoth, naturalmente, não passa de um trampolim. O conjunto maior dos seres habita abismos inteiramente além do alcance da imaginação humana. O glóbulo espaço-tempo que reconhecemos como sendo a totalidade da entidade cósmica representa apenas um átomo na infinitude genuína que é o universo deles. E dessa infinitude, o máximo que um cérebro humano puder apreender há um dia de me ser descortinado, como já aconteceu com não mais de cinqüenta homens desde os primórdios da raça humana.
Provavelmente, você pensará que isso tudo não passa de delírio, Wilmarth, mas com o passar do tempo há de perceber a oportunidade magnífica que me apareceu. Meu desejo é de que você partilhe dela ao máximo possível, e para isso preciso dizer-lhe milhares de coisas que não posso escrever. No passado, recomendei que não viesse aqui para me ver. Agora que tudo está bem, tenho o prazer de cancelar aquela advertência e convidá-lo a me visitar.
Você não pode vir até aqui antes que comece o ano letivo? Seria maravilhoso se viesse. Traga a gravação fonográfica e todas as cartas que lhe enviei. Servirão de fontes de consulta, e teremos necessidade delas a fim de concatenar todos os pormenores dessa história prodigiosa. Talvez conviesse trazer também as fotografias, pois não sei onde guardei os negativos e minhas próprias cópias, nervoso como estive. Mas que riqueza de informações disponho agora para acrescentar a todo esse tateante e desinformado material! E mais fantástico é o aparelho incrível de que disponho para suplementar meus acréscimos!
Não hesite. Agora não sou mais espionado, e você não há de encontrar aqui nada que seja anormal ou perturbador. Venha, e eu o esperarei de carro na estação de Brattleboro. Venha disposto a ficar por tanto tempo quanto puder, e pode ter certeza de que serão longas as noites de conversas sobre coisas que se situam além de qualquer conjectura humana. Não comente nada com quem quer que seja, naturalmente, pois essas questões não devem chegar aos ouvidos do público ignaro.
O trem para Brattleboro não é ruim, e você poderá tomar conhecimento dos horários em Boston. Pegue o B. & M. para Greenfield, e ali troque de trem para completar a viagem, que não será longa. Sugiro que pegue o comboio das 16:10, em Boston. Chega a Greenfield às 17:35 da manhã; às 21:19 sai dali uma composição que chega a Brattleboro às 22:01. Isso nos dias de semana. Informe-me quanto à data de sua viagem que estarei na estação à sua espera.
Perdoe-me datilografar esta carta, mas minha caligrafia tem andado muito trêmula ultimamente, como você bem sabe, e não me sinto disposto a escrever à mão trechos muito longos. Comprei esta Corona em Brattleboro, ontem. Estou gostando muito dela.
Espero sua resposta em breve, e espero também recebê-lo aqui o quanto antes - com a gravação, minhas cartas, todas, e as fotografias.
Subscrevo-me,
Antecipadamente grato,
Henry W. Akeley
Exmo. Sr.
ALBERT N. WILMARTH UNIVERSIDADE DE MISKATONIC ARKHAM, MASSACHUSETTS
É-me de todo impraticável descrever a complexidade de minhas emoções ao ler, reler e refletir sobre essa estranha e inesperada missiva. Declarei antes ter ficado ao mesmo tempo aliviado e um tanto intranqüilo, mas isso expressa de maneira muito grosseira as nuances de sensações diversas e em grande parte subconscientes que constituíam tanto o alívio como a intranqüilidade. Para começar, a coisa era tão diametralmente oposta à toda a cadeia de horrores que a haviam precedido! O estado de espírito do missivista passara do terror mais desvairado à serena complacência e até mesmo à exultação. Eu não podia acreditar que em um único dia se alterasse de modo tão radical a perspectiva psicológica de uma pessoa que houvesse escrito aquele frenético bilhete de despedida na quarta-feira, não importa quais tivessem sido as revelações aliviadoras trazidas por aquele dia. Havia momentos em que uma sensação de realidades conflitantes me fazia imaginar se todo aquele drama de forças fantásticas, relatado de tão longe, não seria uma espécie de sonho semidelirante criado principalmente em meu próprio espírito. Depois lembrei-me da gravação fonográfica e mergulhei num assombro ainda mais profundo.
Aquela carta parecia exatamente o oposto de tudo quanto eu podia esperar! Ao analisar essa impressão, constatei que ela consistia em duas fases distintas. Em primeiro lugar, admitindo-se que Akeley estivera são antes e que ainda estivesse são, a mudança na situação a que ele se referia era por demais rápida e impensável. E em segundo lugar, a alteração na maneira, na atitude e na linguagem de Akeley estava muitíssimo além, do que se poderia considerar normal ou previsível. A personalidade do homem, em sua totalidade, parecia ter sofrido uma mutação insidiosa — uma mutação de tal modo profunda que de modo algum se podia conciliar seus dois aspectos com a suposição de que ambos representassem igual sanidade mental. E com minha sensibilidade acadêmica ao estilo da prosa, eu podia detectar divergências acentuadas em suas fórmulas rítmicas mais comuns. Decerto, o cataclismo emocional ou a revelação capaz de produzir uma reviravolta tão drástica devia ser mesmo extrema! No entanto, num outro sentido, a carta parecia bastante típica de Akeley. A mesma paixão de antes pelo infinito... a mesma curiosidade erudita. Não pude, nem por um momento — ou por mais de um momento — abraçar a idéia de forjicação ou de substituição maligna. Por acaso o convite, a disposição de fazer com que eu comprovasse a veracidade da carta em pessoa, não atestava sua legitimidade?
Naquela noite de sábado não fui dormir e fiquei a meditar sobre as sombras e portentos que estavam por trás daquela carta. Minha mente, cansada da rápida sucessão de concepções monstruosas que havia sido obrigada a confrontar nos últimos quatro meses, aplicou-se nesse espantoso material novo num ciclo de dúvida e aceitação que retrilhava a maioria dos passos experimentados diante das maravilhas anteriores. Muito antes que rompesse a madrugada, interesse e curiosidade extremas haviam começado a substituir a tempestade inicial de perplexidade e desassossego. Louco ou são, metamorfoseado ou simplesmente aliviado, havia a probabilidade de que Akeley houvesse realmente encontrado alguma estupenda mudança de perspectiva em sua pesquisa aleatória, alguma modificação que ao mesmo tempo minorava o perigo (real ou imaginário) e que abria novos e estonteantes panoramas de conhecimento cósmico e sobre-humano. Minha própria ânsia pelo desconhecido atiçou-se como labareda, tal como a dele, e me senti contagiado de mórbido aventureirismo. Livrar-se das enlouquecedoras e exaustivas limitações do tempo e do espaço e das leis naturais... estar ligado ao vasto exterior... aproximar-se dos segredos trevosos e abismais do infinito e do supremo... decerto tais coisas valiam o risco da própria vida, da alma e da sanidade! E Akeley tinha dito que não havia mais perigo... convidara-me a visitá-lo ao invés de insistir em que eu não fosse lá, como antes. Espicaçava-me a curiosidade sobre o que ele teria a me dizer... Havia um fascínio quase paralisante na perspectiva de estar naquela fazenda solitária com um homem que havia verdadeiramente conversado com emissários do espaço remoto.
Sentar ali, com a gravação terrível e a pilha de cartas nas quais Akeley havia sintetizado suas conclusões anteriores.
Assim, pouco antes do meio-dia do domingo telegrafei a Akeley, comunicando-lhe que o encontraria em Brattleboro na quarta-feira seguinte, 12 de setembro, se essa data lhe conviesse. Em apenas um aspecto afastei-me de suas sugestões: naquilo que dizia respeito à escolha do trem. Francamente, não me agradava a idéia de chegar àquela estranha região do Vermont tarde da noite. Por isso, ao invés de escolher o trem que ele havia sugerido, telefonei para a estação e preferi outro. Se acordasse cedo e pegasse o trem das 8:07 para Boston, eu poderia embarcar no das 9:25 para Greenfield. E chegaria ali às 12:22. Esse horário se casava perfeitamente com o do comboio que chegaria a Brattleboro às 13:08, muito mais simpático do que 22:01 para me encontrar com Akeley e percorrer com ele aquelas estradas apertadas entre montanhas que ocultavam segredos.
Falei de minha opção no telegrama, e foi com prazer que soube, na resposta que chegou ao fim da tarde, que havia sido aprovada por meu futuro anfitrião. Assim dizia o telegrama:
HORÁRIO SATISFATÓRIO PT ESPERAREI TREM TREZE E OITO QUARTA-FEIRA PT NÃO ESQUEÇA GRAVAÇÃO CARTAS E FOTOGRAFIAS PT NÃO FAÇA COMENTÁRIOS SOBRE VIAGEM. PT ESPERE REVELAÇÕES FANTÁSTICAS
AKELEY
O recebimento dessa mensagem, em resposta direta a uma outra enviada a Akeley — e necessariamente entregue em sua casa pelo posto telegráfico de Townshend, quer por mensageiro, quer pelo serviço telefônico, que fora restabelecido — afastou quaisquer dúvidas subconscientes que eu pudesse nutrir a respeito da autoria da carta tão inesperada. Meu alívio foi substancial — na verdade, foi maior do que eu poderia explicar na época, uma vez que tais dúvidas tinham estado sepultadas bem profunda-mente. Mas naquela noite dormi como uma pedra e durante os dois dias seguintes estive ocupadíssimo com os preparativos para a viagem.
VI
Na quarta-feira parti como combinado, levando comigo uma valise com pertences pessoais e dados científicos, entre os quais a hedionda gravação fonográfica, as fotografias e a pasta onde eu havia arquivado toda a correspondência de Akeley. Como ele pedira, eu não dissera a ninguém aonde ia, pois percebia também que o assunto exigia segredo completo, mesmo que os últimos acontecimentos fossem bem-vindos. A idéia de um verdadeiro contato mental com entidades alienígenas já era assombrosa até para meu espírito, treinado e de certa forma preparado. Assim, qual poderia ser seu efeito sobre a imensa massa de leigos desinformados? Não sei o que predominava em mim, se era o receio ou a expectativa aventurosa, quando fiz baldeação em Boston e comecei a longa jornada rumo a oeste, deixando regiões familiares e entrando em áreas menos conhecidas. Waltham... Concord... Ayer... Fitchburg... Gardner... Athol...
Meu trem chegou a Greenfield com sete minutos de atraso, mas o expresso que seguiria para o norte havia esperado. Mudando novamente de composição com pressa, senti no peito uma curiosa opressão enquanto o trem atravessava, no começo da tarde, territórios sobre os quais eu sempre havia lido, mas que nunca visitara. Eu sabia que estava penetrando numa Nova Inglaterra muito mais antiquada e primitiva do que as áreas litorâneas do sul, mecanizadas e urbanizadas, em que havia passado toda a vida; uma Nova Inglaterra ainda intacta e ancestral, sem os forasteiros e a fumaça de chaminés, sem os cartazes e as estradas pavimentadas que havia nas áreas atingidas pela modernidade. Haveria insólitas sobrevivências daquela contínua vida nativa cujas raízes profundas a tornam uma continuação autêntica da paisagem... a contínua vida nativa que mantém vivas estranhas memórias antigas e que fecunda o solo para crenças penumbrosas, portentosas e raramente mencionadas.
De vez em quando eu avistava o rio Connecticut, azulado, a reluzir ao sol, e depois de passarmos por Northfield, atravessamo-lo. Diante de mim agigantavam-se montes verdes e crípticos, e quando o condutor veio a meu vagão, eu soube que finalmente estava no Vermont. Disse-me ele que atrasasse meu relógio em uma hora, pois a montanhosa região nortista não aceitava ainda, sob hipótese alguma, aquelas novidades de horários diferentes. Ao atrasar meu relógio, eu o fiz com a sensação de que estava ao mesmo tempo, fazendo as folhas do calendário voltarem um século atrás.
O trem nunca se afastava muito do rio, e lá do outro lado, em New Hampshire, eu avistava a aproximação da encosta do Wantastiquet, em torno do qual se concentram lendas antigas tão singulares. Surgiram então ruas à minha esquerda e uma ilha verdejante apareceu no rio à minha direita. As pessoas se levantaram, encaminhando-se para a porta, e eu as acompanhei. O trem parou e apeei, sob o longo galpão ferroviário da estação de Brattleboro.
Olhando a fileira de carros estacionados, hesitei por um momento, procurando o Ford que poderia ser o de Akeley, mas minha identidade foi adivinhada antes que eu pudesse tomar a iniciativa. No entanto, evidentemente não foi o próprio Akeley quem se adiantou, com a mão estendida e perguntando, num tom melífluo, se eu era mesmo o Sr. Albert N. Wilmarth, de Arkham. Aquele homem não mostrava nenhuma semelhança com o Akeley, barbudo e grisalho, da fotografia. Era uma pessoa mais jovem e mais cosmopolita, elegantemente trajada, com um bigodinho escuro. Sua voz, educada, tinha alguma coisa, quase perturbadora, de vaga familiaridade, muito embora eu não conseguisse localizá-la na memória.
Enquanto eu o observava, ele explicou que era amigo de meu anfitrião, e que viera de Townshend em seu lugar. Akeley, ele declarou, sofrera uma súbita crise de asma ou coisa parecida, e não se sentia em condições de viajar. Entretanto, o problema não era sério e não haveria qualquer mudança com relação aos planos traçados para a minha visita. Eu não sabia o quanto esse Sr. Noyes (foi assim que ele se apresentou) sabia das pesquisas e descobertas de Akeley, ainda que tivesse a impressão, por seus modos despreocupados, de que ele nada sabia. Lembrando-me que Akeley se descrevera como um completo eremita, fiquei um tanto surpreso com a fácil disponibilidade daquele amigo; mas não permiti que minha perplexidade me impedisse de entrar no carro que ele me apontou. Não era o pequeno automóvel antigo que eu havia esperado, pelas descrições de Akeley, mas um modelo recente, grande e imaculado - aparentemente do próprio Noyes, e com placa de Massachusetts. Meu guia, concluí, devia ser um veranista que passasse alguns dias na área de Townshend.
Noyes entrou no carro e ligou o motor imediatamente. Agradou-me o fato de ele não exagerar na conversação, pois uma certa tensão atmosférica peculiar me indispunha a palestras. A cidade parecia bem atraente à luz da tarde; tomamos uma ladeira e viramos à direita na rua principal. Ela dormitava como as antigas cidades da Nova Inglaterra que nos ficam nas lembranças da infância, e havia alguma coisa na disposição de telhados, campanários, chaminés e muros de tijolos que feria notas profundas de emoção ancestral. Eu sentia estar no limiar de uma região semi-enfeitiçada pela superposição ininterrupta de acumulações cronológicas — uma região onde coisas estranhas e antigas tiveram oportunidade de se desenvolver e de persistir, por nunca serem alteradas.
Ao sairmos de Brattleboro aumentou minha sensação de mal-estar e cresceram os maus pressentimentos, pois alguma coisa de vago naquela região de montes imensos, ameaçadores e muito juntos, de granito desnudo ou densa vegetação, lembravam segredos obscuros e imemoriais que podiam ou não ser hostis à humanidade. Durante algum tempo perlongamos um rio largo e raso que descia de montanhas desconhecidas ao norte, e tive um sobressalto quando meu acompanhante me disse que aquele era o rio Ocidental. Fora nele, segundo eu me lembrava dos recortes de jornal, que um dos mórbidos seres semelhantes a caranguejos havia sido visto depois das cheias.
Aos poucos, a região se tornou mais selvagem e mais deserta. Entre alguns montes, arcaicas pontes cobertas sobreviviam à passagem do tempo, e a estrada de feno, paralela ao rio, parecia exalar um ar de desolação nebulosamente visível. Havia vastos trechos de vales verdejantes em meio aos penhascos, com o granito da Nova Inglaterra aflorando, cinzento e austero, entre a verdura que manchava os topos. Havia também gargantas onde saltavam correntes caudalosas, conduzindo para o rio os segredos inimaginados de um milhar de picos inexplorados. Ali e acolá, divisavam-se estradinhas estreitas, meio escondidas, que serpenteavam através de massas densas e luxuriantes de florestas, entre cujas árvores primevas bem poderiam ocultar-se verdadeiros exércitos de espíritos. Ao vê-las, pensei no quanto Akeley teria sido molestado por entidades invisíveis, em suas viagens por aquele mesmo percurso, nem me admirei com o fato de que tais coisas pudessem existir.
A curiosa e pitoresca vila de Newfane, a que chegamos em menos de uma hora, foi nosso último vínculo com aquele mundo que os homens podem, sem qualquer dúvida, chamar de seu, por força de conquista e completa ocupação. Depois dali, perdemos toda ligação com coisas imediatas, tangíveis e sancionadas pelo tempo, penetrando num mundo de silente irrealidade, no qual a estrada estreita e tortuosa subia, descia e curvava com deliberação caprichosa e voluntária, em meio aos verdes picos inóspitos e aos vales semidesertos. Salvo o ruído do motor e os débeis sons que vinham das poucas fazendolas por que passávamos a intervalos infreqüentes, o único som que me chegava aos ouvidos era o borbulhar insidioso de estranhos regatos que corriam de fontes inumeráveis nas matas penumbrosas.
A proximidade e a intimidade dos baixos monos em meia-lua tornaram-se logo depois verdadeiramente sufocantes. Eram íngremes e abruptos, mais ainda do que eu havia imaginado pelo que ouvira dizer, e não sugeriam nada em comum com o prosaico mundo objetivo que conhecemos. As matas cerradas e desconhecidas naquelas encostas inacessíveis pareciam abrigar coisas exóticas e inacreditáveis, e eu tinha a impressão de que os próprios contornos dos morros traduziam algum significado estranho e desde muito esquecido, como se fossem vastos hieróglifos deixados por uma mal-recordada raça de titãs, cujas glórias só sobrevivem em sonhos raros e profundos. Todas as lendas do passado, bem como todas as afirmações estupefacientes constantes das cartas e objetos de Henry Akeley, tomaram de assalto minha memória, realçando a atmosfera de tensão e crescente ameaça. A finalidade de minha visita e as assustadoras anormalidades por ela postuladas caíram sobre mim de repente, com um calafrio que quase apagou meu ardor por estudos insólitos.
Meu guia deve ter percebido meu descoroçoamento, pois ao se tornar a estrada mais selvagem e mais irregular, e nosso movimento mais lento e sacolejante, seus ocasionais comentários corteses se converteram num fluxo de palavras mais contínuo. Falou da beleza e da excentricidade da região e revelou alguma familiaridade com os estudos folclóricos de meu anfitrião. Por suas perguntas polidas, era óbvio que ele sabia que eu tinha ido ali com um objetivo científico e que eu estava trazendo dados de certa relevância. Entretanto, não deu nenhum sinal de estar a par da profundidade e da estranheza dos conhecimentos que Akeley havia chegado a dominar.
Suas maneiras eram tão animadas, casuais e gentis que suas observações deveriam ter-me acalmado e tranqüilizado; curiosamente, porém, eu me sentia cada vez mais inquieto ao prosseguirmos, aos trancos e sacolejões, por aquele ermo ignoto de montes e florestas. Às vezes era como se ele me estivesse sondando, a fim de aquilatar o que eu conhecia sobre os monstruosos segredos do lugar, e a cada frase sua aumentava aquela vaga, irritante e enigmática familiaridade de sua voz. Não se tratava de uma familiaridade normal ou sadia, a despeito da natureza inteiramente saudável e cultivada de sua voz. Eu de certa maneira a relacionava com pesadelos esquecidos, e tinha a impressão de que poderia enlouquecer se a reconhecesse. Houvesse alguma boa desculpa para isso, creio que haveria desistido de minha visita. Nas circunstancias, eu não podia proceder assim... e me ocorreu que uma conversa serena e científica com o próprio Akeley, depois que eu chegasse, haveria de contribuir bastante para que eu me recompusesse.
Além disso, havia um elemento de beleza cósmica, estranhamente sedativo, na paisagem hipnótica por onde subíamos e descíamos fantasticamente. O tempo se perdera nos labirintos às nossas costas, e em torno de nós estendiam-se apenas as ondas florescentes de bruxedos e o recuperado frescor de séculos desaparecidos — os arvoredos misteriosos, as pastagens imaculadas, margeadas de joviais florescências de outono e, a enormes intervalos, as fazendinhas escuras, aninhadas sob árvores gigantescas, debaixo de precipícios verticais de rosas silvestres e gramíneas. Até mesmo a luz do sol assumia uma beleza sobrenatural, como se alguma atmosfera especial ou sortilégio envolvesse toda a região. Eu nunca vira nada como aquilo, salvo nas paisagens fantasmagóricas que por vezes formam o fundo das telas dos primitivos italianos. Sodoma e Leonardo conceberam tais panoramas, mas apenas a distância e vistos através das curvas de arcadas renascentistas. Estávamos agora varando essas pinturas em carne e osso, e eu tinha a sensação de encontrar em sua necromancia algo que houvesse conhecido inatamente ou herdado e que sempre tivesse estado a procurar em vão.
De repente, depois de fazermos uma curva fechada no alto de uma subida íngreme, paramos. À minha esquerda, do outro lado de um relvado bem-cuidado que chegava até a estrada e ostentava lindes de pedras caiadas, elevava-se um sobrado branco, de dimensões e elegância desusadas na região, cercada por estábulos e celeiros, contíguos ou ligados por arcadas; atrás da casa, e um pouco à sua direita, via-se um moinho de vento. Reconheci-a imediatamente, recordando a fotografia que havia recebido, e não fiquei surpreso ao ver o nome de Henry Akeley na caixa de correio, galvanizada, junto à estrada. Aos fundos da casa, até certa distância, estendia-se uma área plana de terras pantanosas e pouco arborizadas; seguia-se uma encosta forte, com arvoredos densos, que terminava num penhasco alcantilado. Soube mais tarde tratar-se do topo da montanha Escura; já devíamos ter percorrido a metade do caminho até lá.
Descendo do carro e pegando minha valise, Noyes pediu-me que esperasse, enquanto ele entrava e avisava Akeley de minha chegada. Acrescentou que ele próprio tinha assuntos importantes a tratar e que não poderia deter-se ali mais que um instante. Enquanto ele caminhava, resoluto, em direção à porta, eu próprio desci do carro, desejando esticar um pouco as pernas antes de me sentar para uma palestra sedentária. Minha sensação de tensão e nervosismo havia novamente alcançado o ápice, depois que me vi no cenário das mórbidas escaramuças descritas com tamanha vividez nas cartas de Akeley; com franqueza, eu temia as conversas que me haveriam de ligar a mundos tão remotos e interditos.
O contacto próximo com a aberração total é, muitas vezes, mais aterrorizante do que inspirador, e em nada me agradava imaginar que aquele trecho de estrada poeirenta onde eu me encontrava era o local onde aquelas marcas monstruosas e aquele fétido humor verdoengo haviam sido encontrados, depois de noites sombrias de espanto e morte. Sem atentar muito para isso, notei que nenhum dos cães de Akeley parecia estar por ali. Teria ele vendido-os todos, depois de firmar a paz com os Alienígenas? Por mais que tentasse, eu não podia ter a mesma confiança na profundidade e profundeza daquela paz, que transparecia na última carta de Akeley, inusitadamente diferente das demais. Afinal de contas, Akeley era homem de muita ingenuidade e com pouca experiência do mundo. Não haveria, talvez, segundas intenções sinistras sob a superfície da recente aliança?
Levado por meus pensamentos, baixei os olhos para a superfície empoeirada da estrada, que havia retido tais hediondos testemunhos. Os últimos dias tinham sido secos, e marcas de toda espécie sulcavam o chão irregular, apesar da pouca freqüência do tráfego ali. Com vaga curiosidade, comecei a examinar o delineamento de algumas das impressões heterogêneas, ao mesmo tempo em que tentava reprimir os vôos de macabra fantasia que o lugar e suas recordações sugeriam. Havia um quê de ameaçador e inquietante no silêncio funéreo, no roçagar abafado e sutil de riachos distantes e no amontoamento de picos verdes e precipícios negros que se amontoavam no estreito horizonte.
Foi então que irrompeu em minha consciência uma imagem que fez aquelas vagas ameaças e os vôos da fantasia parecerem verdadeiramente ligeiros e insignificantes. Como já disse, eu estava observando as diversas marcas na estrada com uma espécie de distraída curiosidade... mas, de súbito, com um choque, essa curiosidade foi destruída por um repentino e paralisante assomo de horror positivo. Isso porque embora as marcas no pó fossem em geral confusas e imbricadas, de maneira a não atrair um olhar casual, minha visão irrequieta havia detectado certos pormenores perto do ponto onde o caminho da casa se juntava à estrada; e havia reconhecido, sem possibilidade de dúvida, o significado assustador daqueles detalhes. Não tinha sido à toa — ai de mim! — que eu me debruçara horas a fio sobre as fotografias das marcas das garras dos Alienígenas, enviadas por Akeley. Eu conhecia à saciedade os contornos daquelas pinças horrendas, bem como aquela insinuação de direção ambígua que caracterizavam tais horrores como criaturas alheias a este nosso planeta. Não me sobrava a possibilidade de aventar um equívoco misericordioso. Ali, com efeito, em forma objetiva e diante de meus próprios olhos — e certamente não deixadas há questão de horas — estavam três marcas que se destacavam como uma blasfêmia entre a surpreendente quantidade de pegadas indistintas diante da fazenda de Akeley. Eram as marcas infernais dos fungos viventes de Yuggoth.
Recompus-me a tempo de reprimir um grito. Afinal de contas, o que haveria ali além do que eu poderia ter esperado, supondo-se que eu houvesse realmente acreditado nas cartas de Akeley? Ele falara de ter firmado a paz com os seres. Nesse caso, por que seria estranho que alguns deles o tivessem visitado? No entanto, o terror era mais forte do que a sombra de alento. Poder-se-ia esperar que um homem contemplasse com serenidade, pela primeira vez, as marcas deixadas por criaturas animadas provenientes dos quadrantes mais recônditos do espaço? Nesse mesmo instante vi Noyes sair pela porta da frente e se aproximar de mim com passos rápidos. Refleti que precisava manter o autocontrole, pois o mais provável era que aquele amigo prestativo nada soubesse a respeito das profundíssimas e estupendas sondagens de Akeley em terrenos proibidos.
Akeley, conforme Noyes apressou-se a me informar, estava satisfeito com minha vinda e pronto para me ver; entretanto, seu súbito ataque de asma o impediria de ser um anfitrião muito dedicado durante um dia ou dois. Quando sobrevinham, essas crises eram fortes e sempre se faziam acompanhar de uma febre debilitante e de astenia geral. Ele nunca se sentia muito bem enquanto duravam; era obrigado a falar em sussurros e tinha dificuldade para caminhar ou agir. Seus pés e tornozelos também doíam, e por isso ele tinha de mantê-los envolvidos em ataduras, como um velho soldado gotoso. Naquele dia ele se encontrava especialmente indisposto, de modo que eu teria de cuidar quase sozinho de minhas próprias necessidades; no entanto, nem por isso ele estava menos disposto a conversar comigo. Eu o encontraria no estúdio, à esquerda do salão da frente — o cômodo cujas venezianas estavam abaixadas. Quando adoecia, ele tinha de ficar na penumbra, pois seus olhos eram demasiado sensíveis.
Depois de Noyes ter-se despedido e saído no carro em direção ao norte, pus-me a caminhar devagar em direção à casa. A porta tinha sido deixada aberta para mim. Mas antes de me aproximar e entrar, lancei um olhar inquiridor em torno da propriedade, procurando verificar o que me parecera tão intangivelmente esquisito. Os estábulos e galpões pareciam bastante prosaicos, e notei o Ford de Akeley, já bastante usado, em sua garagem espaçosa e aberta. Entendi então o motivo da estranheza. Era o silêncio total. Normalmente, uma fazenda possui ao menos um ligeiro nível de ruído, devido às várias espécies de criações, mas ali faltava qualquer sinal de vida. Onde estavam as galinhas e os porcos? As vacas, que, segundo Akeley dissera, eram várias, poderiam estar no pasto, e os cães poderiam ter sido vendidos; mas a ausência de qualquer sinal de cacarejes ou grunhidos era de fato singular.
Não me detive por muito tempo no caminho. Entrei resolutamente na casa e fechei a porta. Isso me havia custado um nítido esforço psicológico, e agora que eu estava trancado dentro de casa tive um anseio momentâneo de sair dali precipitadamente. Não que o local tivesse qualquer coisa de sinistro; pelo contrário, achei o gracioso saguão, de estilo colonial tardio, de muito bom gosto, e admirei a evidente educação do homem que o decorara. O que me fazia desejar fugir era alguma coisa muito tênue e indefinível. Talvez fosse um certo odor estranho que eu julguei sentir... muito embora eu soubesse perfeitamente como é comum o cheiro de bolor, mesmo na mais bem tratada fazenda antiga.
VII
Recusando-me a permitir que esses receios nebulosos me dominassem, lembrei-me das instruções de Noyes e empurrei a porta branca à minha esquerda, uma porta com seis almofadas e ferragens de bronze. O aposento estava na penumbra, como eu fora avisado; e ao entrar, notei que o odor estranho era mais forte ali. Da mesma forma, parecia haver no ar um ritmo ou vibração, leve e quase imaginário. Por um momento, não enxerguei quase nada, mas logo depois um som de sussurro, em tom de desculpa, atraiu minha atenção para uma enorme poltrona, no canto mais distante e mais escuro da sala. Entre suas sombras divisei a mancha branca do rosto e das mãos de um homem; e daí a um instante, havia atravessado o cômodo, para cumprimentar o vulto que tentara falar. Embora a luz fosse bastante fraca, constatei que aquele era efetivamente meu hospedeiro. Eu havia estudado a fotografia repetidamente e não podia confundir aquele rosto firme e marcado pelo tempo, com a barba aparada e grisalha.
No entanto, ao contemplá-lo outra vez, senti tristeza e apreensão, pois era visível que aquele rosto era o de um homem muito doente. Achei que devia haver alguma coisa mais séria do que asma por trás daquela expressão tensa, rígida e imóvel, bem como atrás daquele olhar vítreo. Compreendi até onde Akeley devia ter sido abalado por suas terríveis, experiências. Não seriam suficientes para quebrantar qualquer pessoa — mesmo um homem mais moço que aquele intrépido explorador do proibido? O inesperado e súbito alívio, temi, havia chegado tarde demais para salvá-lo de alguma coisa que se assemelhava a um colapso geral. Havia alguma coisa de lamentável na maneira inerte como as mãos magras repousavam em seu regaço. Ele vestia um casaco largo, e tinha um xale ou capuz, de um amarelo vivo, em torno da cabeça e do pescoço.
Vi então que ele estava tentando falar, no mesmo sussurro débil com que me saudara. Era um murmúrio difícil de se entender a princípio, uma vez que o bigode grisalho ocultava todos os movimentos dos lábios, e alguma coisa em seu timbre me turbou enormemente; todavia, concentrando a atenção, logo pude perceber, com surpreendente facilidade, o que ele queria dizer. O tom da voz não era de maneira alguma rústico e sua linguagem era ainda mais polida do que a correspondência me levara a esperar.
Sr. Wilmarth, não? Por favor, perdoe-me por não me levantar. Estou bastante doente, como Noyes lhe deve ter dito. Mas não resisti a desejar que o senhor viesse, assim mesmo. O senhor se lembra do que lhe contei em minha última carta... há muito o que conversarmos amanhã, quando eu me sentir melhor. Não tenho palavras para exprimir o quanto estou feliz por conhecê-lo pessoalmente, depois de tantas cartas. O senhor decerto trouxe a pasta consigo, não? E também as fotografias e gravações? Noyes colocou sua valise no salão... creio que o senhor a viu ali.
Infelizmente, acho que hoje o senhor não poderá ter muita ajuda minha para se instalar.
Seu quarto fica no andar de cima... em cima deste... e o senhor verá a porta do banheiro aberta, junto da escada.
A mesa está posta para o senhor na sala de jantar... passe por essa porta à sua direita... e o senhor poderá tomar a refeição quando quiser. Prometo ser melhor anfitrião amanhã... mas neste momento a debilitação me deixa imprestável.
Fique à vontade... Talvez convenha o senhor tirar da valise as cartas, as fotografias e as gravações e colocá-las sobre essa mesa aqui, antes de subir. Será aqui que falaremos sobre essas coisas... meu fonógrafo está ali, naquela mesinha do canto.
Não, obrigado... o senhor nada pode fazer por mim. Conheço essas crises há muito tempo.
Volte aqui para dois dedos de prosa mais tarde, e depois se recolha, quando lhe aprouver. Vou descansar aqui mesmo... talvez até durma aqui a noite inteira, como faço freqüentemente. De manhã estarei em muito melhor condição para tratar dos assuntos que nos interessam.
O senhor certamente se dá conta da natureza fantástica da questão de que tomamos conhecimento. Abriu-se para nós como já aconteceu com alguns raros homens neste mundo, um abismo de tempo, de espaço e de conhecimentos sem paralelo na ciência ou na filosofia humana.
Sabe o senhor que Einstein está errado e que certos objetos e forças podem mover-se a velocidade maior que a da luz? Com ajuda adequada, espero poder recuar e avançar no tempo e verdadeiramente ver e sentir a Terra do passado remoto e de eras futuras. O senhor não pode imaginar até onde esses seres levaram a ciência. Não há nada que não possam fazer com a mente e o corpo de organismos vivos. Espero visitar outros planetas e até outras estrelas e galáxias. A primeira viagem será a Yuggoth, o mais próximo planeta plenamente povoado pêlos seres. É um estranho mundo sombrio, na fímbria de nosso sistema solar... ainda desconhecido dos astrônomos.
Mas com certeza já lhe escrevi sobre isso. Na época adequada, os seres que ali vivem hão de emitir correntes mentais em nossa direção e provocar a descoberta do planeta... ou talvez autorizar um de seus aliados humanos a soltar uma pista para os cientistas.
Há cidades imponentes em Yuggoth... fileiras colossais de torres escalonadas de pedra negra, semelhante ao espécime que lhe tentei remeter. Aquela pedra veio de Yuggoth. O sol não brilha ali mais que uma estrela comum, mas os seres não carecem de luz. Possuem outros sentidos, mais sutis, e não abrem janelas em suas casas e templos. A luz até mesmo os fere, atrapalha e prejudica, pois não existe luz alguma no cosmo negro, além do espaço e do tempo, de onde provieram originalmente. Visitar Yuggoth levaria à loucura um homem fraco... e, no entanto, eu irei lá. Os rios negros como piche que correm sob aquelas misteriosas pontes ciclópicas... coisas construídas por uma raça antiga, extinta e já esquecida antes que os seres chegassem a Yuggoth, vindos dos vácuos mais recônditos... devem bastar para transformar qualquer homem num Dante ou num Poe, isso no caso de conservar o juízo por tempo suficiente para narrar o que viu.
Entretanto, veja bem: aquele mundo sombrio de jardins fungóides e de cidades sem janelas na verdade não é horrendo. É possível que este nosso mundo tenha parecido também horrendo para os seres, quando pela primeira vez o exploraram, na infância da Terra. Como o senhor sabe, eles estiveram aqui muito antes que terminasse a era fabulosa de Cthulhu, e lembram-se de tudo que se refere à submersa cidade de R'lyeh quando ela ainda pairava sobre as águas. Já estiveram também no interior da Terra! Há aberturas inteiramente desconhecidas pêlos homens, algumas nestas mesmas montanhas do Vermont, e grandes mundos de vida que ignoramos: K'n-yan, de luz azul; Yoth, de luz vermelha; e N'kai, um mundo negro e sem qualquer luz. Foi de N'kai que proveio o hediondo Tsathoggua... o senhor sabe do que se trata: o ser divinizado, amorfo, mencionado nos Manuscritos pnacóticos, no Necronomicon e no ciclo de mitos comórios preservado pelo sumo- sacerdote atlante Klarkash-Ton.
Entretanto, falaremos de tudo isso mais tarde. Já devem ser quatro ou cinco horas. Seria melhor o senhor tirar as coisas de sua bolsa, alimentar-se e depois voltar para conversarmos melhor.
Lentamente, virei-me e comecei a obedecer a meu anfitrião. Trouxe a valise, tirei dela os artigos desejados e os depositei na mesa. Finalmente, subi as escadas até a alcova que me havia sido designada. Tendo ainda fresca na lembrança aquela marca de garra impressa no pó da estrada, a fala sussurrada de Akeley havia-me afetado curiosamente; e as insinuações de familiaridade com aquele mundo desconhecido de vida fungosa — o tétrico Yuggoth — tinham provocado em mim calafrios, mais do que eu me dispunha a admitir. Eu estava tremendamente penalizado por Akeley, em virtude de sua enfermidade, mas era forçado a confessar que seu sussurro áspero despertava tanta repugnância quanto compaixão. Se ao menos ele não discorresse tanto sobre Yuggoth e seus aterradores segredos!
Meu aposento era extremamente simpático e acolhedor, sem o bafio de bolor e aquela inquietante sensação de vibração. E depois de deixar ali minha valise, desci outra vez, para falar com Akeley e tomar a refeição que ele havia preparado para mim. A sala de jantar ficava bem ao lado do estúdio, e percebi que a copa-cozinha, em forma de L, ficava mais adiante, na mesma direção. Na mesa esperava-me uma farta quantidade de sanduíches, bolos e queijos; uma garrafa térmica, ao lado de uma xícara e um pires, atestava que o anfitrião não se esquecera do café quente. Depois de uma lauta refeição, servi-me generosamente de café, mas senti que nesse detalhe minhas exigências de qualidade gastronômicas não haviam sido atendidas. A primeira colherada revelou um gosto desagradável, um pouco acre, de modo que não tomei mais. Durante toda a refeição, esqueci-me de Akeley, sentado silenciosamente na poltrona do cômodo ensombrecido ao lado. Em certo momento, fui lá, para convidá-lo a partilhar comigo o repasto, mas ele sussurrou que ainda não podia comer coisa alguma. Mais tarde, pouco antes de dormir, ele haveria de beber um pouco de leite maltado, e isso era tudo quanto deveria ingerir naquele dia.
Depois desse jantar, insisti em tirar a mesa e lavar os pratos na pia da cozinha, aproveitando para despejar o café que eu não havia conseguido tomar. Depois, voltando para o estúdio às escuras, puxei uma cadeira para o canto de meu anfitrião e preparei-me para conversar sobre qualquer coisa que ele desejasse. As cartas, as fotografias e a gravação ainda estavam sobre a larga mesa de centro, mas por ora não teríamos necessidade de recorrer àquelas coisas. Antes que se passasse muito tempo, eu me esquecera até do cheiro esquisito e das curiosas impressões de vibração.
Como já tive ocasião de dizer, havia coisas em algumas das cartas de Akeley (principalmente na segunda, a mais longa) que não me atrevo a repetir ou sequer formular por escrito. Essa hesitação vigora com mais intensidade em relação às coisas que ouvi, sussurradas, naquela noite, no quarto em trevas, entre as funestas montanhas solitárias. Sobre a extensão dos horrores cósmicos expostos por aquela voz rascante, nada posso sequer insinuar. No passado eu já tomara contacto com coisas hediondas, mas o que Akeley ficara sabendo desde seu pacto com os Alienígenas era quase excessivo para ser tolerado. Ainda então, eu me recusava terminantemente a acreditar no que ele afirmava sobre a constituição da infinitude suprema, da justaposição das dimensões e da assustadora posição de nosso universo de espaço e tempo na cadeia infindável de átomos cósmicos interligados, que constituem o supercosmos imediato de curvas, ângulos e organização eletrônica material e semimaterial.
Jamais esteve um homem são mais perigosamente perto dos arcanos do ser essencial... jamais esteve um cérebro organizado mais próximo da completa aniquilação no caos que transcende forma, força e simetria. Fiquei sabendo de onde Cthulhu veio originalmente e por que metade das grandes estrelas temporárias da história haviam explodido. Adivinhei, a partir de pistas que faziam até mesmo meu informante hesitar timidamente, o segredo por trás das Nuvens de Magalhães e das nebulosas globulares, assim como a negra verdade velada pela imemorial alegoria do Tao. Ficou claramente elucidada a natureza dos Doeis e foi-me comunicada a essência (conquanto não a fonte) dos Galgos de Tíndalos. A lenda de Yig, Pai das Serpentes, deixou de ser mera metáfora, e tive um sobressalto de asco quando ele me falou do monstruoso caos nuclear que reina além do espaço angulado que o Necronomicon havia compassiva mente ocultado sob o nome de Azathoth. Foi chocante ver os mais tenebrosos pesadelos dos mitos secretos deslindados em termos concretos, cuja odiosidade gritante e mórbida excediam as mais atrevidas insinuações dos místicos da Antiguidade e do Medievo. Inelutavelmente, fui levado a acreditar que aqueles que pela primeira vez sussurraram aquelas blasfemas narrativas deviam ter-se avistado com os Alienígenas de Akeley e talvez ter visitado outros reinos cósmicos, tal como agora Akeley pro punha-se a fazer.
Ouvi falar da Pedra Negra e do que ela implicava, sentindo-me contente por não a ter recebido. Meus palpites sobre aqueles hieróglifos tinham sido bastante acertados! No entanto, Akeley parecia agora reconciliado com todo o demoníaco sistema com que se defrontara; reconciliado e ansioso por sondar ainda mais profundamente o abismo monstruoso. Eu estava a imaginar com que seres ele haveria conversado desde sua última carta e se muitos deles seriam tão humanos quanto aquele primeiro emissário que ele havia mencionado. A tensão em meu cérebro tornava-se insuportável e pus-me a elaborar toda sorte de teorias delirantes sobre aquele curioso e persistente odor e aquelas insidiosas insinuações de vibração no cômodo escurecido.
A noite já caía, e ao me recordar do que Akeley me escrevera sobre aquelas primeiras noites, estremeci ao pensar em que não haveria luar. Tampouco gostava do modo como a casa da fazenda se aninhava no seio daquela colossal encosta que, coberta de florestas, levava ao topo inexplorado da montanha Escura. Com a permissão de Akeley, acendi um lampião a azeite, baixei a chama e coloquei-o sobre uma estante afastada, junto do fantasmagórico busto de Milton. Depois, entretanto, arrependi-me de o ter feito, pois a luz fazia com que o rosto tenso e hirto de meu anfitrião, assim como suas mãos exangues, parecessem horrivelmente anormais e cadavéricas. Ele parecia quase impossibilitado de se mover, ainda que eu o visse balançar a cabeça rigidamente de vez em quando.
Depois do que ele dissera, eu mal podia imaginar que segredos maiores estaria guardando para o dia seguinte. Mas por fim vim a saber que sua viagem a Yuggoth e ainda mais além - e minha própria possível participação nela - seria o tema do outro dia. Akeley deve ter achado graça de meu sobressalto de horror ao me ser proposta uma viagem cósmica, pois sacudiu a cabeça violentamente quando demonstrei meu medo. Depois falou muito gentilmente a respeito do modo como os seres humanos poderiam efetuar (e já haviam efetuado com freqüência) o vôo aparentemente impossível através do vazio interestelar. Ao que parecia, a viagem não era feita realmente por corpos humanos intactos; a prodigiosa perícia cirúrgica, biológica, química e mecânica dos Alienígenas havia produzido um meio de transportarem cérebros humanos sem sua concomitante estrutura física.
Eles possuíam uma técnica inócua para extrair um cérebro e outra para manter vivo o resíduo orgânico. A massa cerebral, nua e compacta, era imergida então num fluido, ocasionalmente recompletado, dentro de um cilindro hermético de um metal minerado em Yuggoth, atravessado por alguns eletrodos que eram conectados cuidadosamente com elaborados instrumentos, capazes de duplicar as três faculdades vitais de visão, audição e fala. Transportar intactos pelo espaço os cilindros cerebrais era coisa fácil para os seres fungóides alados. Depois, em cada planeta dominado por sua civilização; encontravam grande quantidade de instrumentos ajustáveis, capazes de serem conectados aos cérebros encapsulados. Assim, depois de alguns poucos ajustes, essas inteligências deambulatórias ganhavam plena vida sensória e articulada — posto que incorpórea e mecânica — a cada etapa de suas jornadas através do contínuo espaço-tempo e mesmo além dele. Era tão simples quanto se levar de um local para outro uma gravação fonográfica e tocá-la onde quer que exista um fonógrafo da mesma marca. Com relação ao êxito da empresa, não podia haver dúvidas. Akeley não tinha medo. Aquilo já não tinha sido realizado à perfeição e repetidamente?
Pela primeira vez, uma das mãos inertes e debilitadas se levantou, apontando hirtamente para uma prateleira alta no outro lado do cômodo. Ali, muito bem dispostos em fileira, havia mais de uma dúzia de cilindros de um metal que eu nunca vira. Teriam esses cilindros cerca de um palmo e meio de altura e um pouco menos de diâmetro, com três curiosas tomadas, formando um triângulo isósceles, na superfície convexa frontal. Um deles estava conectado, por duas das tomadas, a um par de máquinas de aspecto singular que se viam mais atrás. Era excusado explicar-me sua finalidade, e estremeci, como se tomado de sezões. Vi então a mão apontar em direção a um recanto muito mais próximo, onde se comprimiam alguns instrumentos complicados, com fios e tomadas, alguns deles muito semelhantes aos dois dispositivos na prateleira, atrás dos cilindros.
Há quatro tipos de instrumentos aqui, Wilmarth — sussurrou a voz. — Quatro tipos, três faculdades cada um... temos ao todo doze peças. Você vê que há quatro tipos diferentes de seres representados naqueles cilindros lá em cima. Três seres humanos, seis seres fungóides que são incapazes de viajar pelo espaço corporeamente, dois seres de Netuno (por Deus, que corpo esse tipo possui em seu próprio planeta!) e os restantes são entidades das cavernas centrais de uma estrela escura e interessantíssima, situada além da Galáxia. No posto principal, no interior do morro Redondo, de vez em quando se encontram mais cilindros e máquinas... cilindros de cérebros extracósmicos, com sentidos diferentes dos que conhecemos... aliados e exploradores dos espaços mais remotos, e máquinas especiais para dar a eles impressões e expressão, nas várias maneiras adequadas, ao mesmo tempo, a eles e à compreensão de diferentes tipos de ouvintes. O morro Redondo, como a maioria dos principais postos avançados dos seres nos vários universos, é um lugar muito cosmopolita. Naturalmente, somente os tipos mais comuns é que me foram emprestados, para experiências.
Vamos... pegue as três máquinas que estou apontando e coloque-as na mesa. Aquela alta, com duas lentes na frente... a caixa com as válvulas eletrônicas e a caixa de ressonância... e agora aquela que tem um disco de metal em cima. Agora pegue o cilindro com um rótulo que diz "B-67". Suba naquela cadeira Windsor para alcançá-lo. Pesado? Não importa! Verifique bem o número. .. B-67. Não perca tempo com aquele cilindro novo e reluzente ligado aos dois testadores... esse que está com o meu nome. Coloque o B-67 na mesa perto de onde estão as máquinas... o ponteiro do botão de todas as três máquinas deve estar virado para a extrema esquerda.
Agora, ligue o fio da máquina da lente à tomada superior do cilindro... isso! Ligue a máquina que tem as válvulas à tomada do canto inferior esquerdo, e o dispositivo com o disco à tomada externa. Agora vire todos os botões das máquinas para a extrema direita... primeiro a da lente, depois a do disco e depois a das válvulas. Isso mesmo. Talvez convenha lhe dizer que isso é um ser humano... igual a qualquer um de nós. Amanhã vou deixar que experimente um pouco os outros.
Ainda hoje não sei porque obedeci àqueles sussurros tão servilmente, ou se julguei que Akeley estava louco ou são. Depois do que havia acontecido antes, eu deveria estar preparado para qualquer coisa; mas aquela pantomima mecânica assemelhava-se de tal maneira aos típicos delírios de inventores e cientistas loucos que feriu uma nota de dúvida que nem o palavrório antecedente havia despertado. O que aqueles sussurros implicavam estava além da possibilidade de credulidade... entretanto, não eram as outras coisas também absurdas e só menos inverossímeis porque impassíveis de prova concreta e tangível?
Enquanto meu cérebro rodopiava no meio desses casos, tomei consciência de uma mistura de arranhaduras e silvos que vinham de todas as três máquinas que haviam sido ligadas ao cilindro... sons que em breve cessaram quase completamente. O que estava para acontecer? Eu escutaria uma voz? E se isso acontecesse, que prova eu tinha de que não se tratava de algum receptor de rádio habilmente escondido e que transmitiria a voz de alguém? Até hoje não estou disposto a jurar que realmente ouvi urna voz ou que aquele fenômeno teve lugar diante de meus olhos. Mas, evidentemente, alguma coisa aconteceu.
Para ser claro e breve, a máquina com as válvulas e a caixa de ressonância começou a falar, e com uma precisão e inteligência tais que não havia como duvidar que a pessoa que falava estava presente e a nos observar. A voz era sonora, metálica e sem vida, e claramente mecânica em cada um dos detalhes de sua produção. Era incapaz de inflexões ou expressividade, e falava com precisão e deliberação mortíferas.
Sr. Wilmarth — escutei — espero não assustá-lo. Sou um ser humano como o senhor, embora meu corpo esteja neste momento repousando em segurança e submetido a um tratamento vitalizante adequado, no interior do morro Redondo, mais ou menos a uma milha e meia a leste daqui. Eu próprio me encontro aqui com o senhor... meu cérebro está naquele cilindro e eu vejo, ouço e falo através destes vibradores eletrônicos. Daqui a uma semana vou atravessar o espaço, como já fiz várias vezes, e espero ter o prazer de contar com a companhia do Sr. Akeley. Gostaria de ter também a sua companhia, pois o conheço de vista e de reputação e venho seguindo atentamente sua correspondência com nosso amigo. Sou, naturalmente, um dos homens que se aliaram aos seres que se acham de visita a nosso planeta. Eu os conheci no Himalaia e os tenho ajudado em vários sentidos. Em troca, têm-me proporcionado experiências que poucos homens já tiveram.
Compreende o que significa para mim ter estado em trinta e sete diferentes corpos celestes, entre planetas, estrelas negras e objetos menos definíveis, inclusive oito fora de nossa Galáxia e dois além do universo curvo do espaço e do tempo? Nada disso me causou o menor mal. Meu cérebro foi removido de meu corpo através de fissões tão hábeis que seria grosseiro chamar a operação de cirurgia. Os seres visitantes dominam métodos que tornam essas extrações fáceis e quase normais... e o corpo de uma pessoa nunca envelhece quando o cérebro está fora dele. O cérebro, aliás, é praticamente imortal com suas faculdades mecânicas e uma nutrição simples, proporcionada por trocas periódicas do líquido preservador.
Em suma, espero de todo coração que o senhor resolva vir comigo e com o Sr. Akeley. Os visitantes estão ansiosos por conhecer homens inteligentes como o senhor e mostrar-lhes os imensos abismos que a maioria de nós teve de imaginar apenas em sonhos, matizados de imaginosa ignorância. A princípio, eles poderão parecer estranhos, mas sei que o senhor está acima dessas ninharias. Creio que o Sr. Noyes irá também... o homem que, sem dúvida, trouxe o senhor até aqui, de cano. Faz anos que ele é um de nós... creio que o senhor reconheceu a voz dele como uma das que estão na gravação que o Sr. Akeley lhe remeteu.
Diante de meu sobressalto, a voz se deteve por um momento, antes de concluir.
Sr. Wilmarth, deixo a decisão a seu cargo. Gostaria apenas de acrescentar que um homem com seu amor pelas coisas inusitadas e pelo folclore jamais deveria perder uma oportunidade dessas. Não há nada a temer. Todas as transições são indolores e há muito o que desfrutar num estado inteiramente mecanizado de sensações. Quando os eletrodos são desligados, a pessoa simplesmente mergulha num sono de sonhos sobremaneira vívidos e fantásticos.
Agora, se o senhor não se importar, podemos adiar para amanhã nossa sessão. Boa noite... vire todos os botões novamente para a esquerda. Não se importe com a ordem exata... ainda que seja melhor deixar a máquina com a lente para o fim. Boa noite, Sr. Akeley... trate bem nosso hóspede! Está pronto para virar os botões?
Isto foi tudo. Obedeci mecanicamente e desliguei todos os botões, ainda que aturdido e imerso em dúvidas com relação a tudo que havia ocorrido. Minha cabeça ainda rodopiava quando ouvi a voz sussurrante de Akeley dizer que eu podia deixar todos os aparelhos sobre a mesa, tal como estavam. Ele não tentou nenhum comentário sobre o que havia acontecido e na verdade não havia palavras que pudessem transmitir muita coisa a minhas faculdades entorpecidas. Ouvi Akeley dizer que eu podia levar o lampião para meu quarto, e deduzi que ele desejava descansar sozinho no escuro. Certamente ele precisava de repouso, pois naquele dia falara o suficiente para exaurir até mesmo um homem vigoroso. Ainda estupefato, desejei boa-noite a meu hospedeiro e subi as escadas com a lâmpada, muito embora trouxesse comigo uma excelente lanterna elétrica.
Fiquei satisfeito por me afastar daquele estúdio, onde persistiam o cheiro estranho e vagas sugestões de vibração; mesmo assim, não deixei de sentir uma medonha impressão de perigo e anormalidade cósmica ao pensar no lugar onde me encontrava e nas forças que eu estava conhecendo. A região erma e inóspita, a montanha negra e misteriosamente arborizada que subia verticalmente bem perto da casa, a marca na estrada, aquele homem doente e imóvel que sussurrava nas trevas, os cilindros e as máquinas demoníacas, e acima de tudo os convites à estranha cirurgia e a jornadas ainda mais estranhas - tudo isso, tão novo e surgindo em seqüência tão repentina, irrompeu sobre mim com uma força cumulativa que minou minha força de vontade e quase destruiu minha resistência física.
Descobrir que Noyes, meu guia, fora o celebrante humano naquele monstruoso ritual sabático registrado na gravação constituíra um choque especial, ainda que anteriormente eu já houvesse percebido uma vaga e repelente familiaridade em sua voz. Outro choque especial decorria de minha própria atitude em relação a meu anfitrião, sempre que eu me detinha a analisá-la; pois embora eu tivesse simpatizado muito com Akeley, e instintivamente, pelo que ele me escrevia, sentia agora que ele provocava em mim uma nítida repugnância. Sua moléstia deveria ter-me despertado compaixão; no entanto, causava-me certa espécie de calafrios. Ele se mostrava rígido, inerte e cadavérico... e aqueles sussurros incessantes eram tão odientos e pouco humanos!
Ocorreu-me que seu sussurro era diferente de qualquer outro que eu já tivesse escutado; que, a despeito da curiosa imobilidade dos lábios, cobertos pêlos bigodes, seus murmúrios tinham uma força latente e um poder de persuasão extraordinários para a falta de ar de um asmático. Eu tinha sido capaz de entender o que ele dizia mesmo quando me encontrava do outro lado da sala, e por uma ou duas vezes eu tivera a impressão de que os sons, fracos mas penetrantes, representavam menos debilidade do que deliberada repressão... por algum motivo que eu não era capaz de imaginar. Desde o começo eu percebera algo de inquietante no timbre. Agora, tentando refletir sobre a questão, julgava poder atribuir essa impressão a uma espécie de familiaridade subconsciente, semelhante àquela que fizera a voz de Noyes parecer tão nebulosamente pressaga. Mas onde ou quando eu havia encontrado a coisa que ela me recordava, era algo que eu não saberia determinar.
Uma coisa era certa: eu não era capaz de passar outra noite ali. Meu ardor científico havia desaparecido diante do medo e da repulsa, e tudo que eu sentia agora era o desejo de evadir-me àquela rede de morbidez e revelações antinaturais. Eu já sabia o suficiente. Realmente, devia ser verdade que estranhas vinculações cósmicas existem... mas tais coisas decerto não são da alçaca de seres humanos normais.
Influências ímpias pareciam cercar-me e pressionar sufocantemente os meus sentidos. Dormir, concluí, estava fora de cogitação. Por isso, apenas apaguei o lampião e me atirei na cama, inteiramente vestido. Sem dúvida, meu receio era absurdo, mas me mantive pronto para qualquer emergência desconhecida. Agarrei com a mão direita o revólver que havia trazido comigo e segurei a lanterna com a esquerda. Nenhum som vinha lá debaixo e eu podia imaginar que meu anfitrião estivesse sentado ali, no escuro, em sua cadavérica rigidez.
De algum ponto chegava a mim o tique-taque de um relógio e eu me sentia vagamente grato pela normalidade do som. Aquilo, entretanto, me lembrou outra coisa que me inquietava: a total ausência de vida animal. Com certeza não havia animais na fazenda, e agora eu percebia que faltavam até mesmo os habituais ruídos noturnos de bichos silvestres. Com exceção do murmúrio sinistro de distantes regatos invisíveis, aquela quietude era anômala - interplanetária - e eu me punha a imaginar que praga intangível e astronômica poderia estar pairando sobre a região. Lembrei-me do que diziam as velhas lendas: cães e outros animais haviam sempre odiado os Alienígenas. O que poderiam significar aquelas marcas na estrada?
VIII
Não me pergunteis quanto tempo durou meu cochilo inesperado ou quanto do que se seguiu não passou de puro sonho. Se eu disser que acordei num certo tempo e que escutei e vi certas coisas, havereis simplesmente de retrucar que eu não estava acordado; e que tudo foi um sonho até o momento em que disparei a correr daquela casa, cheguei aos tropeções até a garagem onde eu vira o velho Ford e me apoderei daquele antigo veículo para atravessar às pressas, sem saber aonde iria. aqueles montes mal-assombrados que por fim me depuseram — após horas de solavancos e serpenteios através de matas labirínticas — numa vila que, vim a saber, era Townshend.
Havereis também, naturalmente, de menoscabar tudo mais em meu relato e declarar que todas as imagens, gravações, sons de cilindros e máquinas e provas afins não passaram de puras fraudes, despejadas sobre mim pelo desaparecido Henry Akeley. Havereis até mesmo de insinuar que ele tenha conspirado com outros excêntricos a fim de me pregar uma peça tola e complicada, que ele fez com que a pedra despachada por trem fosse retirada em Keene e que era Noyes o autor daquela aterrorizante gravação em cera. É estranho, contudo, que até o momento Noyes não tenha sido identificado; que fosse desconhecido em qualquer uma das vilas perto da fazenda de Akeley, ainda que decerto freqüentasse bastante a região. Gostaria de ter-me lembrado de guardar o número da placa de seu carro... ou, quem sabe, no final das contas é melhor que eu não o tenha feito. Isto porque, apesar de tudo quanto possais dizer e em que pese tudo quanto às vezes tento dizer a mim mesmo, sei que abomináveis influências exteriores deviam estar à espreita lá entre as montanhas semi-desconhecidas — e que aquelas influências mantém espiões e emissários no mundo dos homens. Conservar-me o mais longe possível de tais influências e de tais emissários é tudo que desejo da vida no futuro.
Quando minha história frenética fez com que o xerife mandasse um destacamento policial à fazenda, Akeley havia desaparecido sem deixar vestígio. Seu casaco frouxo, o xale amarelo e as bandagens estavam no assoalho, perto de sua poltrona, e não foi possível determinar se outras peças de roupa haviam sumido junto com ele. Os cães e os animais de criação realmente não se encontravam lá e havia alguns curiosos buracos de bala, tanto do lado de fora da casa como nas paredes internas. Entretanto, nada de inusitado pôde ser detectado além disso. Não se achavam ali os cilindros e as máquinas, nem as provas que eu havia trazido em minha valise; não havia mais qualquer cheiro estranho ou sensação vibratória, nem pegadas na estrada ou nenhuma das coisas problemáticas que eu havia vislumbrado no momento de minha disparada porta afora.
Permaneci uma semana em Brattleboro depois de minha fuga, fazendo indagações entre pessoas de toda espécie que houvessem conhecido Akeley. E os resultados me convencem de que a questão não é sonho ou alucinação. As compras, por Akeley, de cães, munição e produtos químicos, bem como o fato de seus fios telefônicos terem sido cortados estão registrados. Ao mesmo tempo, todos que o conheceram, inclusive seu filho que mora na Califórnia, admitem que seus comentários ocasionais a respeito de estudos estranhos tinham certa consistência. Cidadãos de boa reputação acreditam que ele fosse louco e sem hesitação declaram que todas as provas a que aludi não passavam de contrafações, criadas com astúcia de insano e talvez coonestadas por companheiros excêntricos; mas roceiros mais humildes sustentam-lhe as afirmações em todos os pormenores. Ele havia mostrado a alguns desses campônios as fotografias e a pedra negra e havia tocado para eles a medonha gravação; e todos confirmaram que as marcas de pegadas e as vozes semelhantes a zumbidos eram como as descritas nas narrativas ancestrais.
Disseram, outrossim, que visões e sons suspeitos haviam sido observados cada vez mais em torno da casa de Akeley depois de ele haver encontrado a pedra negra, e que o lugar era agora evitado por todos, exceto o carteiro e outras pessoas distraídas e obstinadas. A montanha Escura e o morro Redondo eram notoriamente locais mal-assombrados, e não consegui encontrar uma única pessoa que houvesse algum dia explorado um desses dois sítios. Desaparecimentos ocasionais de pessoas, em toda a história da região, estavam bem documentados, e incluíam agora o sumiço de Walter Brown, mencionado nas cartas de Akeley. Cheguei a encontrar um fazendeiro que acreditava haver visto de relance um dos estranhos corpos que desciam o rio Ocidental por ocasião das cheias, mas seu relato era demasiado confuso para ser realmente levado em conta. Quando parti de Brattleboro, estava decidido a nunca mais pisar no Vermont, e sinto-me bastante confiante de que cumprirei minha resolução. Aquelas montanhas selvagens são certamente o posto avançado de uma raça cósmica - coisa de que duvido menos ainda depois que li que um nono planeta foi localizado além de Netuno, tal como aquelas criaturas afirmaram que haveria de acontecer. Com uma precisão de que poucos suspeitam, os astrônomos denominaram esse planeta "Plutão". Sei, sem qualquer dúvida, que se trata do tenebroso Yuggoth - e estremeço quando tento imaginar a razão real pela qual seus monstruosos habitantes desejam que ele se torne conhecido dessa maneira e nesta época. É em vão que tento persuadir-me de que aquelas criaturas diabólicas não estão aos poucos adotando uma nova política, prejudicial à Terra e a seus habitantes normais.
Mas ainda me resta narrar o fim daquela noite terrível na fazenda. Como já disse, eu acabei caindo numa agitada sonolência, cheia de fiapos de sonhos que envolviam vislumbres de paisagens aterradoras. Não sei dizer o que foi exatamente que me acordou, mas que efetivamente acordei, num determinado ponto, disso tenho plena certeza. Minha primeira impressão confusa foi a de tábuas do assoalho que estalavam no corredor, além da porta de meu quarto, e de movimentos desajeitados e abafados na tranca. Contudo, isto cessou quase que imediatamente, de modo que minhas impressões realmente claras começam com as vozes ouvidas no estúdio lá embaixo. Eu tinha a impressão de escutar várias pessoas e imaginei que não estavam de acordo quanto a alguma coisa.
Depois de haver escutado durante alguns segundos, eu me achava inteiramente desperto, pois a natureza das vozes tornava ridícula qualquer idéia de que eu pudesse dormir. Os tons variavam curiosamente e ninguém que tivesse ouvido aquela maldita gravação fonográfica podia nutrir quaisquer dúvidas quanto à natureza de pelo menos duas delas. Por mais tétrica que fosse essa idéia, percebi que estava sob o mesmo teto na companhia de coisas inominadas, provenientes do espaço abissal, pois aquelas duas vozes eram inequivocamente os zumbidos blasfemos que os Seres Alienígenas usavam em suas comunicações com os homens. As duas vozes diferiam individualmente — em altura, entonação e ritmo — mas eram da mesma amaldiçoada espécie geral.
Uma terceira voz era, indubitavelmente, a de uma máquina de locução mecânica, ligada a um daqueles cérebros nos cilindros. Quanto a isso havia tão pouca dúvida quanto sobre os zumbidos: a voz sonora, metálica e sem vida da noite anterior, com sua falta de inflexões, sua inexpressividade e sua precisão e deliberação impessoais era de todo inesquecível. Durante algum tempo, não me detive para questionar se a inteligência por trás daquela voz áspera era a mesma que havia conversado comigo; pouco depois, entretanto, refleti que qualquer cérebro emitiria sons vocais iguais, se ligado ao mesmo dispositivo mecânico. As únicas diferenças possíveis seriam no domínio da linguagem, do ritmo, da velocidade e da pronúncia. Para completar o horrendo colóquio, havia duas vozes humanas normais - uma delas devia pertencer a um homem que eu não conhecia, e evidentemente rude; a outra tinha o suave sotaque bostoniano de meu ex-guia Noyes.
Enquanto eu tentava discernir as palavras que o assoalho antigo, de tábuas grossas, abafava, também me dei conta de muita agitação, movimentos e arranhaduras no aposento lá embaixo, que me davam a impressão forçosa de que ele estava cheio de seres vivos... muitos mais do que aqueles poucos cujas vozes eu conseguia captar. É extremamente difícil descrever a natureza exata dessa agitação, pois são pouquíssimas as boas referências para comparação. De vez em quando parecia que objetos atravessavam a sala como entidades conscientes, e o som de suas pisadas lembravam o entrechoque de superfícies duras — como o contacto de superfícies descoordenadas de chifre e borracha dura. Para usarmos uma comparação mais concreta, porém menos precisa, era como se pessoas calçadas com largos sapatos de pau arrastassem os pés de um lado para outro no assoalho polido. Quanto à natureza e ao aspecto dos responsáveis pêlos sons, não me interessei em especular.
Logo entendi que seria impossível discernir qualquer discurso coerente. Palavras isoladas — inclusive o nome de Akeley e o meu próprio — eu as percebia de vez em quando, sobretudo quando pronunciadas pelo aparelho mecânico; mas seu verdadeiro significado se perdia, por falta de um contexto. Hoje me recuso a formar quaisquer deduções categorias a partir delas, e até mesmo o efeito assustador que tiveram sobre mim foi antes de sugestão que de revelação. Um conclave terrível e anormal, eu tinha certeza, se realizava lá embaixo; contudo, não podia imaginar para que deliberações tenebrosas. Era curioso como essa sensação inconteste de malignidade e blasfêmia tomava conta de mim, apesar das garantias de Akeley quanto à amistosidade dos Alienígenas.
Apurando os ouvidos, comecei a distinguir claramente as vozes, muito embora não conseguisse compreender muita coisa do que diziam. Eu tinha a impressão de captar certas emoções características em alguns dos que falavam. Uma das vozes zumbidoras, por exemplo, tinha um inequívoco tom de autoridade; enquanto isso, a voz mecânica, apesar de sua sonoridade e regularidade artificiais, parecia estar numa posição de subordinação e súplica. A voz de Noyes transmitia uma espécie de clima conciliador. Com relação às demais, não fiz nenhuma tentativa de interpretação. Não escutei o sussurro já conhecido de Akeley, mas sabia perfeitamente que tal som jamais conseguiria transpor o assoalho robusto de meu quarto.
Tentarei a seguir anotar algumas das palavras desconexas e outros sons que captei, identificando os emissores da melhor maneira possível. As primeiras frases reconhecíveis que entendi foram pronunciadas pela máquina.
(A máquina)
"... eu mesmo trouxe... devolvi as cartas e a gravação... o fim disso... interessado... ver e ouvir... danem-se vocês... força impessoal, afinal...cilindro novo e reluzente. . . bom Deus..."
(Primeira voz zumbidora) "... hora de pararmos... pequeno e humano... Akeley... cérebro... dizendo..."
(Segunda voz zumbidora) "... Nyarlathotep... Wilmarth... gravações e cartas... impostura barata..."
(Noyes)
"... (uma palavra ou nome impronunciável, possivelmente N'gah-Kthun)... inofensivo... paz... umas duas semanas... teatral... já lhes disse isso antes..."
(Primeira voz zumbidora)
"... nenhum motivo... plano original... efeitos... Noyes pode vigiar... monte Redondo... cilindro
novo... o carro de Noyes..."
(Noyes) "... bem... como quiserem... aqui mesmo... lugar de descanso..."
(Várias vozes simultâneas, dizendo coisas indistinguíveis) (Muitos sons de passos, inclusive o som peculiar que descrevi como sendo semelhante ao de sapatos largos de pau)
(Um barulho curioso, como de asas ou nadadeiras) (Som de um carro ligando o motor e se afastando)
(Silêncio)
Transcrevi acima a essência do que meus ouvidos captaram enquanto eu jazia naquela estranha cama, no andar de cima, na fazenda mal-as-sombrada entre as montanhas diabólicas - inteiramente vestido, com um revólver na mão direita e uma lanterna elétrica na esquerda. Como já disse, eu estava plenamente acordado. Entretanto, uma espécie de paralisia obscura me manteve inerte durante muito tempo depois que os últimos ecos dos sons haviam desaparecido. Escutei o tique-taque do velho relógio de parede em algum lugar da casa, lá embaixo, e por fim percebi os roncos irregulares de alguém que dormia. Akeley devia ter caído no sono depois da estranha sessão, e era fácil ver que ele devia estar necessitado disso.
Decidir o que pensar ou o que fazer era algo além de minhas forças. Afinal de contas, o que eu tinha escutado mesmo, além das coisas que informações anteriores me poderiam ter levado a esperar? Não ficara sabendo que os inomináveis Alienígenas tinham agora entrada franca naquela casa? Sem dúvida Akeley tinha sido surpreendido por uma visita inesperada deles. No entanto, alguma coisa naquela conversa fragmentária me havia enregelado desmesuradamente, havia levantado as mais grotescas e horríveis dúvidas, e me haviam feito desejar ardentemente que eu acordasse e constatasse que tudo aquilo era sonho. Creio que meu subconsciente deve ter percebido alguma coisa que meu consciente ainda não captou. Mas, e Akeley? Não era ele meu amigo, não teria protestado se algum mal estivesse sendo preparado contra mim? Aqueles roncos tranqüilos lá embaixo pareciam lançar no ridículo todos os meus medos intensificados.
Seria possível que Akeley tivesse sido dominado e utilizado como isca, a fim de me atrair às montanhas com as cartas, as fotografias e a gravação fonográfica? Porventura tencionariam aqueles seres nos destruir a ambos, por termos passado a saber demais? Mais uma vez pensei na subtaneidade e estranheza daquela mudança na situação que devia ter ocorrido entre a penúltima e a última carta de Akeley. Alguma coisa, meu instinto me dizia, estava pavorosamente errada. Nem tudo era o que parecia. Aquele café amargo que eu recusara... por acaso teria havido uma tentativa, da parte de alguma entidade oculta e desconhecida, de me drogar? Eu tinha de conversar com Akeley imediatamente e restabelecer seu sentido de proporção. Eles o tinham hipnotizado com suas promessas de revelações cósmicas, mas agora ele precisava escutar a voz da razão. Tínhamos de fugir daquilo antes que fosse tarde demais. Se lhe faltasse força de vontade para ganhar a liberdade, eu teria de criá-la. Ou se eu não o pudesse convencer a ir embora, pelo menos eu poderia partir sozinho. Decerto ele me permitiria usar seu Ford, que eu deixaria numa oficina em Brattleboro. Eu o vira na garagem, com a porta destrancada e aberta, agora que o perigo era considerado passado, e acreditava que havia boas possibilidades de ele estar em condições de ser usado. Aquela momentânea antipatia que eu havia sentido por Akeley durante e depois da conversa noturna havia desaparecido de todo. Ele se encontrava numa situação muito semelhante à minha, e devíamos enfrentar aquilo juntos. Sabendo de sua enfermidade, eu achava horrível ter de acordá-lo àquela hora, mas sabia que tinha de fazer isso. Tal como as coisas estavam, eu não podia permanecer naquele lugar até de manhã.
Finalmente, senti-me capaz de agir e me espreguicei vigorosamente, a fim de recuperar o controle dos músculos. Levantando-me com uma cautela mais impulsiva que deliberada, achei meu chapéu, peguei a valise e comecei a descer a escada, com a ajuda da lanterna. Tomado de nervosismo, conservei o revólver na mão direita, segurando com a esquerda tanto a valise quanto a lanterna. Não sei dizer o motivo exato que me levava a tomar essas precauções, uma vez que eu estava prestes a acordar o único outro ocupante da casa.
Enquanto eu descia, pé ante pé, as escadas rangentes em direção ao corredor do andar térreo, ouvia os roncos com clareza crescente, e notei que pareciam vir do cômodo à minha esquerda - a sala de estar na qual eu não estivera. À direita estava o negrume hiante do estúdio no qual eu escutara as vozes. Abrindo a porta da sala de estar, tracei com a lanterna um caminho de luz em direção à fonte dos roncos, e finalmente dirigi a luz para o rosto da pessoa que dormia. Entretanto, instantaneamente comecei a recuar com passos de gato para o corredor, e dessa vez a cautela se deveu tanto à razão quanto ao instinto, pois a pessoa que dormia no sofá não era Akeley, e sim meu guia Noyes.
Qual era a situação exata, eu não sabia, mas o bom senso me dizia que o mais aconselhável era descobrir o máximo possível, antes de despertar alguém. Voltando ao corredor, fechei silenciosamente a porta da sala de estar, diminuindo assim a possibilidade de vir a acordar Noyes. Depois entrei com todo cuidado no estúdio às escuras, onde eu esperava encontrar Akeley, dormindo ou acordado, na poltrona do canto que era, evidentemente, seu lugar de repouso predileto. Enquanto eu caminhava, o facho de minha lanterna iluminou a grande mesa de centro, revelando um dos cilindros infernais, ao qual estavam ligadas máquinas de visão e audição, e com uma máquina de fala ao lado, pronta para ser ligada, a qualquer momento. Aquele, refleti, devia ser o cérebro encapsulado que eu escutara durante a medonha conferência. E por um instante passou por mim a idéia perversa de ligar a máquina para ver o que ele diria.
Aquele cérebro, pensei, devia estar consciente de minha presença naquele instante, uma vez que as conexões de visão e audição não podiam deixar de transmitir os raios de minha lanterna e os leves estalidos das tábuas do assoalho sob meus pés. Mas por fim não me atrevi a mexer naquela coisa. Percebi distraidamente que se tratava do cilindro novo e reluzente que tinha o nome de Akeley e que, seguindo instruções de meu anfitrião, eu não tirara do lugar. Lembrando-me agora daquele momento, lamento que minha timidez me tenha impedido de ser mais ousado e fazer a máquina falar. Só Deus sabe os mistérios, as dúvidas atrozes e as questões de identidade que esse ato poderia ter esclarecido! Por outro lado, talvez tenha sido um ato de caridade ter deixado aquele cérebro em paz.
Voltei então a luz para o canto onde eu supunha que Akeley estivesse, mas constatei, perplexo, que a enorme poltrona estava sem nenhum ocupante humano, adormecido ou vigilante. Do assento da poltrona caía, até o chão, fazendo grande volume, o casaco largo que eu conhecia tão bem, e perto dele jaziam o xale amarelo e as compridas bandagens que eu achara tão esquisitas. Ainda hesitante, esforçando-me por conjecturar onde poderia estar Akeley e o motivo pelo qual ele teria abandonado tão repentinamente seus necessários atavios de enfermo, notei que eu já não sentia no aposento nem o cheiro esquisito nem a impressão de vibração. O que os teria causado? Curiosamente, ocorreu-me que eu só os havia percebido perto de Akeley. Aquelas sensações tinham sido mais intensas no lugar onde ele se sentava e não existiam absolutamente no resto da casa, exceto no estúdio, quando ele estava presente, ou logo além da porta do cômodo. Fiz uma pausa, deixando o facho da lanterna iluminar aleatoriamente vários pontos do estúdio, enquanto vasculhava o cérebro, em busca de explicações para o rumo que as coisas tinham tomado.
Quisera Deus que eu houvesse saído silenciosamente daquele local antes que permitisse que a luz incidisse novamente na poltrona vazia. Acabou sucedendo que não saí em silêncio — e sim com um grito reprimido que deve ter perturbado, embora não despertado, a sentinela que dormia do outro lado do vestíbulo. Meu grito, bem como os roncos ininterruptos de Noyes, foram os últimos sons que escutei naquela fazenda mórbida sob a crista florestada da montanha assombrada — aquele foco de horror transcósmico em meio às solitárias colinas verdes e os riachos murmurej antes de uma terra rústica e espectral.
É incrível que eu não tenha deixado cair a lanterna, a valise e o revólver em minha corrida desabalada, mas de alguma maneira qualquer consegui manter a posse de todos esses objetos. Na verdade, saí daquele aposento e daquela casa sem fazer nenhum outro ruído. Arrastei, a mim e às minhas coisas até o velho Ford e dei partida naquele veículo arcaico em direção a algum desconhecido porto seguro na noite negrejante e sem luar. A viagem que se seguiu assemelhou-se a um delírio extraído das páginas de um Poe ou de um Rimbaud, ou mesmo dos desenhos de um Doré, mas enfim cheguei a Townshend. Termina aí a história. Se meu juízo ainda está íntegro, é por sorte minha. Às vezes temo o que o futuro possa trazer, sobretudo depois que o novo planeta, Plutão, foi descoberto de maneira tão curiosa.
Como contei, deixei que a luz da lanterna voltasse à poltrona vazia, depois de haver alumiado todo o aposento. Notei então, pela primeira vez, a presença, no assento, de certos objetos que não percebera antes devido ao panejamento do casaco. Foram esses os objetos, em número de três, que os investigadores não localizaram quando chegaram à casa mais tarde. Tal como eu fiz questão de declarar no início desta narrativa, não havia neles nada que traduzisse horror visual. O problema estava naquilo que levavam a inferir. Ainda hoje tenho momentos de dúvida. . . momentos nos quais quase aceito o ceticismo daqueles que atribuem toda minha experiência a sonhos, nervosismo ou delírio
Os três objetos eram construções malditamente hábeis e estavam dotados de engenhosos grampos metálicos que seriam usados para prendê-los a conformações orgânicas sobre as quais não me atrevo a fazer qualquer conjectura. Espero — confio ardentemente — que fossem os produtos, em cera, de um exímio artista, a despeito do que meus receios mais recônditos me dizem. Santo Deus! Aquele ser que sussurrava nas trevas, com odores e vibrações mórbidas! Bruxo, emissário, mutante, alienígena... aquele zumbido medonhamente reprimido... e durante todo o tempo naquele cilindro novo e reluzente na prateleira... pobre-diabo... "Prodigiosa perícia cirúrgica, biológica, química e mecânica..."
As coisas que estavam na poltrona, perfeitas em cada detalhe sutil de microscópica semelhança — ou identidade — eram o rosto e as mãos de Henry Wentworth Akeley.

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