Um conto de A.S. Vieira
Dedicado à Rosângela Nazaré S. Vieira
Casas antigas...
Noites escuras...
Lugares sombrios...
Florestas...
Cemitérios...
Por que tudo precisa ser tão clichê?
Por que essas criaturas, seres das sombras, precisam desses lugares?
Porque eles precisam do nosso medo para surgir, pois o nosso medo cria a atmosfera ideal para que eles venham até nós. E em situações chave, ou clichês, o medo erradia de nós como ondas de rádio. E então eles vêm.
Depois do que vi, do que presenciei, comecei a buscar explicações. Acabei lendo notícias sobre cenas de crime, ataques terroristas e acidentes onde fotógrafos capturaram imagens ou vultos assustadores. Presenças macabras que seguiram o medo até aqueles lugares. Quanto maior a quantidade de medo, mais deles aparecem. Por isso não me surpreende que tantos deles tenham chegado à Manhattan naquele fatídico 11 de setembro, assim como não me surpreende que apenas um deles tenha chegado à casa de dona Rosália naquela noite tempestuosa de janeiro. E logo ela que tanto temia as chuvas.
Dona Rosália era minha vizinha desde que eu me entendo por gente no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Sua casa era um sobrado antigo, mas muito bonito, no estilo que só é encontrado mesmo nesse bairro. Se você já esteve aqui, sabe bem do que estou falando.
Minha vizinha era uma viúva de 51 anos; ainda nova, é verdade, mas já enterrara três maridos pelo menos. Nós, quando crianças, a chamávamos de viúva negra, mesmo que mal soubéssemos o significado daquilo.
Ela, assim como minha mãe, morava com um único filho. Mas ao contrário de mim, que sempre estou em casa, já que trabalho como revisor de textos, Cleiton, seu filho, passava a maior parte do tempo na rua por causa da faculdade e do trabalho. Por isso, pra compensar a solidão, dona Rosália começou a alugar os quartos do sobrado. Era uma forma de fazer amigos (Pois lá se hospedavam pessoas de todo o mundo) e ter também uma renda extra. Era uma mulher batalhadora, forte, digna de admiração. Não temia bandidos, assim como baratas ou ratos. Seu único medo eram as tempestades. Seus três maridos haviam morrido durante tempestades.
O primeiro foi atingindo por um raio, ainda quando ela morava numa fazenda no interior do estado, quando tentava levar uma vaca de volta para o celeiro. O segundo, pai de Cleiton, a levou para o Rio de Janeiro e a deixou com uma situação de vida confortável ao morrer em um acidente no cento da cidade durante um forte temporal. O terceiro a levou para sua casa
Naquele janeiro, porém, não houve mortes. A tempestade nada levou, apenas trouxe.
Eu o vi saltar do bonde da minha janela. Era um sujeito estranho, de barba lisa e branca como os seus cabelos. Suas sobrancelhas eram grossas e negras. A despeito disso, não me parecia ser muito velho. Usava roupas negras, longas, e tentava se proteger da chuva sob um chapéu ordinário. Na mão, nada além de uma valise. Reparei que ele conversava sozinho, nada muito anormal. Estou acostumado a pessoas estranhas, dada a grande quantidade desses tipos aqui no bairro.
Como eu esperava, ele se dirigiu a casa de dona Rosália. Conversaram à porta por alguns minutos e então ele entrou. Mais um hóspede.
Pouco soubemos sobre Pazú, o hóspede, nos dias que se seguiram. Eu o via raramente, mas nas poucas vezes eu sentia algo sinistro nele. Algo estranho na forma como fumava e conversava com algum ser imaginário. Dona Rosália disse que ele passeava pelo país, conhecendo e fotografando lugares. Pagara para ficar hospedado por um mês, mas disse que se gostasse ficaria por mais tempo. Ela não se importou, afinal, em sua casa as pessoas vêm e vão e ninguém nunca pergunta nada. Como em um hotel. Você conhece pessoas, mas não cria laços. Uma vez me apaixonei por uma hóspede da minha vizinha, uma bela húngara. Pra mim foi intenso, pra ela foi casinho de verão; nunca mais nos vimos. Meu primeiro e frustrado amor.
Bem, no bairro, tudo continuava a mesma coisa. Nada alterava nossa rotina de bairro turístico. Pelo menos uma vez por semana eu ia até a editora onde eu trabalhava para entregar o material revisado e pegar a nova leva. Trabalhar em casa tinha suas vantagens, mas eu sempre tinha tanto o que fazer que acabava ficando sem tempo para iniciar o meu romance. Na verdade, eu escrevia bem, mas nunca achei que pudesse ter inspiração para uma história. Até então.
Nesse dia em que desci até a zona sul, tudo parecia normal. Exceto pela volta pra casa, onde eu encontrei Pazú. Poderia ter sido um encontro casual, mas eu resolvi segui-lo por alguma razão. Não entendi o porquê, mas em poucos minutos eu o vi adentrar o cemitério São João Baptista. Não fui adiante, pois fiquei com medo. Assumo, cemitérios me apavoram bastante. Por isso voltei pra casa; talvez ele estivesse apenas visitando algum conhecido enterrado ali.
Da minha janela, eu vi quando ele voltou. Ele me olhou rapidamente e acenou pra mim. Meio reticente, retribuí o aceno. Mas algo nele me assustou, não sei explicar o que. Não consegui parar de pensar nele antes de dormir.
Na manhã seguinte, encontrei dona Rosália conversando com minha mãe na cozinha. Parecia assustada. Quando perguntei o que havia acontecido, ela respondeu nervosa.
- Pazú.
- O que há com ele?
- Ontem a noite – ela disse – antes de me recolher, passei pela casa pra checar se as portas e as janelas estavam fechadas, como sempre faço. Quando passei pela porta do quarto de Pazú, ouvi uma conversa. Ele parecia rir com algumas pessoas ali dentro. Aquilo me enfureceu, pois, você sabe, tenho algumas regras no sobrado. E uma delas é que não permito visitantes após as dez da noite. Por segurança.
- Claro – concordei – a senhora está muito certa.
- Então bati na porta. A mulher que ria, logo se calou. Alguns segundos depois Pazú abriu a porta. “Pois não”, disse ele. Expliquei que na casa havia regras e como já havia passado das dez da noite, não gostaria que ele tivesse visitas no quarto. “Mas não há ninguém aqui”, falou ele abrindo a porta. O quarto estava vazio. Eu lhe disse que havia ouvido vozes, mas insistiu que estava sozinho e me convidou a inspecionar o quarto. Não havia ninguém lá, nada. A janela estava trancada por dentro, então não teria saída. Olhei sob a cama, dentro do armário e no banheiro. Nada, menino. Nada. O que eu podia fazer? Desculpei-me e saí do quarto. Assim que a porta se fechou, as mesmas pessoas voltaram a conversar. Mas não havia ninguém lá. Saí para checar os outros hóspedes. Todos estavam sós em seus quartos e eu os conheço bem o bastante pra saber que não levariam ninguém para dentro da minha casa sem minha autorização. Os barulhos vinham mesmo do quarto de Pazú.
- Você não falou nada com ele? – perguntou minha mãe, indignada. As duas eram muito amigas.
- Falar o que? Eu mesma chequei o quarto. Mas o pior foi hoje de manhã.
- O que houve? – eu perguntei.
- Fui preparar o café da manhã do Cleiton e ele me perguntou se havia hóspedes novos na casa. Respondi que não, lógico. Então ele me perguntou quem era a mulher e a criança que ele vira nos corredores quando ele chegou em casa ontem, por volta da meia-noite.
- Meu Deus, Rosália! – disse minha mãe, pálida – Eu estou toda arrepiada.
- Você não acha que...?
- Fantasmas, meu filho. Tem fantasmas na minha casa. E eles chegaram com o Pazú.
Depois daquilo, passei a ter mais medo da figura de Pazú. Achava que dona Rosália era muito corajosa por manter em sua casa pessoas das quais ela não conhecia a procedência. Proibi minha mãe de falar com aquele homem e pedi que ela convencesse dona Rosália a pedir que ele fosse embora. Mas minha vizinha já usara o dinheiro que ele pagara previamente, portanto, não poderia mandá-lo embora até o fim do mês.
À época do carnaval, as comemorações de rua aqui no bairro foram canceladas por causa das chuvas ininterruptas. A cidade mais abaixo estava um caos, que todos tentavam abafar por causa das festividades.
Num desses dias, Cleiton me convidou para dar uma volta com ele na Lapa. Não sou muito chegado a noitadas, menos ainda quando chove. Mas Cleiton raramente me convidava para sair e eu muito apreciava sua companhia por causa de sua inteligência. Fui encontrá-lo no sobrado às nove da noite, como combinado.
Já havia estado naquele lugar tantas vezes, nada era novo pra mim. Enquanto aguardava por ele, dona Rosália me serviu um chocolate quente. O que ela preparava era o melhor, sem dúvida.
- Pazú está em casa? – perguntei, pois não queria encontrá-lo.
- Não. Esteve fora o dia inteiro. Já conversamos e ele disse que não pretende ficar mais do que o combinado. Só mais uma semana e estarei livre dele.
- E os outros hóspedes?
- Todos na rua.
Cleiton desceu as escadas logo. Estava arrumado demais para ir a Lapa, eu disse, mas ele não deu a mínima. Quando dona Rosália nos levava à porta, ouvimos passos no andar de cima.
- Mãe – falou Cleiton, assustado – Você disse que estávamos sós em casa.
- E estamos.
- Então quem está correndo no andar de cima?
Cleiton pediu minha ajuda para investigar o sobrado e me passou uma lanterna. Admito que estava assustado demais, mesmo assim fui com ele por todos os lugares do sobrado. Ouvimos passos e risadas pela casa, mas não havia nem sinal de qualquer ser vivo ali dentro. Ser vivo.
O clima para sair já não existia mais e diante do pavor de dona Rosália, a levamos pra minha casa. Minha mãe tratou de acalmá-la contando suas piadas (Deus a abençoe) e logo dona Rosália estava refeita.
Cleiton, porém, parecia furioso. Trouxe-o ao meu quarto para uma conversa e ele se dizia irritado com o que estava acontecendo no sobrado desde a chegada de Pazú.
- Esse nome dele – ele falou – é o que mais me intriga. Pazú. Sabe o que me lembra? Pazuzu.
- O que é isso?
- O demônio da Mesopotâmia. Diz lenda que ele chegava com os ventos do verão, levando o flagelo aonde quer que ele fosse. Era conhecido como o agarrador, pois gostava de carregar espíritos junto a ele.
- Caramba, cara, Pazú já me dava medo antes de eu o associá-lo a essa história... Agora então... Eu o vi entrar no cemitério há alguns dias atrás.
- Mesmo? Onde?
- Em Botafogo.
- Tem alguma coisa muito errada com esse homem e hoje ele vai ter de me explicar o que é.
Cleiton sempre foi muito calmo. Era a primeira vez que eu o via tão irritado. E quando faltou energia, sua irritação pareceu aumentar ainda mais. Só disfarçou quando minha mãe subiu até meu quarto acompanhada de dona Rosália. Juntos, ficamos olhando a noite chuvosa e as ruas escuras. Lembram do que eu falei sobre o medo? Pois é, ele era quase palpável naquele momento.
Quando a chuva estiou, ouvimos barulhos na rua. Alguém se aproximava segurando uma vela. Pazú. Não posso dizer se foi efeito da luz da vela sobre ele, mas sei que quando ele chegou vi dezenas de vultos escuros ao seu redor. Me apavorei.
- Vocês ficam aqui – falou Cleiton – Vou ter uma conversinha com esse cara.
- Cleiton, não... Espere a luz voltar! – falou sua mãe.
Mas ele insistiu que ela ficasse. Vi quando ele atravessou a rua e adentrou o sobrado. Nada foi ouvido por vários minutos. Nada. Os dois então saíram do sobrado juntos, mas cada um seguiu um lado. Pazú seguiu a rua principal. Cleiton voltou a minha casa.
- E então? – perguntei.
- Eu disse que vamos fazer obra no sobrado e que seria melhor que ele procurasse outro lugar pra ir. Indiquei os albergues da rua principal e ele foi até lá checar se havia quartos disponíveis. Podemos ir pra casa.
Quando os dois atravessavam a rua, a energia voltou. Os dois acenaram pra nós sorrindo. Minha mãe fez uma piadinha qualquer que eu não consigo lembrar e Cleiton respondeu de volta, rindo bastante. Foi a última vez que o vimos vivo.
Fomos acordados por dona Rosália, pedindo por ajuda. Ela dizia que Cleiton não havia acordado para ir para a faculdade e não abrira a porta do quarto quando ela chamara. Fui até lá, com a adrenalina correndo nas minhas veias, e arrombei a porta.
Cleiton estava na cama, com uma expressão de pânico no rosto. Morto. Com lágrimas nos olhos, passei mão em seu rosto para amenizar suas feições. Quando sua mãe adentrou o quarto, era o desespero encarnado. Eu não podia assistir àquilo.
Enquanto minha mãe cuidava dela, eu cuidava de entrar em contato com a polícia e do enterro. Ataque cardíaco; um rapaz de apenas vinte e três anos. Quando nos preparávamos para ir ao cemitério, no dia seguinte, Pazú voltou pra casa. Ele apenas nos olhou, pois estávamos com dona Rosália, e entrou no sobrado.
- Esse homem... – murmurou minha mãe – O que ele ainda faz aqui?
- Não deve ter conseguido outro lugar pra ficar.
Enquanto dona Rosália chorava e Cleiton era enterrado, eu não conseguia parar de pensar que de alguma forma o encontro com Pazú aquela noite decretara a morte do meu vizinho.
Dona Rosália passou os dias que se seguiram ao enterro de seu filho nos evitando, mas nós ouvíamos discussões e gritos todas as noites no sobrado. Algo estava indo mal ali. Minha mãe pediu que eu interviesse e eu liguei pra polícia. Quando eles chegaram, eu trouxe a dona Rosália pra dormir conosco. Ela estava em um estado lastimável.
- Eu vi... – disse ela – meu filho naquela casa. Ele estava conversando com Pazú.
- Isso é impossível, Rosália – falou minha mãe – Cleiton se foi. Não está mais entre nós.
- Não em corpo, mas seu espírito está lá. Sabe o que eu descobri? Que ele, Pazú, é um colecionador. Ele coleciona fantasmas. Estão todos em seu quarto, aprisionados de alguma forma naquela valise. São eles que me acordam a noite, que fazem barulhos, que perturbam os cães, que conversam... Meus hóspedes, os mais antigos, foram embora hoje. Eles têm medo do que viram... E não os culpo. São homens, mulheres, crianças... Todos no meu sobrado, agarrados por Pazú.
- Você está perturbada com a morte do Cleiton, Rosália, é só isso.
- Não é. Ele coleciona fantasmas, me ouça. Eu sei disso – ela estava trêmula – A polícia o obrigou a sair e ele vai embora amanhã. Mas eu preciso ir até o quarto dele... Preciso destruir aquela valise e libertar os espíritos. Preciso libertar meu filho.
- Isso está errado, Rosália! Você não vai lá. Você vai dormir aqui e pronto.
- Não posso... Não posso...
Mesmo assim ela adormeceu. Minha mãe se recolheu algumas horas depois. Eu fiquei acordado boa parte da noite. A maior parte eu passei ouvindo gritos e risos que vinham do sobrado do outro lado da rua. Era assustador, mas não sei até que ponto eu poderia ou não acreditar no que dona Rosália disse. Aquela valise... Colecionador de fantasmas... Então dormi. E não vi minha vizinha voltar ao seu sobrado.
Quando minha mãe me avisou que dona Rosália estava morta, na manhã seguinte, eu corri até sua casa. O corpo dela estava sobre sua cama, dando a impressão de que morrera dormindo. Porém, as meias em seus pés estavam sujas de terra, como se por toda a noite ela estivesse andando pela casa ou pelo quintal. Não fora uma morte natural. Pelo menos não de todo.
Seu hóspede, Pazú, estava acabando de sair do quarto. Foi a primeira vez que eu o vi tão de perto e senti meu coração bater descompassado. Havia algo estranho em seu olhar. Uma certa melancolia, ou ódio... Nunca poderia dizer ao certo. Deixou a chave sobre a mesa da cozinha, com uma certa quantia de dinheiro, e carregava sua velha valise. A tal valise. Eu nunca saberia o que acontecera ali naquela noite entre minha vizinha e aquele estranho.
- Sabe que ela morreu, não é? – eu disse.
- É o destino de todos nós – respondeu com sua voz rouca.
- E você não viu nada?
- Como disse à sua mãe, a encontrei no chão da cozinha e a trouxe para o quarto.
- Você não teve nada a ver com isso?
Ele não se ofendeu como eu achei que faria. Pelo contrário, acendeu um cigarro preto e sorriu.
- Quisera eu que a morte tivesse um razão.
- E eu queria que você deixasse o espírito dela livre.
Ele me encarou e riu. Riu tanto que quase engasgou.
- Deixe-me ir, rapaz, já está chovendo outra vez e eu preciso de um novo lugar pra ir. A polícia me quer longe daqui.
Ele saiu do sobrado, deixando seus passos na lama. Então, apavorado, eu vi que outros passos eram deixados atrás deles. Muitos passos. Senti um frio percorrer meu corpo, pois ele não saía sozinho da casa. Cheguei até a soleira do portão e enquanto ele seguia a rua sob a chuva até o ponto do bonde, pude ver as pegadas nas poças d`água atrás dele. Ele conversava com alguém. Quando o vento bateu, soprando a chuva na diagonal, eu vi formas distintas de pelos menos treze pessoas que o seguiam. Ele olhou pra trás e riu, me dando a certeza de que dona Rosália estava certa. Aquele homem maldito, que chegou com a chuva e se foi com ela, colecionava fantasmas. E ela, assim como seu filho, era agora uma das peças da coleção.