A escritora gaúcha Mauren Müller estréia como colaboradora da Câmara com um conto impressionante e assustador. Uma justiça nunca antes esperada alcança um criminoso de forma aterradora. Boa leitura!
O CACHORRO PRETO
Mauren Guedes Müller
Afonso era um sujeito alegre que vivia contando piadas. Mesmo assim, alguns de seus colegas desconfiavam de que ele guardava algum segredo. Embora fosse bastante comunicativo, recusava-se a falar do próprio passado. E muitos de seus conhecidos não o consideravam possuidor do melhor caráter deste mundo.
Todas as noites, depois do trabalho, Afonso ia para um determinado bar e ficava bebendo, petiscando e passando cantadas nas garotas. Normalmente ele era um dos últimos fregueses a deixar o local. Naquela noite, ele foi o último a sair. Um denso nevoeiro dava à rua deserta um aspecto assustador. Meio bêbado, ia tomar o rumo de sua casa quando alguma coisa o fez paralisar-se por uns instantes. Era um cachorro grande, preto, que o encarava com insistência.
– Passa! disse Afonso.
Mas o cão não se moveu.
Afonso falou mais alto, bateu com o pé no chão, gritou. O animal permaneceu a encará-lo com seus olhos de um tom castanho-amarelado que lhe pareceram algo entre tristes e decididos. O único som que Afonso ouvia, além da própria voz, era o da respiração do cão, que não se moveu. Embora estivesse com um pouco de medo, Afonso deu-lhe as costas e seguiu caminhando em direção a sua casa, que ficava ali perto. Pelo menos, o cachorro não o seguiu – permaneceu estático onde estava.
Na noite seguinte, a mesma coisa: ao sair do bar, lá estava o cão negro. Afonso gritou com ele, e ele continuou a fitá-lo de uma forma que parecia desnudar-lhe a alma. Afonso foi-se embora, apreensivo, e o cão continuou no mesmo lugar. A cena se repetiu por várias noites. Numa delas, Afonso saiu do bar com uma lata de cerveja e atirou-a na direção do animal. Nem assim o bicho se moveu. Quando deixava o bar na companhia de alguém, percebeu que não enxergava o cachorro. Mas sempre que saía sozinho ele estava lá, cravando-lhe os olhos. Numa determinada noite, após haver tido uma desilusão amorosa, ficou bebendo só até altas horas. Afonso até se havia esquecido do cachorro, por causa de sua irritação. Mas, quando saiu do bar, lembrou-se dele. Havia novamente um denso nevoeiro, comum naquela cidade durante aquela época do ano. A rua estava erma e escura. Afonso olhou em volta. Não viu nem sinal do cão. Respirou aliviado e deu alguns passos na direção de sua casa.
Nesse instante, sentiu uma mão pesar sobre seu ombro e se voltou. Deparou-se com dois homens, que tinham o rosto coberto. Um deles mostrou-lhe uma faca.
– A carteira ou a vida – disse ele.
Afonso demorou um pouco para entender que estava sofrendo um assalto. Os efeitos do álcool o deixavam confuso. Excitado pela bebida, resolveu reagir. Tentou dar um soco no assaltante que estava desarmado. Mas o fato é que mal conseguia se manter em pé, e o sujeito facilmente o derrubou, preparando-se para começar a chutá-lo.
De repente, Afonso viu uma sombra negra se lançar sobre o assaltante e fazê-lo rolar pelo chão. O outro assaltante recuou um pouco, mas depois investiu contra a criatura com a faca. Esta lançou-se em sua garganta. O homem soltou um grunhido, o último som que conseguiu emitir, e deixou cair a faca. Afonso ouviu o metal da arma tilintando ao cair na calçada e sentiu o sangue respingar sobre si. Tentou se levantar, mas só conseguiu sentar-se no chão. O cão negro lançou-se sobre o outro assaltante e Afonso viu, com certo horror, que o animal o mordia no rosto, arrancando-lhe parte da face. O infeliz berrou, desesperado. Afonso finalmente conseguiu se levantar e saiu dali, correndo, cambaleando, caindo e tornando a levantar-se, até que finalmente entrou em casa. Seu casaco estava manchado de sangue vermelho-escuro. Livrou-se da peça de roupa e mal teve tempo de chegar ao banheiro, onde vomitou, um pouco por causa da bebedeira, um pouco por causa da cena grotesca que acabara de presenciar.
No dia seguinte, esperava ler alguma coisa no rádio ou nos jornais acerca dos assaltantes. Deviam ter morrido. Pelo menos o que tivera a garganta dilacerada pelo cão. Mas não havia uma palavra sequer na imprensa acerca do ocorrido. Bem cedo, passou pela frente do bar, imaginando que ainda haveria vestígios do sangue derramado, mas a calçada estava estranha e impecavelmente limpa. Perguntou ao funcionário da limpeza do bar e a alguns vizinhos. Ninguém sabia de ataque de cachorro ou coisa parecida por ali. Afonso foi trabalhar, mas permaneceu o dia inteiro confuso. Teria sido uma alucinação? Quando chegou em casa, as manchas de sangue em seu casaco pareciam demonstrar o contrário. Resolveu guardá-lo sem lavar, mais para se convencer de que não estava louco do que por qualquer outro motivo.
Durante alguns dias, não foi ao bar. Mas, por fim, seus amigos o convenceram de voltar lá, no que sempre fora seu lugar preferido da cidade para um “happy hour”. Acabou ficando até mais tarde e saiu sozinho. Mal cruzou a porta do estabelecimento, divisou, em meio à neblina, a figura conhecida do cachorro preto.
Talvez estivesse bêbado demais para ter medo, mas o fato é que o animal provavelmente lhe salvara a vida.
– Vem cá – chamou.
O cão moveu-se em sua direção. Afonso acariciou-lhe a cabeça. Caminhou lentamente para casa, e o cachorro o seguiu. Afonso abriu o portãozinho do pátio e o deixou acomodar-se na varanda. Na manhã seguinte, o animal permanecia por ali. Deitou-lhe alguns restos de comida antes de sair para o trabalho.
Porém, naquele mesmo dia, Afonso descobriu, pelos jornais, que havia sido descoberto o corpo em decomposição de um homem, com a garganta dilacerada, e, pela foto que apareceu no jornal, identificou o bandido que o atacara. Não fazia idéia de como o corpo atravessara a cidade e fora parar no matagal onde havia sido encontrado. Porém, lembrando-se de que havia outro bandido, o qual talvez ainda estivesse vivo – vivo, desfigurado pelas mordidas do cão e furioso, resolveu comprar uma arma para se defender, caso o criminoso sobrevivente viesse atrás dele. Adquiriu clandestinamente um revólver que guardou em casa.
Daí a algumas noites, voltou ao bar e conheceu uma garota. Após algumas doses de bebida e muita conversa, convenceu-a a visitar sua casa.
Quando chegaram, Afonso não viu o cão no pátio da frente. Chamou-o, mas ele não apareceu. Não deu importância. Ele e a jovem entraram. Afonso acendeu a luz.
De repente, vindo do interior da casa, o enorme cão negro avançou furiosamente. A moça ainda teve tempo de gritar. O animal lançou-se sobre ela, derrubando-a. Afonso tentou afastá-lo, mas o cão rosnou para ele de forma tão assustadora que ele se desesperou. Investiu contra o bicho, que o mordeu, rasgando-lhe a pele da mão esquerda, e voltou a cravar os dentes no peito da moça, de uma maneira tal que parecia querer arrancar-lhe um dos seios. Ela berrava, contorcia-se, mas não conseguia se defender.
Diante daquela visão horrível, Afonso buscou o revólver. Apontou-o e hesitou.
– Atira! gritou a mulher. – Por favor, atira!
A mão de Afonso tremia, mas ele apertou o gatilho duas vezes.
Súbito, o cão largou sua presa e fugiu para o fundo da casa, sem qualquer sinal de ferimento. Afonso correu para a jovem, que ainda lhe lançou um olhar desesperado. Sua roupa estava coberta de sangue. Ele pensou em chamar uma ambulância, mas, mal tirara o telefone do gancho, ouviu fortes batidas na porta:
– Polícia! gritou uma voz masculina. – Abra!
Estarrecido, Afonso não se moveu. A voz insistiu, e ele pensou em fugir, mas não teve tempo. Dois policiais arrombaram a porta e, antes que ele entendesse o que estava acontecendo, haviam-lhe colocado as algemas. Um vizinho ouvira os tiros e telefonara para a polícia, que acionara uma viatura que se encontrava próxima ao local...
Diante do Delegado, Afonso tentava se explicar:
– Um cachorro... Meu cachorro a atacou, e eu tive de atirar para tentar salvá-la!
O Delegado o olhou com interesse.
– Deveras, Sr. Afonso? Pois eu lhe digo que não havia qualquer sinal de dentadas de cachorro no corpo da vítima.
– Mas como? Eu vi! O cachorro mordeu... Mordeu os seios dela, e eu tive que atirar nele!
O Delegado deu uma gargalhada e o encarou.
– Desta vez você arranjou uma desculpa terrivelmente absurda para ter cometido um crime, Afonso Pedroso.
Afonso se sentiu confuso.
– O quê? perguntou.
– Você não se lembra de mim, Afonso. Mas eu me lembro de você. Faz tempo e foi longe daqui. Eu era apenas um inspetor de polícia. Mas me lembro muito bem de seu ar de deboche, de sua certeza na impunidade. Desta vez você não vai escapar, Afonso.
Fez uma pausa e o olhou:
– Até porque não é de um único homicídio que você está sendo acusado. O namorado da mulher que você matou também foi assassinado há alguns dias. Era um cara bastante perigoso, e não vou me admirar se você alegar legítima defesa. Mas também não vou acreditar em você. Nem o promotor. E, provavelmente, nem o júri, desta vez.
– Quem foi assassinado? perguntou Afonso, sentindo-se cada vez mais perdido.
– O namorado de sua vítima, Afonso. Foi encontrado morto num matagal, há alguns dias. E nós encontramos um casaco seu, na sua casa, com sangue. Tenho certeza de que os exames comprovarão que é o sangue dele.
Afonso sentiu-se sem ar.
– Mas... – gemeu.
– Mas também foi o cachorro que matou aquele homem!...
O Delegado deu uma gargalhada.
– Cachorro? Que cachorro? A polícia não viu cachorro nenhum em sua casa, Afonso!
Afonso estremeceu. O Delegado inclinou-se em sua direção e cravou-lhe os olhos.
– Desta vez, você vai pagar por estes dois crimes, Afonso Pedroso. Pena que eu não possa mais fazer você pagar por aquele outro...
Arrastaram-no à cela da Delegacia. Num canto dela, havia uma janelinha com grades que dava para um pátio interno. Afonso correu para ela, sentindo-se sufocado, e respirou fundo.
Então, seus olhos pousaram numa sombra negra, na qual brilhavam duas chamas castanho-amareladas, que o encarava, ofegante, a língua muito rubra balançando no ritmo de sua respiração.
De repente, Afonso se lembrou de tudo o que acontecera anos atrás.
Tivera um bom advogado e fora absolvido. Obrigara-se a se esquecer. Mas agora, tudo voltava à sua mente, como se houvesse uma explosão, um clarão que lhe incendiasse, na alma, aquelas memórias que ele tentara enterrar com tanto afã.
Um empregado de seu pai. Um jovem. Já nem se lembrava por quê. Talvez houvesse sido por ele haver reclamado das regras de trabalho desumanas a que ele e seus companheiros costumavam ser expostos. Afonso e outros dois empregados, mais subservientes, haviam-no encurralado, num canto da fábrica, após o final do expediente. Afonso dera-lhe um soco tão violento que lhe fizera com que dois dentes do infeliz saltassem longe. Depois, enquanto os outros dois o agarravam, Afonso lhe desferira vários pontapés. O jovem cuspia sangue, e Afonso não sabia se era dos dentes arrancados ou se de dentro de seu corpo, de algum órgão interno – e nem lhe importava. Por fim, um dos dois tinha lhe alcançado uma barra de ferro. Afonso batera com ela no jovem até seu braço ficar dormente.
Os outros dois empregados haviam-no levado, moribundo, e o tinham soltado a uma boa distância da fábrica. Mas Afonso ficara sabendo que o jovem não tinha resistido aos ferimentos.
O cachorro preto latiu, arrancando-o de suas lembranças.
Súbito, Afonso compreendeu.
– Desgraçado! gritou. – Vagabundo!...
Dali por diante, sempre que foi levado a interrogatório, Afonso só pronunciava o que, aos olhos do Delegado, do Juiz e do Promotor, não passavam de palavras sem nexo. Foi considerado louco e internado num manicômio judiciário, onde ficou até o final de seus dias. E, sempre que tentavam falar com ele, dizia coisas sem sentido a respeito do fantasma de um jovem que assumira a forma de um cachorro para se vingar e para destruí-lo...
JUNHO DE 2007
Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.