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7.9.07

A GUERRA DOS MUNDOS (final do livro um)

LIVRO I - CAPÍTULOS XV, XVI & XVII

XV
O QUE ACONTECEU NO SURREY

Foi enquanto o coadjutor esteve sentado e me falou daquele modo, sob a sebe, nos prados vizinhos de Halliford, e enquanto o meu irmão fixava a corrente de fugitivos de Westminster Bridge, que os marcianos retomaram a ofensiva. Tanto quanto é possível afirmar através dos diferentes relatos que foram apresentados, a maioria deles permaneceu ocupada com preparativos, no fosso de Horsell até às nove horas dessa noite; executavam a toda a pressa uma operação que libertava enormes quantidades de fumo verde.

No entanto, é certo que três saíram por volta das oito horas, avançando lenta e cuidadosamente, e prosseguiram através de Byfleet e Pyrford em direcção a Ripley e Weybridge, surgindo deste modo, banhados pelo sol no ocaso, à vista das baterias que os aguardavam. Estes marcianos não avançavam num corpo, mas segundo uma linha, cada um deles a uma distância de cerca de três quilómetros do seu camarada mais próximo. Comunicavam uns com os outros por intermédio de uivos semelhantes aos de uma sereia, percorrendo a escala de uma nota para outra.

Foram estes uivos e o tiroteio em Ripley e St. Geor-ge's Hill que ouvimos em Upper Halliford. Os atiradores de Ripley, voluntários inexperientes de artilharia, que nunca deviam ter sido colocados naquela posição, dispararam insensatamente uma descarga prematura e ineficaz, fugindo depois a cavalo e a pé através da vila abandonada, enquanto o marciano, sem usar o Raio da Morte, passeava serenamente por cima das armas, parava cautelosamente entre elas e chegava assim, de um modo inesperado, ao pé daquelas que se encontravam em Painshill Park, que destruiu.

No entanto, os homens de St. George's Hill eram mais bem comandados ou mais corajosos. Ocultos por um pinhal, a sua presença parece ter passado despercebida ao marciano que se achava mais perto deles. Apontaram as peças (tão deliberadamente como se estivessem numa parada, e dispararam a uma distância de cerca de cem metros.

As bombas rebentaram em redor do marciano, e viram-no dar alguns passos, vacilar e cair. Houve um alarido unânime e as armas foram recarregadas com uma pressa frenética. O marciano atingido soltou um ulular contínuo e, logo a seguir, um segundo gigante reluzente, respondendo-lhe, apareceu a sul por sobre as árvores. Parecia que uma perna do trípode tinha sido despedaçada por uma das bombas. A segunda descarga passou longe do marciano que se achava por terra e, simultaneamente, os seus dois companheiros dispararam o Raio da Morte sobre a bateria. As munições explodiram, os pinhais em redor das peças incendiaram-se, e só escaparam um ou dois dos homens, que já corriam pela crista da colina.

Em seguida, pareceu que os três se consultavam, parados, e os batedores que os vigiavam relataram que tinham ficado absolutamente quietos durante a meia hora seguinte. O marciano que fora derrubado rastejou lentamente para fora do capuz da couraça - uma figura pequena, castanha, que sugeria singularmente, àquela distância, uma mancha de geada; parecia atarefado a reparar o seu suporte. Cerca das nove horas tinha terminado o seu trabalho, pois o capuz via-se de novo por sobre as árvores.

Foi nessa noite, alguns minutos depois das nove, que outros quatro marcianos se reuniram a estas três sentinelas. Cada um dos recémn chegados transportava um espesso tubo negro, e o mesmo se passava com os outros três. Os sete começaram a distribuir-se em distâncias iguais ao longo de uma linha curva entre St. George's Hill, Weybridge e a vila de Send, a sudoeste de Ripley.

Uma dúzia de foguetes rebentou por sobre as colinas, .defronte deles, mal começaram a mover-se, avisando as baterias que aguardavam nas imediações de Ditton e Esher. Ao mesmo tempo, quatro das suas máquinas de combate, igualmente armadas de tubos, atravessaram o rio; duas delas, desenhando-se negras contra o céu a ocidente, surgiram à minha vista e do coadjutor quando corríamos, penosamente, ao longo da estrada que sai de Halliford em direcção ao norte. Moviam-se, ao que me parecia, por sobre uma nuvem, pois uma neblina leitosa cobria os campos e erguia-se a um terço da sua altura.

Quando o coadjutor os viu soltou um grito e começou a correr; mas eu sabia que não valia a pena fugir a correr de um marciano; assim, voltei para trás e rastejei sobre urtigas orvalhadas e silvas para a larga vala que se abria à beira da estrada. Ele olhou para trás, viu o que eu estava a fazer e veio juntar-se a mim.

Os dois marcianos pararam; o que estava mais próximo de nós enfrentava Sunbury e o mais afastado era uma forma cinzenta, indistinta, na noite, para os lados de Staines.

Já não se ouvia o ocasional uivo dos marcianos; eles tomaram as suas posições num vasto crescente em redor dos cilindros, num silêncio absoluto. O crescente tinha a extensão de vinte quilómetros. Nunca, desde a invenção da pólvora, houvera um início de batalha tão calmo. O efeito seria precisamente o mesmo para nós e para um observador nas imediações de Ripley - os marcianos pareciam deter a posse exclusiva da noite escura, apenas iluminada pela lua esguia, as estrelas, o clarão rubro que se via em St. George's Hill e nos pinhais de Painshill.

Mas as armas esperavam, enfrentando, de todos os lados, este crescente - em Staines, Hounslow, Ditton, Esher, Ockham, atrás das colinas e dos bosques a sul do rio, através dos prados relvados a norte dele, onde quer que um grupo de árvores ou as casas de uma vila permitissem uma cobertura suficiente. Os foguetes de sinal explodiam, derramavam na noite as suas faíscas, desvaneciam-se, e o espírito de todas aquelas baterias emboscadas sofria uma tensa expectativa. Bastava que os marcianos penetrassem na linha de fogo e, instantaneamente, aquelas formas negras de homens, imóveis, aquelas peças que reluziam tão sombriamente às primeiras horas da noite, explodiriam numa fúria tempestuosa de batalha.

Sem dúvida que o pensamento que predominava num milhar daqueles cérebros vigilantes, assim como no meu, era o enigma - o que é que eles pensavam a nosso respeito. Compreenderiam que os nossos milhões estavam organizados, disciplinados, trabalhando em conjunto? Ou interpretariam os nossos jorros de fogo, a súbita picada das nossas bombas, a nossa firme investida sobre o seu acampamento, como nós interpretaríamos a furiosa unanimidade da arremetida de uma colmeia de abelhas? Suporiam que nos podiam exterminar? (Nessa altura ninguém sabia de que comida precisavam.) Revolvia na minha cabeça uma centena de perguntas semelhantes, ao passo que observava a imensa forma da sentinela. E, no fundo do meu espírito, reinava a sensação da existência de todas as forças desconhecidas e ocultas que se encontravam nas imediações de Londres. Teriam preparado armadilhas? Estariam as fábricas de pólvora de Hounslow devidamente preparadas? Teriam os londrinos o ânimo e a coragem de fazerem da sua imensa área de casas uma grande Moscovo?

Em seguida, passado um momento interminável, ao que nos parecia, agachados e espreitando através da sebe, ouviu-se um ruído semelhante à descarga longínqua de uma peça. Depois, outro mais perto e ainda outro. Então, o marciano ao nosso lado ergueu o seu tubo e descarregou-o, à maneira de uma espingarda, com um forte estampido que fez estremecer o solo. Aquele que se encontrava para os lados de Staines seguiu-lhe o exemplo. Não havia luz, nem fumo, simplesmente aquela pesada detonação.

Estes disparos, de minuto a minuto, exitaram-me de tal modo, um após o outro, que esqueci a minha segurança pessoal e as minhas mãos escaldadas; trepei pela sebe e fitei na direcção de Sunbury. Neste momento, seguiu-se outro estampido e um grande projéctil voou na direcção de Hounslow. Esperava ver, pelo menos, fumo ou fogo, ou qualquer evidência semelhante do seu trabalho. Mas só via o azul-cseuro do céu, com uma estrela solitária, e o nevoeiro branco que se derramava a baixa altura numa grande extensão. E não houvera nenhum estalido, não se ouvira nenhuma explosão em resposta. O silêncio restabelecera-se; o minuto alongou-se em três.

Que aconteceu? - perguntou o coadjutor, levantando-se, ao meu lado.

Só Deus sabe! - respondi.

Um morcego esvoaçou perto e desapareceu. Começou a ouvir-se um ruído longínquo de tiros, que em breve se extinguiu. Olhei de novo para o marciano, e vi que estava a mover-se para leste, seguindo a margem do rio, com um movimento rápido e balouçante.

Esperava a todo o momento ouvir os tiros de qualquer bateria oculta; mas a calma da tarde não foi quebrada. A figura do marciano tornou-se mais pequena à medida que ele recuava, e o nevoeiro e a noite cada vez mais cerrados acabaram por tragá-lo. Movidos por um impulso comum subimos um pouco mais. Para os lados de Sunbury, via-se um vulto escuro, como se tivesse repentinamente surgido ali um outeiro cónico, ocultando as regiões mais afastadas; e depois, muito para além do rio, por sobre Walton, vimos outra elevação do mesmo tipo. Estas formas, semelhantes a colinas, perdiam altura e tornavam-se mais largas enquanto as fitávamos.

Movido por um súbito pensamento, olhei para norte e vi que se erguera uma terceira destas pequenas colinas de nuvens negras.

Tudo se tornara de súbito muito tranquilo. Mais longe, para sudeste, rompendo o silêncio, ouvimos os marcianos a gritarem uns aos outros e, em seguida, o ar estremeceu novamente com o estrondo longínquo das suas armas. Mas a artilharia de terra não deu nenhuma resposta.

Nessa altura não compreendíamos estas coisas, mas, mais tarde, conheceria o significado destas ominosas pequenas colinas que se formavam ao crepúsculo. Cada um dos marcianos, dispostos no grande crescente que descrevi, descarregara, por intermédio do tubo semelhante a uma espingarda, uma enorme granada por sobre qualquer colina, mata, grupo de casas, ou outro possível esconderijo de armas que pudesse existir defronte dele. Alguns dispararam unicamente um destes projécteis, outros, dois - como fora o caso daquele que observáramos; afirma-se que o marciano que se encontrava nas imediações de Ri-pley não descarregou menos de cinco, dessa vez. Estas granadas esmagavam-se ao embaterem no solo - não explodiam - e desenvolviam imediatamente um enorme volume de vapor pesado e escuro que se enovelava e fluía numa nuvem de cúmulos, enormes e da cor do ébano, uma colina gasosa que tudo submergia e se derramava lentamente por sobre a região em redor. O contacto deste vapor, a inalação deste acre fogo-fátuo, significava a morte para todo aquele que o respirasse.

Este vapor era pesado, mais pesado do que o mais denso fumo; assim, depois dos primeiros jactos e fluxos tumultuosos do seu impacto, baixava e fluía sobre o solo mais como um líquido do que como um gás, abandonava as colinas, e escorria nos vales, nas valas e nas correntes de água tal como acontece, segundo ouvi dizer, com o ácido carbónico gasoso exalado pelas fendas vulcânicas. E quando tocava na água, ocorria uma determinada acção química, e a superfície cobria-se instantaneamente de uma escuma pulverosa que se submergia lentamente e abria caminho a mais. A escuma era absolutamente insolúvel e é estranho, considerando o rápido efeito do gás, que se pudesse beber, sem causar dano, a água no qual se filtrava. O vapor não se difundia como aconteceria com um gás verdadeiro. Aglomerava-se, suspenso, escorrendo lentamente pelos declives e movia-se relutantemente quando o vento o impelia. Misturava-se pouco a pouco com o nevoeiro e a humidade do ar, e descia sobre a terra em forma de poeira. Ignoramos ainda por completo a natureza desta substância; a única coisa que conhecemos é a existência de um elemento desconhecido, com um grupo de quatro linhas no fundo azul do espectro.

Depois de tumultuosa ascensão, se já cessara a sua dispersão, o fumo negro aderia tão estreitamente ao solo, mesmo antes de se precipitar, que a dezasseis metros de altura, nos telhados, e nos andares superiores das casas altas, em cima de grandes árvores, havia uma possibilidade de escapar totalmente ao seu veneno; nessa mesma noite verificou-se este facto, em Street Cobham e Ditton.

O homem que escapou, no primeiro local mencionado, conta uma história maravilhosa acerca da estranheza desta corrente remoinhante, e de como olhara para baixo do pináculo da igreja e vira as casas da vila sobressaindo como fantasmas do seu vazio de tinta. Ficou ali durante um dia e meio, cansado, faminto e queimado pelo sol; debaixo do céu azul, com a perspectiva, ao fundo, das distantes colinas, a terra era uma extensão de negro de veludo, onde assomavam telhados vermelhos e árvores verdes, e onde, mais tarde, se erguiam aqui e ali, velados de negro, arbustos e portões, celeiros, telheiros e velhos muros.

Mas isto passou-se em Street Cobham, onde o fumo flutuou até descer, automaticamente, ao chão. Em geral, os marcianos, depois de ele ter servido os seus propósitos, limpavam novamente o ar, varrendo o fumo por intermédio de um jacto de vapor.

Fizeram isto com as aglomerações de vapor perto de nós; vimo-lo, à luz das estrelas, da janela de uma casa abandonada de Upper Halliford, onde havíamos regressado. Dali, podíamos ver os holofotes sobre Richmond Hill e Kingston Hill, varrendo a noite, de um lado para o outro e, pelas onze horas, as janelas tilintaram, e ouvimos o ruído da descarga das pesadas armas de cerco que tinham sido colocadas nesse local. Os disparos continuaram intermitentemente no espaço de um quarto de hora, disparando projécteis ao acaso sobre os marcianos invisíveis que se encontravam em Hampton e Ditton; em seguida, os débeis feixes de luz eléctrica extinguiram-se e foram substituídos por um brilhante clarão vermelho.

Depois, caiu o quarto cilindro - um meteorito de um verde brilhante - em Bushey Park, como soube mais tarde. Antes de começar a ouvir-se a descarga das armas nas linhas das colinas de Richmond e Kinsgston, ouviu-se um canhoneio intermitente, ao longe, a sudoeste, que se devia, penso, aos disparos ao acaso das peças antes de o vapor negro sufocar os atiradores.

Então, metendo mãos à obra tão metodicamente quanto os homens enchem de fumo um ninho de vespas, os marcianos derramaram aquele vapor sufocante por sobre os arrabaldes de Londres. As extremidades do crescente separaram-se lentamente, até formarem, por fim, uma linha desde Hanwell a Coombe e Malden. Durante toda a noite, os seus tubos destrutivos avançaram. Nunca mais, desde a queda do marciano em St. George's Hill, deram à artilharia a sombra de uma possibilidade contra eles. Onde quer que se pudessem ocultar armas, descarregavam uma granada de vapor, e onde as peças estavam a descoberto, utilizavam o Raio da Morte.

Perto da meia-noite, as árvores em chamas ao longo dos declives de Richmond Park e o clarão que se elevava de Kingston Hill, projectavam a sua luz sobre uma cortina de fumo negro, que manchava todo o vale do Tamisa e se estendia até perder de vista. E dois marcianos patinhavam no rio, lentamente, projectando numa ou noutra direcção os seus jactos de vapor sibilante.

Nessa noite, economizaram o Raio da Morte, ou porque tivessem uma quantidade limitada de material para a sua produção, ou porque não quisessem destruir a região, mas apenas esmagar e intimidar os seus adversários. Na realidade, o seu segundo objectivo obteve pleno êxito. A noite de domingo foi o fim da oposição organizada aos seus movimentos. Depois disso, nenhum grupo de homens se ergueu contra eles, tão desesperada era a empresa. Mesmo as tripulações dos torpedeiros e dos destroyers, que apontavam as suas bocas de fogo rápido sobre o Tamisa, recusaram-se a ficar, amotinaram-se e desceram novamente o rio. A única operação ofensiva que os homens ousaram empreender, depois dessa noite, foi a preparação de minas e armadilhas, e mesmo neste trabalho os seus esforços eram frenéticos e espasmódicos.

É preciso que se imagine, tanto quanto se puder, o destino daquelas baterias nas imediações de Esher, numa espera carregada de tensão, ao crepúsculo. Não houve nenhuns sobreviventes. Podemos imaginar a sua expectativa ordenada, os oficiais atentos e vigilantes, os artilheiros prontos, as munições empilhadas, ao alcance da mão, as carretas das peças com os seus cavalos e carros, os grupos de espectadores civis tão perto quanto lhes permitiam, a calma da tarde, as ambulâncias e as tendas do hospital, com os indivíduos queimados e feridos, vindos de Weybridge; em seguida, a ressonância triste das descargas dos marcianos, e os projécteis que rodopiavam sobre as árvores e as casas e se esmagavam nos terrenos vizinhos.

Também podemos imaginar o súbito desvio da atenção, os remoinhos e inchaços daquela escuridão a avançar rapidamente, erguendo-se no céu, transformando o crepúsculo numa escuridão palpável - um antagonista vaporoso, estranho e horrível, passeando por cima das suas vítimas; os homens e os cavalos viam-se vagamente, a correr, a gritar estridentemente, a cair; gritos de terror, as armas abandonadas subitamente, os homens caídos no chão, a retorcer-se, e a rápida expansão do cone opaco de fumo. E, depois, noite e aniquilamento - nada mais senão uma massa de vapor silenciosa e impenetrável que ocultava as suas vítimas.

Antes da alvorada, o vapor negro fluiu ao longo das ruas de Richmond, e o aparelho governamental, em desintegração, num último esforço, moribundo, avisava a população de Londres da necessidade de fuga.


XVI
O ÊXODO DE LONDRES

Compreende-se assim a tumultuosa vaga de pânico que se expandiu na maior cidade do mundo, precisamente ao alvorecer de segunda-feira - a torrente da fuga que se alargou rapidamente num tumulto fervente em redor das estações de caminho de ferro, que se transformou numa luta horrível nos locais de embarque do Tamisa, fluindo velozmente por todos os canais praticáveis para norte e para leste. Cerca das dez horas, a organização da polícia, tal como aconteceu ao meio-dia com as organizações de caminhos de ferro, perdia coerência, forma e eficácia, perdia coragem, amolecia e fluía finalmente naquela rápida liquefacção do corpo social.

Todos os utentes das vias férreas a norte do Tamisa, e também os do sudoeste, em Cannon Street, tinham sido avisados à meia-noite de domingo; os comboios iam enchendo e, pelas duas horas, as pessoas lutavam ferozmente por um lugar em pé nalguma carruagem. Às três, as pessoas eram pisadas e esmagadas em Bishopsgate Street, a uns duzentos metros ou mais de distância da estação de Liverpool Street; disparavam-se revólveres, as pessoas injuriavam-se, e os polícias que tinham sido enviados para controlar o trânsito, exaustos e enfurecidos, partiam as cabeças das pessoas que deveriam proteger.

À medida que o dia avançava e os maquinistas e os fogueiros se recusavam a regressar a Londres, a pressão da fuga impelia as pessoas numa multidão sempre crescente, que saía das estações e progredia ao longo das estradas para o norte. Perto do meio-dia, foi visto um marciano, em Barnes, e uma nuvem de vapor negro que se afundava lentamente passou por sobre o Tamisa e atravessou as planícies de Lam-beth, cortando, no seu vagaroso avanço, todas as possibilidades de fuga pelas pontes. Outra nuvem passou sobre Ealing e cercou uma pequena ilha de sobreviventes em Castle Hill, vivos, mas impossibilitados de fugir.

Depois de uma luta ineficaz para embarcar num comboio para noroeste, em Chalk Farm - as locomotivas dos comboios que tinham sido carregados nos depósitos de mercadorias, aravam através da multidão aos gritos, e uma dúzia de homens destemidos teve de lutar para impedir que o maquinista fosse empurrado para a fornalha -, o meu irmão entrou na estrada de Chalk Farm, furou por entre um formigueiro veloz de veículos, e teve a sorte de ser dos primeiros no saque de uma loja de bicicletas. O pneu dianteiro da máquina que arranjou furou-se quando a arrastou pela janela, mas, não obstante, conseguiu pôr-se em movimento sem mais danos do que um corte no pulso. Não se podia passar pelo sopé escarpado de Havestock Hill devido aos vários cavalos que se encontravam por terra, e o meu irmão itomou a estrada de Belsize.

Conseguiu desta maneira escapar à fúria do pânico e, tomando a estrada de Edgware, alcançou a vila cerca das sete horas, em jejum e cansado, mas muito à frente da multidão. Viam-se pessoas de pé ao longo da estrada, curiosas, surpreendidas. Foi ultrapassado por um certo número de ciclistas, alguns cavaleiros e dois automóveis. O aro da roda partiu-se a dois quilómetros de distância de Edgware, e a máquina ficou inutilizada. Abandonou-a à beira da estrada e encaminhou-se penosamente para a vila. Havia lojas meio abertas na rua principal da localidade, e as pessoas apinhavam-se nos passeios, nos umbrais e nas janelas, fitando com espanto esta procissão extraordinária de fugitivos que começava a chegar. Conseguiu arranjar alguma comida numa estalagem.

Permaneceu durante algum tempo em Edgware, sem saber o que devia fazer em seguida. O número dos fugitivos aumentava. Muitos deles, como o meu irmão, pareciam dispostos a demorarem-sse na localidade. Não havia mais notícias acerca dos invasores marcianos.

Nessa altura, a estrada esttava apinhada de gente, mas ainda muito longe de congestionada. Muitos dos fugitivos montavam em bicicletas, mas depressa surgiram automóveis, cupés de duas rodas e carruagens; a poeira elevava-se em nuvens pesadas ao longo da estrada para St. Albans.

Provavelmente, foi uma vaga ideia de se dirigir para Chelmsford, onde viviam alguns amigos seus, que induziu o meu irmão, por fim, a seguir por uma tranquila azinhaga que ia para leste. Alcançou uma vedação, ultrapassou-a, e seguiu um atalho para nordeste. Passou perto de vários casais e alguns pequenos lugarejos cujos nomes não conhecia. Viu alguns fugitivos; numa azinhaga relvada que ia para High Barnet, encontrou duas senhoras que se tornaram as suas companheiras de viagem. Chegou precisamente a tempo de salvá-las.

Ouviu os seus gritos e, ao desembocar duma curva, viu dois homens que se esforçavam para arrastá-las para fora de uma pequena carruagem descoberta, enquanto um terceiro, com dificuldade, segurava a cabeça do assustado pónei. Uma das senhoras, uma mulher baixa, vestida de branco, limitava-se a chorar; a outra, uma figura de escuro, magra, açoutava o homem que lhe segurava o braço com um chicote que empunhava na mão livre.

O meu irmão compreendeu imediatamente a situação, gritou, e correu em direcção à cena de luta. Um dos homens desistiu e voltou-se para ele, que, ao compreender pelo rosto do adversário ser inevitável uma luta, e como era um hábil pugilista, foi imediatamente ao seu encontro e atirou-o ao chão de encontro à roda da carruagem.

Não havia tempo para respeitar as regras pugi-lísticas; assim, imobilizou-o com um pontapé, e agarrou pelo colarinho o homem que puxava o braço da senhora magra. Ouviu o tropel de cascos, o chicote bateu-lhe no rosto, um terceiro antagonista desferiu-lhe uma pancada entre os olhos, e o homem que ele segurava libertou-se e correu pela azinhaga, na mesma direcção de onde viera.

Parcialmente aturdido, o meu irmão deu consigo defronte do homem que tinha segurado a cabeça do cavalo, e verificou que a carruagem se afastava dele, descendo a azinhaga, aos ziguezagues; as duas mulheres olhavam para trás. O homem que se achava defronte dele, um mariola corpulento, tentou aproximar-se, mas deteve-o com um murro no rosto. Em seguida, compreendendo que estava abandonado, esquivou-se-lhe e desceu a azinhaga atrás da carruagem, perseguido de perto pelo homem robusto, e, mais longe, pelo fugitivo que voltara para trás.

Bruscamente, tropeçou e caiu; o seu perseguidor mais próximo apressou-se, e, quando se ergueu, defrontava de novo dois antagonistas. Teria poucas possibilidades contra eles se a senhora magra não tivesse, muito corajosamente, vindo em seu auxílo. Parecia que tinha um revólver escondido debaixo do assento quando ela e a sua companheira foram atacadas. Disparou a seis metros de distância, e por pouco não acertava no meu irmão. O menos corajoso dos ladrões fugiu e o seu companheiro seguiu-o, amaldiçoando a sua cobardia. Detiveram-se ambos no local onde jazia, insensível, o terceiro homem.

Tome isto! - disse a senhora magra, e deu o revólver ao meu irmão.

Volte para a carruagem-disse ele, limpando o sangue que lhe escorria do lábio fendido.

Ela voltou-se, sem pronunciar uma palavra - estavam ambos arquejantes - e juntaram-se à senhora de branco, que se esforçava por segurar o assustado pónei.

Era evidente que os ladrões tinham desistido. Quando o meu irmão os fixou, batiam em retirada.
- Se me permitem, sento-me aqui - disse o meu irmão. Sentou-se no assento da frente, desocupado.

A senhora olhou por cima do seu ombro.

- Dê-me as rédeas - disse ela, e bateu com o chicote no flanco do pónei. No momento seguinte, numa curva da estrada, perderam de vista os três homens.

Assim, inesperadamente, o meu irmão achou-se, arquejante, com um golpe na boca e os nós dos dedos cheios de sangue, rodando ao longo de uma azinhaga desconhecida na companhia destas duas mulheres.

Soube que eram a esposa e a irmã mais nova de um cirurgião que vivia em Stanmore, o qual regressara às primeiras horas da manhã, depois de tratar de um caso grave que ocorrera em Pinner. Tinha ouvido falar, no regresso, acerca do avanço dos marcianos. Correra para casa, despertara as mulheres - a criada abandonara-os dois dias antes -, embrulhara algumas provisões, pusera o revólver debaixo do assento - felizmente para o meu irmão - e dissera-lhes que se dirigissem para Edgware, a fim de embarcarem ali num comboio. Ficara para trás para avisar os vizinhos. Encontrar-se-iam, disse ele, cerca das quatro e meia da manhã; já eram quase nove horas, neste momento, e não tinham sabido nada dele. Não puderam ficar em Edgware devido ao trânsito crescente no local, de modo que tinham seguido por esta azinhaga dos subúrbios.

Foi isto o que contaram, em fragmentos, ao meu irmão, quando pararam de novo, nas imediações de New Barnet. Ele prometeu fazer-lhes companhia, pelo menos até que pudessem determinar o que deviam fazer, ou que o homem chegasse, e afirmou-lhes que era um hábil atirador de revólver - arma que desconhecia - a fim de lhes dar confiança.

Fizeram uma espécie de acampamento à beira da azinhaga, e o pónei satisfez-se com uma sebe. Falou-lhes da sua fuga de Londres, e de tudo o que conhecia acerca dos marcianos e do seu comportamento. O Sol subia no céu, e passado algum tempo a conversa morreu e deu lugar a um estado de inquieta expectativa. Passaram pela azinhaga várias pessoas, e o meu irmão extraiu delas as notícias que pôde. Todas as respostas entrecortadas que recebia convenceram-no ainda mais da necessidade imediata de prosseguirem a fuga. Falou-lhes acerca do assunto.

- Nós temos dinheiro - disse a mulher magra, hesitando.

Os seus olhos encontraram os do meu irmão e recobrou a confiança.

- Eu também tenho - respondeu.

Ela disse que levavam trinta libras em ouro, além de uma nota de cinco libras, e sugeriu que poderiam, com esse dinheiro, embarcar num comboio em St. Al-bans ou New Barnet. O meu irmão pensava que isso era inútil, dada a fúria que os londrinos tinham revelado ao abarrotarem os comboios, e mencionou a sua ideia de seguirem por Essex a caminho de Harwich, e escaparem, assim da região.

Mrs. Elphinstone - era este o nome da senhora de branco - não queria saber de nada e continuava a chamar pelo “George”; mas a cunhada mostrava-se espantosamente calma e decidida, e acabou por concordar com a sugestão. Assim, encaminharam-se para Barnet, a fim de atravessarem a grande estrada do norte; o meu irmão conduzia o pónei, poupando-o o mais possível.

Quando o Sol subiu no céu, o dia tornou-se excessivamente quente; debaixo dos pés, uma areia espessa e esbranquiçada queimava e ofuscava, e eram forçados a caminhar muito lentamente. As sebes estavam cinzentas de poeira. E, à medida que avançavam em direcção a Barnet, crescia um rumor tumultuoso.

Começaram a encontrar mais gente. Na maioria, estas pessoas tinham um olhar vago, murmuravam perguntas indistintas, estavam fatigadas, macilentas e sujas. Um homem, em trajo de noite, passou por eles a pé, de olhos no chão. Ouviram a sua voz e, olhando para trás, viram que ele agarrava o cabelo com uma das mãos e batia, com a outra, em coisas invisíveis. Quando lhe passou o paroxismo de raiva, retomou o seu caminho, sem olhar para trás uma só vez.

Prosseguiram em direcção às encruzilhadas, a sul de Barnet; viram uma mulher que se aproximava da estrada, vinda dos campos à esquerda, com uma criança ao colo e seguida por duas outras crianças; depois, passou um homem de fato preto, sujo, comum cajado numa das mãos e um pequeno sobretudo na outra. Em seguida, descrevendo a curva da azinhaga por entre as vivendas que a bordam no local onde desemboca na estrada principal, aproximou-se uma pequena carroça puxada por um pónei negro, coberto de suor; era conduzida por um jovem pálido, com um chapéu de feltro, cinzento de poeira. Havia três raparigas, operárias das fábricas de East End, e duas pequenas crianças, apinhadas na carroça.

- Por aqui vamos ter a Edgware? - perguntou o condutor, com uma expressão selvagem no olhar e o rosto lívido; quando o meu irmão lhe disse que deveria virar à esquerda, tomou imediatamente o cavalo, sem agradecer.

O meu irmão avistou uma fumaça de cinzento claro, ou neblina, que subia de entre as casas defronte deles e velava as fachadas brancas de um renque de outras habitações do lado de lá da estrada, entre as traseiras das vivendas. Mrs. Elphinstone gritou bruscamente, ao ver um certo número de línguas de chamas vermelhas fumegantes que se desenhavam no céu quente e azul. O ruído tumultuoso desvaneceu-se numa miscelânea desordenada de muitas vozes, no ruído áspero de muitas rodas, no rangido dos carros e no staccato dos cascos. A azinhaga descrevia bruscamente uma curva, a menos de cinquenta metros de distância das encruzilhadas.

- Meu Deus!-gritou Mrs. Elphinstone. - Para que lugar é que nos leva?

O meu irmão deteve os cavalos.

Pela estrada principal, seguia uma corrente tumultuosa de gente, uma torrente de seres humanos que corriam para o norte, empurrando-se uns aos outros. Tudo quanto se encontrava a seis metros do solo aparecia cinzento e vago através de uma grande nuvem de poeira, que o resplendor do sol tornava branca e luminosa. A poeira era perpetuamente renovada pelo tropel de uma densa multidão de cavalos e de homens e de mulheres a pé, e pelas rodas de veículos de todas as espécies.

- Abram caminho! - gritavam vozes. - Abram caminho!

Era como uma cavalgada, entre o fumo de um incêndio, em direcção ao ponto de encontro da azinhaga com a estrada; a multidão rugia como fogo, e a poeira era quente e acre. E, perto da estrada, uma vivenda ardia e enviava para a estrada massas revoltas de fumo negro, o que aumentava a confusão.

Passaram por eles dois homens. Depois, uma mulher suja, que transportava uma pesada trouxa e chorava. Um cão de caça, perdido, com a língua de fora, vagueava, hesitante, assustado, com um ar infeliz, e fugiu quando o meu irmão o ameaçou.

Tanto quanto podiam ver da estrada para os lados de Londres, entre as casas à direita, fluía uma corrente tumultuosa de pessoas sujas e apressadas, encurraladas entre as vivendas de ambos os lados; as cabeças negras, as formas humanas, tornavam-se mais distintas à medida que se aproximavam da curva, rapidamente ultrapassada, e perdiam de novo a sua individualidade na multidão que se afastava e era finalmente tragada por uma nuvem de poeira.

- Andem! Andem! - gritavam as vozes. - Abram caminho! Abram caminho!

As mãos de cada um empurravam as costas do outro. O meu irmão, de pé, na azinhaga, puxava a cabeça do cavalo. Irresistivelmente atraído, desceu lentamente, passo a passo, a azinhaga.

Edgware fora uma cena de confusão, Chalk Farm um tumulto desenfreado, mas isto era a população inteira em movimento. É difícil imaginar aquela multidão. Não tinha uma característica própria. As figuras descreviam a curva e afastavam-se, de costas voltadas para as pessoas que se encontravam na azinhaga. À beira da estrada, caminhavam aqueles que receavam as rodas das viaturas, tropeçando nas valas e chocando uns com os outros.

As carroças e as carruagens rodavam coladas umas às outras, deixando uma pequena margem para os veículos mais rápidos e mais impacientes que avançavam velozmente sempre que havia uma oportunidade de o fazerem, atirando as pessoas de encontro às cercas e aos portões das vivendas.

- Empurrem! - gritava-se. - Empurrem! Eles aproximam-se!

Passou numa carroça um homem cego, com o uniforme do Exército de Salvação, gesticulando, com os dedos torcidos, e apregoando: “Eternidade! Eternidade!” A sua voz era rouca e muito alta e, assim, o meu irmão ouvia-o ainda, muito tempo depois de o ter perdido de vista na poeira. Algumas das pessoas que se apinhavam nas carroças chicoteavam estupidamente os cavalos e discutiam com os outros condutores; algumas estavam sentadas, imóveis, fitando o vazio com uma expressão infeliz; outros mordiam as mãos, cheias de ansiedade, ou jaziam prostradas nos assentos dos veículos. Os freios dos cavalos estavam cobertos de espuma, e os animais tinham os olhos injectados de sangue.

Havia cupés, carruagens, carros de lojistas, galeras em quantidade inumerável; um carro de correio, uma carroça limpa-estradas onde se lia “Concelho de St. Pancras”, uma grande galera de madeira, apinhada de gente. Um carro baixo, de cervejeiro, rodava ruidosamente; as rodas da esquerda estavam salpicadas de sangue fresco.

Eternidade! Eternidade!-ecoava na estrada.

Abram caminho! - gritavam as vozes. - Abram caminho!

Caminhavam ao acaso mulheres tristes e pálidas, bem vestidas, com crianças que gritavam e tropeçavam; os vestidos elegantes estavam sujos de poeira, tinham os rostos cansados e enlambuzados de lágrimas. Com muitas delas vinham homens, uns procurando ajudar, outros ameaçadores e selvagens. Ao lado destes, viam-se alguns párias da rua, cansados, vestidos de farrapos negros e desbotados, de olhos dilatados, falando em altas vozes e prontos a dizer obscenidades. Abriam caminho robustos operários; passavam também, debatendo-se espasmodicamente, homens com um ar infeliz e em desalinho, vestidos como empregados ou lojistas; o meu irmão viu um soldado ferido, homens com uniforme de carregadores dos caminhos de ferro, e uma criatura miserável, em camisa de noite, com um casaco atirado sobre as costas.

Mas, embora este mar de gente tivesse uma composição muito variada, havia algumas coisas que tinha em comum. No rosto das pessoas havia medo e dor, e o terror perseguia-as. Um tumulto na estrada, uma luta por um lugar numa viatura, faziam apressar o passo a toda aquela gente. Mesmo um homem tão assustado e cansado que caminhava de joelhos dobrados galvanizou-se durante alguns momentos e desenvolveu uma actividade renovada. O calor e a poeira já tinham atacado a multidão. As peles das pessoas estavam secas, os lábios negros e fendidos. Todas tinham sede, fadiga, e os pés doridos. E, entre os vários gritos que se ouviam, as disputas, as censuras, gemidos de cansaço; as vozes da maioria eram roucas e fracas. Do meio de todos estes ruídos, sobressaía o refrão:

- Abram caminho! Abram caminho! Os marcianos aproximam-se!

Alguns pararam e afastaram-se da corrente. A azinhaga desembocava obliquamente na estrada principal por uma abertura estreita, e tinha a aparência enganadora de vir da direcção de Londres. No entanto, uma espécie de redemoinho de pessoas entrou na sua embocadura; as criaturas fracas eram atiradas pelo fluxo para os lados, e a maioria delas descansava durante alguns momentos antes de mergulhar novamente na torrente. Um pouco abaixo da azinhaga, jazia um homem com uma perna nua, envolvido em farrapos sangrentos; dois amigos curvaram-se sobre ele. Era um homem feliz por ter amigos.

Um velhote, com um bigode de corte militar cinzento e uma imunda sobrecasaca negra, veio, coxeando, sentar-se ao lado do veículo, tirou a bota - tinha a peúga salpicada de sangue -, extraiu um pequeno seixo e continuou o seu caminho, a coxear. Em seguida, uma rapariguinha de oito ou nove anos, sozinha, correu para a sebe ao pé do meu irmão, a chorar.

- Não posso andar mais! Não posso andar mais!

O meu irmão despertou do seu torpor de espanto e levantou-a, falando-lhe com doçura, para entregá-la a Mrs. Elphkistone. Mal o meu irmão lhe tocou calou-se, como que assustada.

Ellen!-gritou uma mulher na multidão, com lágrimas na voz. - Ellen! - E a criança afastou-se rapidamente do meu irmão, gritando: - Mãe!

Aproximam-se! - gritou um homem, a cavalo, galopando ao longo da azinhaga.

Aí, saiam do caminho! - berrou um cocheiro, de pé; e o meu irmão viu uma carruagem fechada que virava para a azinhaga.

As pessoas empurravam-se para evitar o cavalo. O meu irmão fez recuar o pónei e a carruagem para a sebe, e o carro passou por ele indo deter-se na curva do caminho. Era uma carruagem com uma lança para dois cavalos, mas só com um nos tirantes. O meu irmão viu vagamente, através da poeira, dois homens que tiravam do interior do veículo uma coisa numa padiola branca e a colocavam docemente sobre o relvado, por baixo da sebe de arbustos.

Um dos homens aproximou-se, a correr, do meu irmão.

Onde posso encontrar água?-perguntou.-Ele está a morrer de fome e cheio de sede. É Lord Garrick.

Lord Garrick!-exclamou o meu irmão. - O presidente do Tribunal?

A água? - perguntou o homem.

Deve haver torneiras em algumas das casas - disse o meu irmão. - Nós não temos água. Não me atrevo a abandonar a minha gente.

O homem furou por entre a multidão, em direcção ao portão da casa da esquina.

- Continuem! - gritavam as pessoas, empurrando-o. - Eles aproximam-se! Continuem!

Nesse momento, a atenção do meu irmão foi despertada por um homem barbudo, de rosto de águia, que transportava uma pequena mala de mão; precisamente no momento em que o meu irmão o observava, a mala rebentou e vomitou uma massa de soberanos que pareceu dividir-se em moedas quando embateu no solo. As moedas rolaram de cá para lá, na confusão de pés de homens e de cavalos. O homem parou e fitou com um olhar estúpido o montão, e o varal de um cupé bateu-lhe no ombro e fê-lo cambalear. Soltou um grito estridente e recuou, e a roda de uma carroça passou-lhe rente ao corpo.

- Abram caminho! - gritavam os homens, em seu redor. - Abram caminho!

Mal o cupé passou, arremessou-se sobre o montão de moedas de mãos abertas, e começou a meter mãos-cheias no bolso. No momento seguinte, semi-erguido, foi atirado para debaixo dos cascos de um cavalo.

- Parem! -gritou o meu irmão; empurrou uma mulher que lhe obstruía a passagem e tentou segurar os freios do cavalo.

Antes que pudesse agarrá-lo, ouviu um grito debaixo das rodas, e viu, através da poeira, o aro passando sobre as costas do desgraçado. O condutor da carroça açoutou o meu irmão com o chicote e este correu para trás do veículo. O tumulto de gritos confundia-o. O homem estorcia-se na poeira entre as moedas espalhadas, incapaz de se erguer, pois a roda quebrara-lhe as costas e as pernas jaziam, flácidas e mortas. O meu irmão pôs-se de pé e gritou para o condutor mais próximo; um homem, montado num cavalo preto, veio em seu auxílio.

Vamos tirá-lo da estrada - disse ele; e, agarrando o colarinho do homem com a mão livre, o meu irmão arrastou-o para a beira da estrada. Mas ele continuava agarrado às moedas, e fitava ferozmente o meu irmão, batendo-lhe no braço com um punhado de ouro.

Continuem! Continuem!-gritavam vozes iradas, atrás. - Abram caminho! Abram caminho!

Ouviu-se um estrondo quando a lança de uma carruagem se esmagou contra a carroça que o homem montado a cavalo deixara parada. O meu irmão olhou para cima, e o homem ferido torceu o pescoço e mordeu o pulso que lhe segurava o colarinho. Houve um choque, o cavalo preto desviou-se, cambaleante, para a beira da estrada, e o cavalo da carroça desviou-se para o lado. Por um triz, o pé do meu irmão não foi pisado por um casco. Largou o homem caído e saltou para trás. Viu a raiva dar lugar ao terror no rosto do desgraçado, no chão, que em breve foi ocultado. O meu irmão sentiu-se arrastado, empurrado para lá da entrada da azinhaga, e teve de lutar com violência para voltar para trás.

Viu Mrs. Elphinstone a cobrir os olhos, e uma criancinha, com a falta que todas as crianças têm de imaginação compassiva, fitava com os olhos dilatados, na poeira, algo que jazia negro e imóvel, triturado e esmagado pelas rodas dos veículos.

- Vamos voltar para trás! - gritou, e começou a fazer virar o pónei. - Não podemos atravessar este...inferno.

Recuaram cerca de cem metros pelo caminho de onde tinham vindo, até perderem de vista a multidão que se debatia. Quando descreveram a curva da azinhaga, o meu irmão viu o rosto do homem moribundo, na vala, sob o arbusto, mortalmente branco e chupado, reluzindo de suor. As duas mulheres não pronunciaram uma palavra; estavam encolhidas nos assentos, e estremeciam.

Um pouco mais adiante, o meu irmão parou de novo. Mrs. Elphinstone estava branca e pálida, e a sua cunhada chorava; sentia-se tão infeliz que nem chamava “George”. O meu irmão estava horrorizado e perplexo. Quando recuaram, ele compreendeu como era urgente e inevitável atingir a encruzilhada. Voltou-se para Mrs. Elphinstone, subitamente resoluto.

- Temos de seguir por aquele caminho - disse ele, e fez o pónei virar de novo.

Pela segunda vez naquele dia, a jovem provou a sua qualidade. Para forçar o caminho na torrente humana, o meu irmão mergulhou no trânsito e reteve o cavalo de um cupé, enquanto ela dirigia o pónei, montada no pescoço do animal. Uma galera fechada rodou e arrancou uma lasca comprida à carruagem. No momento seguinte, foram alcançados e empurrados pela torrente. O meu irmão, com o rosto e as mãos marcados pelas chicotadas desferidas pelo homem do cupé, trepou para a carruagem e tirou as rédeas à rapariga.

- Aponte o revólver para o homem que vem atrás, se nos empurrar demasiado - gritou ele. -
Não! Aponte para o cavalo!

Em seguida começou a procurar uma oportunidade de virar para a direita, para a estrada. Mas, no meio da torrente, pareceu perder vontade própria, tornar-se uma parte daquela turbamulta coberta de poeira. A avalancha empurrou-os ao longo de Chipping Barnet; encontravam-se, aproximadamente, a um quilómetro de distância do centro da cidade, antes que tivessem conseguido atingir o lado oposto do caminho. Havia um ruído e uma confusão indescritíveis; mas, dentro da cidade e para além dela, a estrada bifurca repetidamente, e isto aliviou de certo modo a pressão.

Rodaram para leste através de Hadley e ali, de ambos os lados da estrada e noutro local mais adiante, depararam com uma grande multidão de pessoas que bebia na corrente; algumas delas lutavam para conseguirem chegar à água. E, mais adiante, de uma colina perto de East Barnet, viram dois comboios que rodavam lentamente, um após o outro, sem qualquer sinal ou ordem - comboios apinhados de gente onde mesmo entre os carvões, atrás das locomotivas, se viam homens -, para norte, ao longo da Great Railway. O meu irmão supõe que devem ter sido carregados fora de Londres, pois, nessa altura, o terror furioso das pessoas tornara impossível a utilização dos términos centrais.

Descansaram nas imediações deste local durante o resto da tarde, porque a violência do dia deixara os três extremamente esgotados. Começavam a sofrer as primeiras ameaças de fome; a noite estava fria, e nenhum deles se atreveu a dormir. E, de noite, muitas pessoas passaram pela estrada, perto do local onde descansavam, fugindo dos perigos desconhecidos que as perseguiam, e encaminhando-se na direcção de onde o meu irmão viera.


XVII
O THUNDER CHILD

Se o único objecto dos marcianos fosse a destruição, poderiam ter aniquilado, na segunda-feira, toda a população de Londres, enquanto esta progredia vagarosamente ao longo dos condados nacionais. A mesma turbamulta frenética fluía não apenas ao longo da estrada de Barnet, mas também ao longo da de Edgware e Waltham Abbey, das estradas de leste para iSouthend e Shoeburyness e para sul do Tamisa, para Deal e Broadstairs. Se, naquela manhã de Junho, alguém tivesse subido num balão, no azul resplandecente, por sobre Londres, todas as estradas para norte e para leste que saíam do labirinto emaranhado das ruas ter-lhe-iam parecido pontilhadas de negro pela torrente dos fugitivos; cada ponto representava um ser humano angustiado pelo terror e deprimido pela fadiga. No último capítulo, demorei-me na transcrição do relato feito pelo meu irmão acerca da sua fuga pela estrada de Chipping Barnet, a fim de que os leitores pudessem compreender o que pareceria, a um dos fugitivos, aquele formigueiro de pontos negros. Jamais, na história do mundo, se movera e sofrera em conjunto uma tal massa de seres humanos. Os exércitos legendários dos Godos e dos Hunos, os maiores exércitos asiáticos, seriam apenas uma gota naquela corrente. E não se tratava de uma marcha disciplinada; era uma debandada gigantesca e terrível - sem ordem e sem destino; seis milhões de pessoas desarmadas e sem provisões, caminhando precipitadamente. Era o princípio da derrota da civilização, do massacre da humanidade.

Precisamente por baixo, o aeronauta veria a imensa e vazia rede das ruas, as casas, igrejas, largos, pracetas, jardins - tudo abandonado -, estendendo-se como um vasto mapa; a sul, teria visto um borrão. Por sobre Ealing, Richmond, Wimbledon, era como se uma caneta monstruosa tivesse entornado (tinta sobre o mapa. Constante e incessantemente, cada um dos salpicos negros avolumava-se e estendia-se, projectando ramificações para um e outro lado, ora amontoando-se perante uma elevação do terreno, ora fluindo rapidamente de uma crista para um vale, precisamente como uma gota de tinta se derramaria sobre mata-borrão.

E, mais além, por sobre as colinas azuis que se erguem a sul do rio, os marcianos reluzentes andavam de um lado para o outro; espalhavam, calma e metodicamente, a sua nuvem venenosa sobre um ou outro tracto da região, desfaziam-na com os jactos de vapor quando ela já tinha servido os seus propósitos, e tomavam posse da região conquistada. Não pareciam pretender o extermínio, mas sim a completa desmoralização e destruição de qualquer oposição. Faziam explodir todos os depósitos de pólvora que encontravam, cortavam todas as linhas do telégrafo, e destruíam, num ou (noutro sítio, os carris da via férrea. Estavam a mutilar a humanidade. Pareciam não ter pressa de estender o campo das suas operações, e não penetraram nesse dia no centro de Londres. É possível que durante a manhã de segunda-feira ainda se encontrasse em Londres, em casa, um número considerável de pessoas. É certo que muitas morreram em casa, sufocadas pelo Fumo Negro.

Até cerca do meio-dia os cais do Tamisa foram teatro de uma cena espantosa. Encontravam-se ali barcos a vapor e embarcações de todas as espécies, cujos donos eram tentados pelas enormes somas de dinheiro oferecidas pelos fugitivos; diz-se que muitos daqueles que nadaram em direcção a essas embarcações foram repelidos com croques e afogaram-se.

Perto da uma hora da tarde o remanescente adelgaçado de uma nuvem de fumo negro apareceu entre os arcos da ponte de Blaekfriars. Nesse momento, os cais tornaram-se numa cena de loucura, luta e colisão e durante algum tempo a multidão de barcos e barcaças comprimiu-se junto ao arco norte da Ponte da Torre de Londres, e os marinheiros e os fragateiros tiveram de lutar ferozmente contra as pessoas que caíam, aos montes, sobre eles, da beira-rio. As pessoas que se encontravam na ponte começavam a descer os pilares.

Quando, mais tarde, apareceu um marciano do lado da Torre do Relógio e desceu o rio, nada senão destroços flutuava sobre Limehouse.

Devo referir-me agora à queda do quinto cilindro. A sexta estrela caiu em Wimbledon. O meu irmão, que se encontrava na companhia das mulheres, dentro da carruagem, num prado, viu o relâmpago verde muito além das colinas. Na terça-feira, o pequeno grupo, ainda na intenção de atravessar o mar, encaminhou-se através do formigueiro em direcção a Col-chester. Confirmavam-se as notícias de que os marcianos estavam já de posse de toda a cidade de Londres. Tinham sido vistos em Highgate e noutros locais. Mas o meu irmão só os viu no dia seguinte.

Nesse dia, as multidões dispersas começaram a compreender a necessidade urgente de provisões. Quando a fome se tornou mais premente, os direitos da propriedade deixaram de ser respeitados. Os lavradores não estavam presentes para defenderem de armas na mão os seus currais, celeiros e frutos maduros. Um certo número de pessoas, como o meu irmão, visava o leste, e alguns indivíduos desesperados regressavam a Londres para arranjarem comida; tratava-se, principalmente, de pessoas oriundas dos arrabaldes setentrionais, que apenas conheciam o Fumo Negro através de boatos. Ele ouviu dizer que cerca de metade dos membros do Governo se reunira em Birmingham, e que estavam a ser preparadas enormes quantidades de poderosos explosivos para serem utilizados em minas automáticas ao longo dos condados do centro de Inglaterra.

Também ouviu dizer que a Companhia dos Caminhos de Ferro do Centro preenchera as deserções provocadas pelo pânico do primeiro dia, restabelecera o trânsito e estavam a partir para norte, de St. Al-bans, comboios destinados a aliviar o congestionamento dos condados nacionais. Em Chipping Ongar, fora afixado um placar, que informava que podiam ser utilizados largos depósitos de farinha nas cidades do Norte; informava igualmente que, dentro de vinte e quatro horas, começaria a ser distribuído pão, nas imediações, às pessoas famintas. Mas esta notícia não o fez abandonar o plano de fuga que arquitectara, e os três caminharam durante todo o dia para leste; não ouviram mais nada acerca da distribuição de pão do que a sua promessa, nem, como é natural, alguém tornou a ouvir falar no caso. A sétima estrela caiu naquela noite, sobre Primrose Hill. Caiu enquanto Mrs. Elphinstone estava de sentinela, pois cumpria este dever, alternadamente, com o meu irmão. Ela viu-a.

Na quarta-feira, os três fugitivos - tinham passado aquela noite numa seara verde de trigo - alcançaram Chelmsford, onde um grupo de habitantes que se intitulava a si próprio o Comité de Salvação Pública se apoderou do pónei como mantimento, sem dar nada em troca senão a promessa de uma parte do animal, que seria entregue no dia seguinte. Nesta localidade, corriam boatos de que os marcianos se encontravam em Epping, e notícias acerca da destruição das fábricas de pólvora de Waltham Abbey, numa vã tentativa de fazer explodir um dos invasores.
As pessoas ocupavam as torres das igrejas, de onde observavam os marcianos. Felizmente para ele, o meu irmão preferiu continuar imediatamente em direcção à costa do que esperar por comida, embora os três estivessem verdadeiramente famintos.

Cerca do meio-dia, passaram por Tillingham; esta localidade parecia inteiramente calma e abandonada, o que era bastante estranho; apenas se viam alguns saqueadores furtivos, em busca de comida. Perto de Tillingham, deparou-se-lhes bruscamente o mar e a mais espantosa multidão de embarcações que é possível imaginar-se.

Desde que se tornou impossível aos marinheiros subirem o Tamisa, contornaram a costa de Essex, para Harwich, Walton e Clacton, e, mais tarde, para Foulness e Shoebury, a fim de evacuarem as pessoas. Estavam ancorados numa vasta curva em forma de foice que desaparecia na neblina, perto de Naze. Próximo da praia, encontrava-se um formigueiro de barcos de pesca - ingleses, escoceses, franceses, holandeses e suecos; lanchas a vapor vindas do Tamisa, iates, barcos a motor eléctrico; e, além destes, havia navios de grande calado, uma multidão de navios carvoeiros, navios mercantes, navios de transporte de gado, barcos de passageiros, petroleiros, vapores de carga, e até velhos transportes brancos, paquetes brancos e cinzentos de Southampton e Hamburgo; e, ao longo da costa azul através da Blackwater, o meu irmão distinguiu, vagamente, um denso formigueiro de barcos cujos proprietários discutiam o preço com as pessoas, na praia, um formigueiro que também se estendia pela Blackwater, quase até Maldon.

A cerca de três quilómetros da costa, via-se um couraçado, muito mergulhado na água; quase parecia ao meu irmão, àquela distância, um navio saturado de água. Era o Thunder Child, navio com esporão. Era o único barco de guerra à vista, mas ao longe, à direita, sobre a superfície polida do mar - pois nesse dia havia calmaria - erguia-se uma serpente de fumo que assinalava a posição dos outros couraçados da Channel Fleet, que, no decurso da conquista marciana, flutuavam numa extensa linha, com as máquinas a trabalhar e prontos para a acção, no estuário do Tamisa; apesar da sua vigilância não tinham sido capazes de evitar o avanço dos marcianos.

Quando Mrs. Elphinstone viu o mar, a despeito das afirmações da sua cunhada, deu largas ao pânico. Nunca saíra de Inglaterra, preferia morrer a viver sem amigos num país estranho, e por aí adiante. A pobre mulher parecia imaginar que havia poucas diferenças entre a França e os marcianos. Mostrara-se cada vez mais histérica, apavorada e deprimida durante os dois dias de jornada. A sua ideia fixa era regressar a Stanmore. As coisas tinham sempre corrido bem e com segurança em Stanmore. Encontrariam George em Stanmore.

Foi com a maior dificuldade que a fizeram descer à praia, onde meu irmão conseguiu atrair a atenção de alguns homens que se encontravam num vapor de rodas provindo do Tamisa. Mandaram um barco a terra e ajustaram o preço de trinta e seis libras pelo transporte dos três. Os homens informaram que o vapor seguia para Ostende.

Perto das duas horas, depois de pagar o preço das passagens, o meu irmão, encontrou-se a salvo a bordo do vapor. Havia lá comida, embora a preços exorbitantes, e os três tomaram uma refeição num dos bancos da proa.

Já se encontravam a bordo uns quarenta passageiros, alguns dos quais tinham gasto o resto do dinheiro para conseguir uma passagem; no entanto, o capitão não deu ordem de partir senão às cinco horas da tarde, recolhendo passageiros até que o convés ficou perigosamente apinhado. Provavelmente, teria ficado mais tempo se não se tivesse começado a ouvir um canhoneio a sul. Como que em resposta, o couraçado disparou uma pequena peça e içou uma fiada de bandeiras. Saiu um jacto de fumo das suas chaminés.

Alguns dos passageiros eram da opinião de que este tiroteio provinha de Shoeburyness, até que se verificou que crescia em volume. Ao mesmo tempo, a sudeste, ao longe, os mastros e as obras mortas dos três couraçados ergueram-se do mar uns após outros, debaixo de nuvens de fumo negro. Mas a atenção do meu irmão tornou rapidamente ao canhoneio longínquo a sul. Julgou ver uma coluna de fumo que se erguia no meio da distante neblina cinzenta.

O pequeno vapor já vogava para leste da grande meia-lua de embarcações, e a costa baixa de Essex cobria-se com um tom azul e enevoava-se, quando apareceu um marciano, pequeno e indistinto à distância, avançando ao longo da costa lodosa, vindo da direcção de Foulness. Ao vê-lo, o capitão, que se encontrava na ponte, amaldiçoou a demora, com uma voz onde transparecia o medo e a raiva, e as pás pareceram contagiadas pelo seu terror. Todas as pessoas a bordo se imobilizaram nas amuradas ou nos assentos, fitando aquela forma longínqua, maior do que as árvores ou as torres das igrejas, que caminhava vagarosamente, numa imitação grotesca dos passos de um homem.

Foi o primeiro marciano que o meu irmão viu e, mais atónito do que aterrorizado, observou este titã que avançava deliberadamente para as embarcações, mergulhando cada vez mais na água à medida que a costa descia. Em seguida, além do Crouch, veio outro, passando por cima de algumas árvores enfezadas, e mais outro, ainda longe, patinhou através de uma brilhante planura de lama que parecia suspensa a meia altura entre o mar e o céu. Avançavam ambos rapidamente em direcção ao mar, como se quisessem interceptar a fuga das numerosas embarcações que estavam a ser ocupadas entre Foulness e Naze. A despeito dos esforços vibrantes das máquinas do pequeno vapor de rodas, e da espuma que as rodas deixavam para trás, o barco afastava-se com uma lentidão medonha daquele avanço ominoso.

Ao lançar um olhar para noroeste, o meu irmão viu que a larga meia-lua de embarcações já se debatia à aproximação do terror; um navio passava por detrás do outro, outro virava o costado, os barcos a vapor silvavam e lançavam grandes rolos de fumo, os veleiros largavam o pano, as lanchas precipitavam-se para cá e para lá. Este espectáculo, e o perigo que se aproximava da esquerda, fascinavam-no de tal modo que não via mais nada. E, então, um rápido movimento do barco (virara bruscamente para evitar ser metido a pique) arrancou-o do assento onde estivera sentado. Ouviu gritos em seu redor, um tropel de passos, e uma exclamação que pareceu ser debilmente secundada. O barco guinou e fê-lo rolar.

Pôs-se de pé e olhou para estibordo: a menos de cem metros de distância do vapor, inclinado e balou-çante, viu um enorme vulto de ferro, como a lâmina de um arado, que dilacerava a água, agitando-a de um lado para o outro em ondas imensas de espuma que lambiam o vapor, deixavam as pás fora da água e engoliam o barco até quase à sua amurada.

Um banho de espuma cegou o meu irmão durante alguns momentos. Quando pôde abrir os olhos, viu que o monstro passara e investia para a margem. Sobressaíam da sua estrutura enormes engrenagens de ferro, e as chaminés (projectavam uma rajada de fogo e de fumo. Era o navio torpedeiro, o Thunder Child, que vogava em socorro das embarcações ameaçadas.

Oscilando no oonvés, agarrado à amurada para não cair, o meu irmão fitou os marcianos depois da passagem do monstro. Os três estavam juntos novamente, tão dentro do mar que os seus suportes trípodes mergulhavam quase inteiramente. Assim submersos, e vistos de longe, pareciam muito menos formidáveis do que a imensa forma de ferro na esteira da qual o vapor balouçava. Parecia que fitavam este novo adversário com espanto. É possível que considerassem este gigante como um deles. O Thunder Child não disparou nenhum tiro; limitou-se a vogar a toda a velocidade ao encontro deles. Foi provavelmente o facto de não ter disparado que lhe permitiu aproximar-se tanto do inimigo. Eles não sabiam o que fazer dele. Uma bomba, e teriam disparado imediatamente o Raio da Morte.

Navegava a tal velocidade que, num minuto, pareceu encontrar-se a meio caminho entre o barco a vapor e os marcianos - uma forma negra cujo tamanho diminuía contra a extensão horizontal da costa de Essex.

De súbito, o marciano mais próximo desceu o seu tubo e descarregou contra o couraçado uma granada de gás negro. Atingiu o navio a bombordo e explodiu, num jacto de tinta que desceu para o mar, uma torrente cada vez maior de fumo negro, da qual o couraçado se desembaraçou. Para os espectadores que se achavam no vapor, a pouca altura e com o sol a bater-lhes nos olhos, parecia que o navio já se encontrava entre os marcianos.

Viram as suas figuras a separar-se e a erguer-se da água à medida que recuavam para a margem, e um deles ergueu o gerador do Raio da Morte. Apontou-o obliquamente para baixo, e uma nuvem de vapor ergueu-se da água ao seu contacto. Deve ter deslizado pelo costado de ferro do navio, como uma vara de ferro incandescente sobre papel.

Através do vapor que subia, ergueu-se uma chama bruxuleante e, em seguida, o marciano cambaleou. No momento seguinte foi derrubado, e levantou-se no ar um grande volume de água e de vapor. As peças do Thunder Child disparavam através do vapor, uma após outra, e um dos projécteis esparrinhou a água perto do vapor, ricocheteou em direcção aos outros navios, a norte, e fez uma sumaca em estilhaços.

Mas ninguém prestou grande atenção a este acontecimento. Ao ver a queda do marciano, o capitão, na ponte, gritou inarticuladamente, e todos os passageiros que se apinhavam na popa do vapor gritaram igualmente. E, depois, tornaram a gritar, pois, emergindo do redemoinho branco, ergueu-se algo comprido e negro, do meio do qual jorravam chamas e de cujos ventiladores esguichava fogo.

O navio ainda vivia; os comandos, ao que parecia, estavam intactos, e as máquinas trabalhavam. Investiu contra o segundo marciano, e encontrava-se a uma distância de cem metros quando o Raio da Morte entrou em acção. Então, com um estrondo violento e um relâmpago ofuscante, as cobertas e as chaminés saltaram. O marciano cambaleou com a violência da explosão e, no momento seguinte, os destroços em chamas, vogando ainda a direito com o ímpeto da velocidade, embateram no marciano e amarrotaram-no como uma espécie de cartolina. O meu irmão gritou involuntariamente. Um tumulto efervescente de vapor ocultou tudo novamente.

- Dois! - gritou o capitão.

Todas as pessoas gritaram. O vapor, da proa à popa, ressoava de aclamações frenéticas que foram secundadas primeiro por uma, depois por todas naquele formigueiro de embarcações que vogavam para o alto mar.

O vapor pairou durante muitos minutos sobre a água, ocultando o terceiro marciano e toda a costa. E, entretanto, o navio de rodas vogava rapidamente, afastando-se do teatro da batalha; e quando, por fim, a confusão se desvaneceu, interpôs-se a nuvem de vapor negro e não se pôde distinguir nada do Thunder Child, nem do terceiro marciano. Mas os couraçados achavam-se agora muito perto e vogavam a caminho da praia.

A pequena embarcação continuou o seu caminho para o mar, e os couraçados afastavam-se em direcção à costa, ainda oculta por uma nuvem marmórea de vapor, em parte vapor de água, em parte gás negro, redemoinhando e combinando-se da maneira mais estranha. A frota de refugiados dispersava-se para nordeste; várias sumacas navegavam entre os couraçados e os barcos a vapor. Passados alguns momentos, e antes de alcançarem o grupo de nuvens, os navios de guerra voltaram para norte e depois, bruscamente, acercaram-se e ultrapassaram a espessa cerração a sul. A costa desvanecia-se e perdeu-se finalmente de vista no meio das nuvens que se reuniam em redor do Sol no ocaso.

Então, subitamente, na dourada neblina do pôr-do-sol, ouviu-se a vibração das peças e viu-se uma forma de sombras negras em movimento. Todas as pessoas se precipitaram para a amurada do vapor e perscrutaram a fornalha ofuscante a ocidente, mas não se distinguia nada com clareza. Uma massa de fumo elevou-se obliquamente e ocultou o Sol. O barco a vapor vibrava numa atmosfera de intensa expectativa.

O Sol afundou-se entre nuvens cinzentas, o céu enrubesceu, escureceu e as estrelas da noite começaram a tremeluzir. O crepúsculo já ia muito adiantado quando o capitão soltou um grito e apontou para longe. O meu irmão forçou a vista. Algo se erguia no céu, destacando-se do cinzento - erguia-se oblíqua e muito rapidamente na claridade por sobre as nuvens, a ocidente; alguma coisa lisa e larga, muito larga, que descreveu uma grande curva, perdeu tamanho, afundou-se lentamente, e desapareceu de novo no mistério cinzento da noite. E quando desapareceu, derramou a escuridão sobre a terra.
Na próxima publicação, o livro dois deste clássico da Sci-fi!

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