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4.8.08

O HOMÚNCULO

O mestre dos contos grotescos Paulo Soriano retorna às páginas da Câmara com mais uma obra fenomenal onde alia a mais pura maestria de sua escrita, toda dominada pela mais perfeita forma e erudição, à uma narrativa densa, macabra e emotiva de forma a criar um novo clássico da literatura fantástica nacional. Boa leitura!







O HOMÚNCULO




Um conto de Paulo Soriano




Numa madrugada fria, em que chovia copiosamente, fui acordado por pancadas desesperadas na porta de minha cabana, para onde me recolhia sempre que as ruelas mal-cheirosas de Villach se tornavam insuportáveis.
Irritado, acendi o lume e, ao olhar através do postigo, surpreendi-me ao ver, num relance, a pálida silhueta de Hieronymus von Hohenheim.
Quando abri a porta para dar passagem ao velho amigo, o vento, que soprava da floresta, apagou a candeia. Von Hohenheim passou por mim sem dizer palavra e, ao fazê-lo, uma leve onda de calafrio me varreu, envolvendo-me com a vibração de um sino. Podia sentir que Von Hohenheim estava assustado. Embora não pudesse escutá-las, as batidas de seu coração de alguma forma vinham até mim e, sem qualquer dúvida, eu sabia que seu corpo todo estremecia.
Assim que acendi a lareira, e lancei o olhar para o meu amigo, concluí que não me enganara em minhas sensações. Ele permanecia em pé, impassível. Mirava a lareira como se paralisado por uma força irresistivelmente dominadora. Servi-lhe a aguardente de seu agrado, mas ele não fez caso dela. Insisti:
– Bebe. Estás completamente molhado. O fogo da aguardente te fará bem.
Von Hohenheim tremia. Qualquer uma suporia que tritava de frio. Mas eu, que o conhecia como a palma de minha mão, sabia perfeitamente que era o medo que o fazia vibrar.
Servi-me da aguardente e o convidei a sentar-se. Desta feita, ele, resignado, obedeceu.
– O que eu irei contar-te parece loucura.
– O que aconteceu?
Meu amigo rangeu os dentes, numa reação nervosa. Examinando-o com mais atenção, vi que trazia o corpo todo coberto de lama. Deduzi que, conduzido por um desespero cuja origem eu ignorava, viera correndo. Caíra diversas vezes na lama, porque as suas calças tisnavam-se de lamas de diferentes colorações. Mas não arfava. Supus que Von Hohenheim quedara-se inerte em meus umbrais por um longo tempo antes de decidir-se por me pedir ajuda.
– Sabes que Phillipus, meu irmão, iniciou-me nas artes da Alquimia – disse-me ele, saindo aos poucos da letargia. – Há alguns anos, recebi de um mensageiro uma carta sua, na qual me confiava um segredo alquímico que ele, a bem de sua grande reputação, jamais ousaria partilhar com outrem senão comigo. E muito menos pô-lo em prática. Era uma fórmula para a produção de um homúnculo.
É evidente que Hieronymus von Hohenheim estava, de fato, louco. E, à medida que desfiava a sua história desvairada, mais eu me convencia de que Von Hohenheim não apenas estava doido: estava completamente alucinado.
– Faz três anos que eu criei o homúnculo. A produção de um homúnculo é um processo longo e delicado, no qual um simples erro, uma mera distração, pode conduzir ao insucesso da empresa. Tanto a criatura pode não germinar, como pode evoluir para uma aberração. O primeiro passo para a produção de um homúnculo é a inserção de esperma humano em um alambique hermeticamente fechado, que é enterrado em esterco de cavalo. Durante quarenta semanas, o ser gestado deve ser mantido a uma temperatura igual à do útero de uma égua. Neste tempo, o homúnculo se desenvolve gradualmente, alimentado por sangue humano. Ao final dos dez meses, infunde-se água destilada no alambique, que é levemente aquecido. O vapor o faz despertar e respirar como uma criança-recém nascida, da qual é uma miniatura. Disse-me meu irmão, em sua carta, que o homúnculo pode ser criado e educado como qualquer criança, até ficar mais velho e se tornar capaz de cuidar-se sozinho. Ele exige de nós a mesma dedicação que entornamos nos nossos filhos. É a pura verdade.
“Eu me afeiçoei à criatura, embora soubesse que ela, por não haver sido gerada no ventre de uma mulher, não possuía alma. Ela cresceu rapidamente, e, ao término de outro ano, já estava adulta. Confesso-lhe que eu a tinha como a um filho. Chamei-a de Johannes em tua homenagem!
“Foi por esse tempo que eu me casei com Olga. Johannes, malgrado dócil e obediente como um cãozinho, era muito impulsivo: a muito custo consegui conservá-lo longe da vista de Olga, embora ele soubesse que era seu dever manter-se a uma distância considerável da mulher. Tranquei-o, enfim, no meu laboratório, onde ninguém, nem mesmo Olga, sem minha expressa autorização, podia entrar. Quando se viu reclusa e abandonada, uma tristeza sem fim se apossou de minha criação. Como qualquer recém-casado, eu dedicava todo o meu tempo a Olga, e quase não mais me aventurava noutros experimentos alquímicos. Mesmo esquecido, mesmo abandonado, Johannes olhava-me como a um pai amoroso, com carinho e sem qualquer nesga de ressentimento. Mas, de entremeio à ternura de seu olhar, vinha uma expressão que eu soube interpretar perfeitamente: a amargura que flutua na densidade insondável do ciúme.
“Conquanto desprovido de alma, Johannes tinha as emoções e a inteligência de um ser humano. Com o coração ferido, ele bem poderia pôr seu a serviço de emoções tão primitivas quanto traiçoeiras.
“Todos sabem que ciúme e vingança andam juntos. Mas eu não podia crer, ou mesmo admitir, que Johannes pudesse fazer mal a Olga. Todavia, olhando friamente a questão, eu sabia que, mantendo o homúnculo em minha casa, expunha a minha mulher a certos riscos.
“Antes mesmo de casar-me com Olga, eu a admoestara a nunca entrar em minha sala secreta. Ela manteve-se obediente, para a minha satisfação. Mas, depois de encarcerar furtivamente o homúnculo no laboratório, corri a ela e renovei a advertência. Agi muito mal. Despertei nela, e com um vigor redobrado, a adormecida curiosidade feminina.
“Certa noite, ao voltar a casa, após medicar no campo, deparei-me com uma cena estarrecedora: Olga gritava, com os braços estendidos contra a parede; acuado como um cão indefeso, Johannes tremia a cada grito que esvaía dos pulmões ensandecidos de minha mulher.
“Decerto que a simples presença de um homúnculo é capaz de assustar o mais corajoso dos homens... Mas Johannes.. Johannes... Sim, amigo, meu experimento não foi propriamente um êxito. Errei em alguma coisa. Johannes era disforme. Era uma aberração.
“Olga ordenou:
'– Livra-te dessa abominação! Imediatamente!'
“Resoluto, prometi a Olga que assim o faria.
“Tomei Johannes nos braços e saí. Com a sua vozinha, que mais parecia um miado, ele me implorava que não o matasse. Em todo o trajeto ao riacho, ele gritava:
'-– Não me mates. Não mates o teu pequenino. Não mates quem mais te ama.'
“Enquanto eu afundava a criaturinha indefesa no ribeiro, mergulhava, também, a minha alma no remorso. Afinal, ainda que monstruosa e desprovida de alma, eu a amava profundamente.
“Voltei para casa com o espírito destroçado. E tomei a resolução de não mais tornar a pensar no assunto.
“Mas, hoje, algo de horrendo aconteceu. Levantei-me bem cedo e, não tendo visitas a realizar, resolvi arejar os pensamentos à beira do ribeiro. De súbito, pareceu-me que, por instantes, algo se agitou e escapuliu das sebes naturais que orlam o riacho. Era ele, era o homúnculo. É lógico que estremeci. Vira o homúnculo por apenas um instante. Mas não podia haver dúvidas que era mesmo ele. E os seus ocelos rubros ardiam de ódio. Flamejavam por vingança.
“Corri para casa, mas era tarde demais. Olga ainda dormia quando ele a atacou. E destroçou o seu pescoço. Agora eu sinto... eu sei.... que ele está à minha procura.”
Apiedei-me de meu amigo ensandecido a ponto de reprimir não poucas lágrimas. Então lhe disse:
– Hieronymus, nada há o que fazer. Aquece-te um pouco na lareira e vai dormir.
Foi neste momento que eu vi o homúnculo a esgueirar-se pela portinhola, que eu descuradamente deixara aberta. Ele era ágil como os símios que os saltimbancos exibem em dias de feira. Correu para mim. Nos seus pequenos olhos escarlates havia tanto ódio que eu adernei nauseado. A criaturinha andrajosa estava quase nua e, certamente, não teria mais que quinze polegadas reais. Sua pele parecia a de um réptil escamoso e a sua carranca hedionda rivalizava com a das gárgulas mais horrendas da catedral de St. Pierre. Johannes voltou-se para Hieronymus, que o olhava com a face contorcida pelo horror. Agachado, o homúnculo ensaiou uma grotesca reverência, como se pedisse desculpas pelo que iria fazer. Por um momento, a coisa estava de fato constrita e respeitosa. A coisa penitenciava-se verdadeiramente. Eu vi a tristeza fulgurar em seus olhos de fogo. Depois, atirou-se impiedosamente ao pescoço do homem, e lá mergulhou os seus dentes castanhos e curvos, que antes pareciam garras de aves de rapina.
Em poucos instantes, Hieronymus estava morto. O medo e o pavor impediram-me de esboçar a mais tímida reação.
O homúnculo encarou-me consternado. Neste preciso momento eu assisti, mais ultrajado que espavorido, a um sacrilégio. Aquela cara deformada tinha um quê de semelhança com a do homem que o criara. Podia nela ver a inconfundível expressão de aflição que há pouco contemplara na face de Hieronymus von Hohenheim. Compreendi que o monstrengo fora gerado e amamentado pelo esperma e pelo sangue de Hieronymus. Sim, a coisa era seu filho.
O homúnculo empertigou-se, como quem toma uma grave resolução. E atirou-se ao fogo da lareira, onde crepitou até o amanhecer.
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NOTA DO BLOG: Esta é a nova versão revisada pelo autor.

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