Escritora carioca Déia Tuam, estréia como colaboradora da Câmara com um conto com ares clássicos, intrigante, e reflexivo. Boa leitura!
ÚLTIMA NOITE EM CRETA
Déia Tuam
Noite quente, sem luz. Suor. E o vento sobre as areias. Não havia nada melhor para se iniciar um encontro visceral noturno como as ondas lambendo os pés daquele velho marinheiro cansado.
Creta, a principal ilha grega. Noite do Ano 1.700. Antes da chegada daquele Galileu. Ele, olhando para o ancião distraído na areia, finalmente entendeu que gostava muito de água. Quanto a esse elemento, os psicanalistas de hoje discorreriam convictos sobre sua sincera intenção de retornar ao conforto do útero materno.
Ele achava prático lavar as mãos com rapidez.
Depois de desenhar letras de nomes falsos sobre a areia. Sangue.
E ele mesmo discorreria sobre seu maior gosto na vida, se ele pudesse falar, mas estava ele muito concentrado, vividamente voltado para sua voluptuosa obra naquela praia cretense.
A Música da luta contra os rochedos, como tambores de guerra, abafava qualquer gemido de seus convidados. E ele olhava atentamente pros olhos do ancião, aprendendo com sua dor tão visível. Ele estudava a dor humana. Mas era tão diferente em cada um.
Ele trabalhava em outro ofício além deste, colaborando com o domínio marítimo de Creta, com seus entrepostos comerciais em todo o mar Egeu, ele se aproveitava disso, sumindo de casa logo se tornou um marujo.
Em cada porto, um cadáver sem alguma víscera. Certamente algum animal, mas qual seria?Melhor se houvessem crianças. Para vê-lo em ação. Havia um motivo para que ele nunca tivesse tocado em uma criança. Ele gostava de saborear a idéia das possibilidades, o que elas fariam se chegassem a crescer, lhe seguiriam o bom gosto?E o melhor tempero era o fato de que, entre sidônios, pelasgos, fenícios e outros gregos naqueles portos, ninguém queria procurar, ninguém queria admitir, ninguém queria achá-lo. Ele já passou por muitos comentários nos portos e era diariamente tranqüilizado pela inércia das cidades.
Os sociólogos da atualidade falariam alguma coisa sobre impunidade, mas seus segundos de fama eram bem curtos para algum debate mais profundo.
Naquela noite, um homem velho, com a aparência o mais saudável possível.
Algumas noites atrás já lhe cobravam mentalmente a idéia de carne bem tenra, a velhice provocaria mesmo isso?
E, naquele exato momento, compenetrado em sua nova expedição, ele não viu que não era o único caçador do mundo. Enquanto ele escrevia a próxima letra falsa na areia, a sombra agiu muito rápido. Depois que a pesada pedra atingiu o crânio daquele caçador, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze vezes. Não era mais aquela criança de onze anos.
Após treinamento com um amante do exército grego, após muitos marujos e muitos navios, após muitas ondas e lágrimas, após muitas desgraças por um prato de comida, ela ficou ouvindo o silêncio daqueles dois corpos. Ninguém jamais lhe ensinou sobre pensar firmemente em outra coisa, mas ela pensava, durante todos os anos em que aqueles marinheiros miseráveis agiam sobre seu corpo em ruínas, ela se concentrava no fato de que aquele dia chegaria e tudo unicamente era suportado por aquele dia.
A criança de onze anos viu sua mãe cair sobre o chão de azulejo cerâmico azul. Não, ninguém queria se contaminar com aquela tragédia. E afinal ela se descobriu sem parentes. Decidiu que eles eram todos estranhos, não, menos do que estranhos, e um estranho valeria mais do que eles. Ela era filha de um soldado morto em batalha, ela não iria seguir com sua vida, casar, ter filhos, fatiar lentamente sua dignidade. Ela não iria concordar com o criminoso. A covardia para ela não era uma opção. E a caçada começou. Ela olhava agora para aqueles dois corpos. E não teve disposição para avaliar que ele só não percebeu sua chegada porque um assassino só pode ser alcançado por suas próprias qualidades.
Sem sentir, sem raciocinar, ela apenas seqüenciou as imagens de tudo o que havia visto até aquele momento. Cidades bem planejadas, com ruas, calçadas, sarjetas, lojas de comércio e casas luxuosas como o verniz frágil de uma existência coletiva. Mais marinheiros, muitos marinheiros, seus fedores, sua crueldade. Excelentes professores. Cnossos, Faistos, Mália e Tilisso. Nunca mais voltaria a ver essas cidades de Creta.
Ela não fazia mais parte de lugar algum.
Sabia pela Deusa-Mãe que todo crime teria seu confronto.
Eles voltariam a se ver. Seria bem sério. Que fosse.
Olhou para ele uma última vez e andou, passo após passo.
E o sol.
E ela.
Continuando a ouvir as ondas em procissão, como os dias.