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25.8.08

AMANTE DAS ESTRELAS

O escritor Pedro Pazzeli retorna à Câmara com um conto de ficção-científica surpreendende. Boa leitura!





AMANTE DAS ESTRELAS

Por Pedro Pazzeli



O apresentador de TV do canal 13 apresentou à entrevistada:

-Estamos aqui com dona Márcia do Rio de Janeiro, moradora no bairro do Meyer que disse à imprensa ter visto uma nave extraterrestre:

- Então, dona Márcia, a senhora declarou no jornal que viu um objeto voador não identificado, uma nave espacial. É verdade?

-Bem...Eu estava no meu apartamento, dormindo, quando acordei com uma luz azul invadindo o quarto. Cheguei até a janela e vi algo flutuando sobre o meu quintal.

-Que tamanho mais ou menos tinha o objeto e seu formato?

-Era pequeno, redondo, azulado,com mais ou menos três metros de diâmetro e muitas luzes menores e coloridas que giravam em volta dele. Desceu lentamente no quintal. Nem o cachorro latiu e nem meu marido acordou.

-A senhora sentiu medo?

-Por incrível que pareça, não. Uma força irresistível me fez ir até o quintal. Nem sei como cheguei lá. Parece que eu estava hipnotizada e de repente eu estava lá. Aí vi que era uma nave. Tinha uma porta que abriu e apareceu um homem que brilhava como uma lanterna. Disse que se chamava Vap.

-Vap? Não seria o Vapt-Vupt? - ironizou o apresentador, sem que a mulher achasse graça.

- Não, era mesmo o nome dele – ela insistiu.

-Sim, Vap. E ele falava português?

-Ele falava com a mente e eu ouvia também com a mente e respondia da mesma forma.

-Então era telepatia?

-Tele o que?

-Telepatia, transmissão de pensamento, dona Márcia.

-Há, sim. Então era isso mesmo.

-E aí? O que ele disse? Nossos telespectadores estão ansiosos para saber.

-Ele disse que voltaria para me buscar.

O apresentador do programa voltou-se paras as câmeras, e em close, sentenciou:

-Os extraterrestres estão entre nós. Esta é uma verdade que dona Márcia irá nos contar após os comerciais.

Após o retorno dos comerciais, dona Márcia continuou seu relato:

-Ele disse que era do planeta Rap e que queria muito bem aos humanos, era de paz, pegou sua nave e foi embora.

Dias depois da entrevista, Márcia, arrependera-se de ter contado o fato a uma vizinha que não soube guardar segredo e contou a um sobrinho que era repórter que trabalhava no Jornal do Brasil e ele, para não perder a notícia, foi até a casa da dona-de-casa para obter o furo de reportagem. Convenceu Márcia a contar-lhe tudo, prometendo que ficaria em segredo. No dia seguinte estava o fato na primeira página do diário, associado a uma Rede de TV que fez mais alarde ainda com a história.

A verdade é que naquela noite, o marido de Márcia, açougueiro de um matadouro, sujeito grosseiro, chegou em casa e como das outras vezes, bateu na esposa por descobrir que mais uma vez ela menstruara e exigindo um filho dela. Ele era estéril e sabia disto, mas a esposa não. Assim, ele a culpava, fazia cena. Era uma forma de mostrar que ele era um macho fértil e viril. Até quando duraria aquela mentira?

-Sua imprestável!-disse ele, jogando-a no sofá com uma bofetada. -Você precisa se tratar, sua estéril. Até você engravidar vou lhe dar uma surra todo mês, ouviu?! – ameaçou.

Depois aquele homenzarrão gordo comeu, bebeu, deitou e dormiu roncando como um porco, sem sequer tomar banho, suarento e com cheiro do sangue dos animais por ele desossados.

A mulher ficou chorando e pensando o que a levara aquela união? A carência? A pobreza a que foi lançada quando seus pais morreram em um acidente de carro, sem deixar para ela condições de estudo e sustento? Foi então que viu a luz no quintal. Neste momento tudo foi igual ao que contara na entrevista. Apenas por um detalhe que ela omitiria na mídia. O homem das estrelas, acariciou se corpo e na grama do quintal amou-a como ela nunca havia sido amada e depois partiu.

Um mês depois, Márcia observou que a menstruação não viera. Foi ao médico, fez exames e estava grávida.

Feliz da vida, estava na sala, costurando uma saia, quando o marido entrou e ela, feliz, entregou a ele os exames. O homem parou boquiaberto, abriu o envelope, leu e sabendo da impossibilidade daqueles resultados serem verdadeiros, disparou:

-Sua vagabunda! Com quem foi, heim?

-Com você, ora...

O soco fez o sangue escorrer da boca. A saia e a tesoura caíram no chão:

-Eu e mais quem? – indagou, dando agora um tapa.

-Mas, amor eu...

-Só falta você dizer que foi este homem do disco-voador que você inventou para ganhar uns trocados nas entrevistas na TV, não é? Fala a verdade? Foi o vizinho do 504, aquele que fica olhando para a sua bunda quando você passa?

-Mas, meu amor, o filho só pode ser seu...eu...

A mulher levou um chute e caiu no chão.

O metal da tesoura brilhou aos seus olhos e quando ela notou, já havia acontecido. Um corpo pesado e caído ao lado da mesa com a tesoura cravada no coração.


Ao mesmo tempo uma luz azul invadiu a sala e Vap entrou. Pegou-a pela mão, levantou-a, beijou-a e disse: O filho é nosso, vamos! Você nada mais tem que fazer aqui. Márcia amparada pelo extraterrestre caminhou tropegamente pelo quintal até a nave e assim partiram.

No dia seguinte os jornais publicaram manchetes: “Assassinado açougueiro. Mulher que viu extraterrestre é a suspeita. Toda a polícia procura Márcia Lobato”.

Um ano depois, quando as buscas tinham sido em vão, o caso foi arquivado. Nunca mais ninguém ouviu falar de Márcia e seu amante das estrelas.

9.8.08

CONVERSA EM NOITE DE LUA CHEIA

O escritor José Augusto de Oliveira, de Fortaleza, vem colaborar com a Câmara com um conto que nos remete aos melhores momentos da lieratura nacional, no entanto, sem contar com o marasmo no qual costumam estar construidas estas narrativas. Ao contrário, o autor constrói um texto ágil que possui muito de literatura universal. E o que é melhor: Assusta mesmo o leitor! Boa leitura!







CONVERSA EM NOITE DE LUA CHEIA
José Augusto de Oliveira




- Eu morava com meus dois fi... Num tinha marido. Era muié da vida. Naquele dia, num tinha nada em casa pra botá no fogo... Então aresolvi ir pra bêra do mar, esperá os pescadô. Pegá os resto de isca com eles...

Maria era uma negra velha, de ancas salientes, que ainda guardava no rosto, embora sofrido, marcas de uma beleza selvagem, africana. Neta de escravos, dentes alvos, brilhantes, tinha caído na vida, se prostituído por necessidade. Hoje, com os dois filhos já casados, mantinha-se como doméstica, na casa dos meus pais.

Naquela noite de sexta-feira, rodeada pela gente, eu e mais três irmãos, nos contava uma de suas reminiscências...

- Eu peguei uma bolsa de paia, botei debaxo do braço e mais ou meno às duas hora da tarde, me larguei pra praia. Era distante, um areial danado. Ao passar pela bodega do Juvená, ele me alertou:

- Nega véia, vai pra onde?

- Eu dixe, vou pra praia, pegá uns resto de isca...

- Tá sabeno que hoje é sexta-feira, noite de lua cheia?

Eu sabia sim, e arespondi pra ele:

- Juvená, eu tenho o corpo fechado, nada me faz má, e segui viagem.

- Cheguei no mar, era quase 5 horas da tarde. Deu 6, 7 horas e nada das jangada incostá... Quano viero incostá já era quase 8 horas, e a lua cheia já istava na metade do céu...

- Eu dixe comigo, é hoje...

- Fui nas jangada, catei as isca, inchi a bolsa, botei no ombro e marchei em rumo de casa...

Eu tinha 14 anos, era o mais velho dos meus irmãos. Já meio assustado, perguntei a Maria:

- Maria, por que você não dormiu na praia?

Ela deu um muchocho e respondeu rindo:

- Menino, e os meu fi? Eles istavam sem comê... Eu tinha que vortá pra casa... Eles istavam esperano por mim...

- Como eu tava dizeno, recomeçou ela, meti o pé na estrada, com passo apressado. Berei a bêra da praia por um bom tempo e adispois quebrei por dentro de um coqueiral, cortano caminho. Quando cheguei no fim do coqueiral, tinha uma faixa de areia branca, sorta, até chegá num pé de manguêra copado.... Mudei a bolsa de ombro e avancei no areial, quano de repente eu ouvi um som esquisito, como gente chorano, aquele choro preso... Cadê a coragem de olhar pra trás? Apressei o passo e o choro continuano, parecia qui tava na mesma distância de eu... Comecei a rezar o crendeus-pai de trás pra frente e apressei mais o passo. Eu já num tinha mais dúvida, era um lubisome... Quando fui chegano perto da manguêra, infiei meu braço nas azêias da bolsa, botei ela debaxo do suvaco e subi na manguêra... Só deu tempo de eu alcançá uma das forquia dá manguêra... O bicho riscou, dando um urro de cachorro doido. Oiei pra baxo, duas tochas de fogo asubia e adescia na minha direção. Era o bicho pulano, quereno me arcançá... Comecei a rezá pra São Supriano, amarrano o bicho, dano uma ruma de nó na ponta da minha saia... E o bicho danado, iscavacano e pulano ao redor da manguêra. Comecei a jogá isca de pêxe pra ele. No começo ele assossegou, comeu algumas, mas depois vortô a mi querê. Ele quiria me comê... A lua cheia, quano iscapava das nuvens, alumiava o bicho... Era grande, peludo, negro, e ficava em pé qui nem ome... Ele num asubia na manguêra pruque tinha os pé de bode... Eu já tinha jogado metade da bolsa de isca pra ele, quano o galo cantô. O lubisome parou de repente de choramingá e de iscavacar. Oiei pra baixo... Os óio de fogo dele istavam oiano pra mim. Ele foi se afastano, andano de costa, sempre oiano pra eu. Adispois se virou e saiu correno e sumiu-se no coqueiral...
Só desci da manguêra quano raiou o sol. Eu inda istava a uma meia légua de distança de casa...
Nunca mais fui pegar isca de pêxe na praia em noite de sexta-feira.

Um silêncio pesado se fez no meio da gente. Sentados no alpendre da casa, todos juntinhos um do outro, o caçula, de 10 anos, perguntou:

- Maria, o pé de mangueira que você estava trepada era igual a esse aqui?

- Era, mas só que maior, respondeu ela se levantando...

Um vento frio varreu a gente. Entramos todos em casa, agarrados na saia da Maria. Fomos deitar no quarto com o papai e a mamãe. Ninguém dormiu naquela noite.



(Lobisomem também conhecido como Lobishomem, Licantropo, Quibungo, Capelobo, Kumacanga (Pará), Curacanga (Maranhão), Hatu Runa (Equador), El Chupasangre (Colômbia). Mito universal. Em Roma antiga era mencionado pelo historiador Plínio. Além de lobo na Europa, ele pode se transformar em jumento, bode ou cabrito montês. Diz a lenda que quando um mulher tem 7 filhas e o oitavo filho é homem, esse menino será lobisomem. Também o será o filho da mulher amancebada com um padre. Quando o menino completa 13 anos, a maldição começa. Fonte: sitededicas.uol.com.br )

5.8.08

NÃO DURMA!

O escritor A.S. Vieira estréia como colaborador da Câmara dos Tormentos com um conto genial. Em palavras carregadas de presságios, ele cria um universo macabro e diabólico como poucas vezes se viu na literatura nacional. Boa leitura.






NÃO DURMA!




A.S Vieira






Samira sempre teve pesadelos. Sempre. Moradora de Israel, ela achava que as guerras freqüentes em seu país fossem a razão deles. Porém, aos catorze anos, ela se mudou para Londres. E foi então que os pesadelos começaram a ficar piores. Toda noite, assim que fechava os olhos, uma criatura lhe aparecia em sua cabeça. Era de forma humana, mas completamente careca, não tinha olhos e sua boca estava costurada em um pavoroso sorriso. Era o seu guia; um dos muitos daquele lugar. E por incrível que pareça, era quem lhe fazia se sentir segura quando caminhava pela terra assustadora dos pesadelos.

A terra era cheia de gritos, horrores e ranger de dentes. Demônios sorriam enquanto espancavam pessoas. Havia cidades, como as nossas, destruídas, onde havia gente ferida correndo e implorando por suas vidas. E pior de tudo, havia o palhaço que dançava e parecia ser o único a se divertir de verdade naquela terra.

Era um palhaço incomum, é verdade. Tinha pernas de bode e a cara pintada como os palhaços.

- Eles vêm pra cá, por que merecem estar aqui – dizia ele à Samira – Mas você não merece estar aqui. Não quer vir pra cá, então não durma!

Samira sempre acordava em prantos. Freqüentou os melhores psicólogos, participou das melhores terapias, mas nada a impedia de ver seu guia e o palhaço quando dormia. Aquilo a apavorava e causou seus problemas de relacionamento. Era uma pessoa tristonha, que quase não se comunicava e estava sempre na companhia de remédios que a mantivesse acordada. Não valiam muito.

Certa noite dormiu e voltou a seguir seu guia.

- Por que sempre está rindo, se não é feliz? – perguntou ela.

O guia virou sua cara sem olhos para ela, mas nada falou. Era impossível para ele falar. Voltaram a andar no meio do caos, mas, poucos minutos depois, o guia desapareceu.

- Cadê você?

Novamente, não houve resposta. Ela começou a andar, chorando, pois tinha medo. Muito medo. Queria acordar, dizia a si mesma que era apenas um sonho, mas não conseguia acordar.

Ouviu passos. Toc, toc, toc, no asfalto da rua por onde andava. Cascos. Logo o palhaço com pernas de bode apareceu. E ria.

- Boa notícia – disse ele – Você merece vir pra cá. Vou te levar pra um passeio comigo pela minha terra.

Mas Samira correu. Seus cabelos negros e lisos voavam na noite enquanto o toc toc dos cascos a seguia. E ele assobiava, e ria, e chamava seu nome. Até que, cansada, ela caiu. O palhaço então se aproximou, gargalhando.

- Deixe-me ver esses braços.

Com suas unhas, ele cortou os dois pulsos da menina.

- Pra você vir mais rápido, amorzinho. Você tem uma missão, merece vir pra cá.

Ao ver aquele sangue escorrendo, ela gritou. E fazendo isso, acordou.

Respirou aliviada.

Mas então viu o lençol cheio de sangue. Seus pulsos estavam cortados.

Desesperada, chamou os pais. Samira foi levada a um hospital, onde deram pontos em seus pulsos. Os ferimentos foram interpretados como tentativa de suicídio. A assistência social e a polícia interrogaram seus pais, vasculharam a casa, pois ninguém acreditava que um palhaço com pernas de bode a ferira em um pesadelo.

Samira estava decidida a não mais dormir. Não queria mais voltar àquela terra onde as pessoas sofriam, onde via vultos, espíritos que riam e demônios que se divertiam. Tudo eram sorrisos naquele mundo. E os sorrisos só vinham de quem praticava o mal, pois era divertido causar dor. Por isso ela nunca mais riu.

Samira estava mudada. Cansada, mais magra, adepta de remédios com apenas dezoito anos. Não tinha fôlego pra universidade, apesar de muito inteligente.

Certo dia viu o palhaço em sua cozinha. Estava sonhando acordada.

- Vou esfaquear seus pais – ele disse, passeando em volta do fogão – e vai ser divertido. Você tem problemas, vão colocar a culpa em você. Vai ser divertido, não vai?

Samira chorou. Subiu para o banheiro, abriu o armário de remédios e engoliu três potes de pílula. Fechou os olhos na banheira e nunca mais acordou.

Seus pais pensaram que a filha depressiva finalmente fora bem sucedida em sua tentativa de suicídio e se culparam. Mas concordaram que ela finalmente estava em paz.

Ledo engano.

Estou no mundo dos pesadelos agora, com medo. Trancado em um quarto, com alguma criatura estranha arranhando a porta na tentativa de entrar. Tenho medo. O palhaço diz que mereço estar aqui, pois vim para escrever o que vejo da minha janela.

E da minha janela vejo espíritos que brincam. Vejo mortos que andam; alguns até conhecidos meus. E vejo Samira. Ela veio me contar sua história há alguns dias agora que vaga pela terra dos pesadelos. Era bonita da primeira vez que a vi, mas depois me apareceu careca e nua pedindo que eu a ajudasse. Não podia fazer nada; expliquei que eu aparecia ali apenas quando dormia e não conseguia sair do quarto.

Alguns dias depois eu a vi sem seus olhos.

- Eu quero ver – ela gritava em pânico – preciso da luz, da luz...

Logo depois ela me apareceu novamente com a boca costurada num insano sorriso eterno. Nunca mais falou.

Mas isso faz muito tempo.

Hoje ela anda por aí, de qualquer jeito, acompanhando crianças que por alguma razão vão parar nessa terra e confiam nela como um guia. As crianças não sabem, mas confiam nela por que ela já esteve em seus lugares um dia. Mas duvido que hoje Samira se lembre de quem foi. Pra mim ela já esqueceu e se acostumou a ser mais uma criatura dessa terra terrível.

Eu quero ir embora.

Não mereço estar aqui descrevendo toda essa dor.

Só posso dar um conselho... Não durma!

Toc... Toc... Toc... Por que ele sempre tem que aparecer quando fecho os olhos?

4.8.08

O HOMÚNCULO

O mestre dos contos grotescos Paulo Soriano retorna às páginas da Câmara com mais uma obra fenomenal onde alia a mais pura maestria de sua escrita, toda dominada pela mais perfeita forma e erudição, à uma narrativa densa, macabra e emotiva de forma a criar um novo clássico da literatura fantástica nacional. Boa leitura!







O HOMÚNCULO




Um conto de Paulo Soriano




Numa madrugada fria, em que chovia copiosamente, fui acordado por pancadas desesperadas na porta de minha cabana, para onde me recolhia sempre que as ruelas mal-cheirosas de Villach se tornavam insuportáveis.
Irritado, acendi o lume e, ao olhar através do postigo, surpreendi-me ao ver, num relance, a pálida silhueta de Hieronymus von Hohenheim.
Quando abri a porta para dar passagem ao velho amigo, o vento, que soprava da floresta, apagou a candeia. Von Hohenheim passou por mim sem dizer palavra e, ao fazê-lo, uma leve onda de calafrio me varreu, envolvendo-me com a vibração de um sino. Podia sentir que Von Hohenheim estava assustado. Embora não pudesse escutá-las, as batidas de seu coração de alguma forma vinham até mim e, sem qualquer dúvida, eu sabia que seu corpo todo estremecia.
Assim que acendi a lareira, e lancei o olhar para o meu amigo, concluí que não me enganara em minhas sensações. Ele permanecia em pé, impassível. Mirava a lareira como se paralisado por uma força irresistivelmente dominadora. Servi-lhe a aguardente de seu agrado, mas ele não fez caso dela. Insisti:
– Bebe. Estás completamente molhado. O fogo da aguardente te fará bem.
Von Hohenheim tremia. Qualquer uma suporia que tritava de frio. Mas eu, que o conhecia como a palma de minha mão, sabia perfeitamente que era o medo que o fazia vibrar.
Servi-me da aguardente e o convidei a sentar-se. Desta feita, ele, resignado, obedeceu.
– O que eu irei contar-te parece loucura.
– O que aconteceu?
Meu amigo rangeu os dentes, numa reação nervosa. Examinando-o com mais atenção, vi que trazia o corpo todo coberto de lama. Deduzi que, conduzido por um desespero cuja origem eu ignorava, viera correndo. Caíra diversas vezes na lama, porque as suas calças tisnavam-se de lamas de diferentes colorações. Mas não arfava. Supus que Von Hohenheim quedara-se inerte em meus umbrais por um longo tempo antes de decidir-se por me pedir ajuda.
– Sabes que Phillipus, meu irmão, iniciou-me nas artes da Alquimia – disse-me ele, saindo aos poucos da letargia. – Há alguns anos, recebi de um mensageiro uma carta sua, na qual me confiava um segredo alquímico que ele, a bem de sua grande reputação, jamais ousaria partilhar com outrem senão comigo. E muito menos pô-lo em prática. Era uma fórmula para a produção de um homúnculo.
É evidente que Hieronymus von Hohenheim estava, de fato, louco. E, à medida que desfiava a sua história desvairada, mais eu me convencia de que Von Hohenheim não apenas estava doido: estava completamente alucinado.
– Faz três anos que eu criei o homúnculo. A produção de um homúnculo é um processo longo e delicado, no qual um simples erro, uma mera distração, pode conduzir ao insucesso da empresa. Tanto a criatura pode não germinar, como pode evoluir para uma aberração. O primeiro passo para a produção de um homúnculo é a inserção de esperma humano em um alambique hermeticamente fechado, que é enterrado em esterco de cavalo. Durante quarenta semanas, o ser gestado deve ser mantido a uma temperatura igual à do útero de uma égua. Neste tempo, o homúnculo se desenvolve gradualmente, alimentado por sangue humano. Ao final dos dez meses, infunde-se água destilada no alambique, que é levemente aquecido. O vapor o faz despertar e respirar como uma criança-recém nascida, da qual é uma miniatura. Disse-me meu irmão, em sua carta, que o homúnculo pode ser criado e educado como qualquer criança, até ficar mais velho e se tornar capaz de cuidar-se sozinho. Ele exige de nós a mesma dedicação que entornamos nos nossos filhos. É a pura verdade.
“Eu me afeiçoei à criatura, embora soubesse que ela, por não haver sido gerada no ventre de uma mulher, não possuía alma. Ela cresceu rapidamente, e, ao término de outro ano, já estava adulta. Confesso-lhe que eu a tinha como a um filho. Chamei-a de Johannes em tua homenagem!
“Foi por esse tempo que eu me casei com Olga. Johannes, malgrado dócil e obediente como um cãozinho, era muito impulsivo: a muito custo consegui conservá-lo longe da vista de Olga, embora ele soubesse que era seu dever manter-se a uma distância considerável da mulher. Tranquei-o, enfim, no meu laboratório, onde ninguém, nem mesmo Olga, sem minha expressa autorização, podia entrar. Quando se viu reclusa e abandonada, uma tristeza sem fim se apossou de minha criação. Como qualquer recém-casado, eu dedicava todo o meu tempo a Olga, e quase não mais me aventurava noutros experimentos alquímicos. Mesmo esquecido, mesmo abandonado, Johannes olhava-me como a um pai amoroso, com carinho e sem qualquer nesga de ressentimento. Mas, de entremeio à ternura de seu olhar, vinha uma expressão que eu soube interpretar perfeitamente: a amargura que flutua na densidade insondável do ciúme.
“Conquanto desprovido de alma, Johannes tinha as emoções e a inteligência de um ser humano. Com o coração ferido, ele bem poderia pôr seu a serviço de emoções tão primitivas quanto traiçoeiras.
“Todos sabem que ciúme e vingança andam juntos. Mas eu não podia crer, ou mesmo admitir, que Johannes pudesse fazer mal a Olga. Todavia, olhando friamente a questão, eu sabia que, mantendo o homúnculo em minha casa, expunha a minha mulher a certos riscos.
“Antes mesmo de casar-me com Olga, eu a admoestara a nunca entrar em minha sala secreta. Ela manteve-se obediente, para a minha satisfação. Mas, depois de encarcerar furtivamente o homúnculo no laboratório, corri a ela e renovei a advertência. Agi muito mal. Despertei nela, e com um vigor redobrado, a adormecida curiosidade feminina.
“Certa noite, ao voltar a casa, após medicar no campo, deparei-me com uma cena estarrecedora: Olga gritava, com os braços estendidos contra a parede; acuado como um cão indefeso, Johannes tremia a cada grito que esvaía dos pulmões ensandecidos de minha mulher.
“Decerto que a simples presença de um homúnculo é capaz de assustar o mais corajoso dos homens... Mas Johannes.. Johannes... Sim, amigo, meu experimento não foi propriamente um êxito. Errei em alguma coisa. Johannes era disforme. Era uma aberração.
“Olga ordenou:
'– Livra-te dessa abominação! Imediatamente!'
“Resoluto, prometi a Olga que assim o faria.
“Tomei Johannes nos braços e saí. Com a sua vozinha, que mais parecia um miado, ele me implorava que não o matasse. Em todo o trajeto ao riacho, ele gritava:
'-– Não me mates. Não mates o teu pequenino. Não mates quem mais te ama.'
“Enquanto eu afundava a criaturinha indefesa no ribeiro, mergulhava, também, a minha alma no remorso. Afinal, ainda que monstruosa e desprovida de alma, eu a amava profundamente.
“Voltei para casa com o espírito destroçado. E tomei a resolução de não mais tornar a pensar no assunto.
“Mas, hoje, algo de horrendo aconteceu. Levantei-me bem cedo e, não tendo visitas a realizar, resolvi arejar os pensamentos à beira do ribeiro. De súbito, pareceu-me que, por instantes, algo se agitou e escapuliu das sebes naturais que orlam o riacho. Era ele, era o homúnculo. É lógico que estremeci. Vira o homúnculo por apenas um instante. Mas não podia haver dúvidas que era mesmo ele. E os seus ocelos rubros ardiam de ódio. Flamejavam por vingança.
“Corri para casa, mas era tarde demais. Olga ainda dormia quando ele a atacou. E destroçou o seu pescoço. Agora eu sinto... eu sei.... que ele está à minha procura.”
Apiedei-me de meu amigo ensandecido a ponto de reprimir não poucas lágrimas. Então lhe disse:
– Hieronymus, nada há o que fazer. Aquece-te um pouco na lareira e vai dormir.
Foi neste momento que eu vi o homúnculo a esgueirar-se pela portinhola, que eu descuradamente deixara aberta. Ele era ágil como os símios que os saltimbancos exibem em dias de feira. Correu para mim. Nos seus pequenos olhos escarlates havia tanto ódio que eu adernei nauseado. A criaturinha andrajosa estava quase nua e, certamente, não teria mais que quinze polegadas reais. Sua pele parecia a de um réptil escamoso e a sua carranca hedionda rivalizava com a das gárgulas mais horrendas da catedral de St. Pierre. Johannes voltou-se para Hieronymus, que o olhava com a face contorcida pelo horror. Agachado, o homúnculo ensaiou uma grotesca reverência, como se pedisse desculpas pelo que iria fazer. Por um momento, a coisa estava de fato constrita e respeitosa. A coisa penitenciava-se verdadeiramente. Eu vi a tristeza fulgurar em seus olhos de fogo. Depois, atirou-se impiedosamente ao pescoço do homem, e lá mergulhou os seus dentes castanhos e curvos, que antes pareciam garras de aves de rapina.
Em poucos instantes, Hieronymus estava morto. O medo e o pavor impediram-me de esboçar a mais tímida reação.
O homúnculo encarou-me consternado. Neste preciso momento eu assisti, mais ultrajado que espavorido, a um sacrilégio. Aquela cara deformada tinha um quê de semelhança com a do homem que o criara. Podia nela ver a inconfundível expressão de aflição que há pouco contemplara na face de Hieronymus von Hohenheim. Compreendi que o monstrengo fora gerado e amamentado pelo esperma e pelo sangue de Hieronymus. Sim, a coisa era seu filho.
O homúnculo empertigou-se, como quem toma uma grave resolução. E atirou-se ao fogo da lareira, onde crepitou até o amanhecer.
__________________________________________
NOTA DO BLOG: Esta é a nova versão revisada pelo autor.

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