Jurandir Araguaia, amigo das letras sombrias e grande mestre do fantástico nacional, retorna às nossas páginas com mais um conto surpreendente, assustador, e magistral. Confira!
Jurandir Araguaia
Habita entre nós um réptil.
Percebi, durante certa madrugada, estranhos ruídos vindos do corredor. Parecia um chocalho. Minha esposa achou que era um silvo. Minhas filhas ouviram estalos. Cada qual guardou seu som. Acendi a luz do abajur e, munido de um halter de 1 quilo, usado para exercícios, avancei tremendo na sua direção. Acendi a luz e, em um flash, notei que desaparecera como se entrasse no buraco da noite.
O que era? Não consegui responder. Parecia uma espécie indefinida.
Sumiu no ar? Ao que parece. Não pregamos o olho. As luzes ficaram acesas nos quartos.
Na noite seguinte realizamos uma minuciosa revista antes da hora do sono. Cada pedaço da casa foi revistado. O cansaço nos tomou. Durante as horas tardias novamente sentimos sua presença. Derrubou coisas na cozinha. Adotei um bastão improvisado de madeira como elemento de defesa. Minhas filhas trancadas no quarto ao lado gritavam. Acendi a luz e corri à cozinha. Dois pequenos olhos vermelhos, rubis incandescentes sobre a pia, fitavam-me. Bati a mão no interruptor de luz e os olhos evaporaram diante da claridade. A cozinha em pandemônio. Travessas reviradas, embalagens de alimentos foram abertas e o conteúdo espalhado pelo chão. O porteiro chamou-nos pelo interfone. Recebeu reclamação de vizinhos que acordaram com os nossos gritos.
Desculpas pedidas. Guardamos silêncio. Seríamos tomados por loucos. Toda uma família passou a ser encarada com desconfiança pelos moradores do lugar. Nossas olheiras denunciavam as noites agitadas. Nas noites seguintes deixamos todas as luzes acesas. Como poderia um animal subir ao quinto andar e viver entre nós sem que ninguém o visse, sem deixar qualquer rastro durante o dia? O porte era considerável. Não poderia se ocultar facilmente. Janelas fechadas. Armários revistados. Não havia buraco na parede, ou nos ralos, ou atrás da pia ou dos sanitários que pudesse abrigá-lo.
Chamei um caçador de pragas. Revistou, buscou, constatou não haver vestígio de animal algum. Noite após noite, se deixávamos algum cômodo sem iluminação, acordávamos com a sua presença. Quartos trancados e abajures acesos viraram norma. Ele passava pelo corredor escuro. Arranhava nossas portas. Minhas filhas gritavam. Eu abria a porta e ele fugia da claridade engolido pelo vácuo da noite. Era um inferno. O síndico me chamou para conversar. Reclamações sucediam-se. Minhas desculpas desgastavam-se. A desconfiança habitava entre nós. Certo dia, ao sair para o trabalho, encontrei meu carro pichado com os dizeres: loucos, vão embora. Não contei nada à minha família, elas não precisavam passar por aquilo. Comprei uma pistola no mercado negro. Passamos a necessitar de calmantes. Minha esposa entrou em paranóia.
Você tem que fazer alguma coisa.
Nenhum de nós conseguia executar direito as suas tarefas. Eu errava no trabalho. Minhas filhas não estudavam. O casal parou de fazer amor. A vida virou do avesso. Dormíamos todos juntos em um só quarto enquanto o animal dominava a casa. A conta de luz foi às alturas. Pensei em chamar o Corpo de Bombeiros. Ri da minha ingenuidade. Dizer o quê? Que o animal desaparece ao ascendermos as luzes? Loucos, era o que pensariam, era no que nos tornávamos.
Em uma noite aconteceu: queda geral de energia. Amontoados no mesmo quarto, gritávamos antes que ele aparecesse. Duas enormes pupilas, do tamanho de bolas de futebol, ameaçavam nos devorar. Chispas eram lançadas. Um odor de morte invadiu o lugar. Senti que uma das minhas filhas foi arrancada de nós e gritava de medo e horror, enquanto a tremenda fera a balançava no ar entre os seus dentes. Com uma pequena lanterna eu mal conseguia divisar o que ocorria. Disparei a esmo a arma. Os gritos sucediam-se. Atirei até que tudo ficasse calmo. Os olhos sumiram. Acendi a luz e constatei que toda a minha família estava morta. Os tiros erraram o alvo. Ninguém acreditou em mim. Fui preso. Os vizinhos me olhavam com ares de ódio. Sentia em cada um a mesma energia da fera. Hoje, em minha cela, no escuro, abro os olhos e vejo aquelas duas chamas a me encarar, risonhas, vibrando com a minha desgraça...
Jurandir Araguaia