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28.6.08

O MEDO

A Câmara dos Tormentos apresenta agora, para o deleite de seus amigos e amigas amantes das sombras, um dos melhores contos do mestre do fantástico Guy de Maupassant. Boa leitura!




"O medo" (1882)


Tradução de Ana Cardoso Pires




Para J. K. Huysmans


Subimos à coberta depois do jantar. Diante de nós, o Mediterrâneo não tinha um tremor em toda a superfície, que uma grande lua calma fazia brilhar. O grande navio deslizava, atirando para o céu, que parecia semeado de estrelas, uma enorme serpente de fumo negro; e, atrás de nós, a água muito branca, agitada pela passagem rápida da pesada embarcação, castigada pela hélice, espumava, parecia torcer-se e revolvia tantos brilhos que se diria a luz da lua em ebulição.

Estávamos ali uns seis ou oito, silenciosos, em contemplação, de olhar voltado para a África longínqua a que nos dirigíamos. O comandante, que estava conosco fumando um charuto, retomou subitamente a conversa do jantar.

- Sim, tive medo naquele dia. O meu navio ficou seis horas com aquele rochedo encravado no bojo, batido pelo mar. A nossa sorte foi sermos recolhidos, para o fim da tarde, por um carvoeiro inglês que nos avistou.

Então, um homem alto, de rosto tisnado e aspecto grave, um daqueles homens que se percebe terem atravessado vastos territórios desconhecidos no meio de perigos incessantes, e cujo olhar tranquilo parece conservar, na sua profundeza, algo das paisagens estranhas que viu - um daqueles homens que adivinhamos forjados na coragem, falou pela primeira vez:

- Está a dizer, comandante, que teve medo; não acredito nada nisso. Engana-se em relação à palavra e à sensação que experimentou. Um homem enérgico nunca tem medo diante do perigo premente. Fica impressionado, agitado, ansioso; mas o medo é outra coisa.

O comandante replicou, rindo:

- Caramba! Estou a dizer-lhe que tive mesmo medo.

Então, o homem de tez bronzeada disse pausadamente:

- Permita que me explique! O medo (e os homens mais intrépidos podem sentir medo) é algo assustador, uma sensação atroz, uma espécie de dilaceração da alma, um espasmo horroroso do raciocínio e do coração, cuja simples lembrança provoca calafrios angustiantes. Mas isso não acontece, quando se é corajoso, nem diante de um ataque, nem diante da morte inevitável, nem diante de qualquer das formas conhecidas de perigo; acontece em certas circunstâncias anormais, sob certas influências misteriosas e perante riscos vagos. O verdadeiro medo é como uma reminiscência dos terrores fantásticos de outrora. Um homem que acredita em almas penadas e que imagina estar a ver um espectro à noite deve sentir o medo em todo o seu insuportável horror.

Pessoalmente, senti o medo em pleno dia, há cerca de dez anos. Tornei a senti-lo no Inverno passado, numa noite de Dezembro.

E, no entanto, já passei por muitos perigos, por muitas aventuras que pareciam mortais. Entrei em muitas lutas. Fui deixado como morto por ladrões. Fui condenado à forca como insurrecto, na América, e fui atirado ao mar da ponte de um navio, nas costas da China. Sempre que me julguei perdido, assumi imediatamente a minha defesa, sem compaixão e sem lamentos sequer.

Mas o medo não é isso!

Pressenti-o em África. E no entanto, ele é filho do Norte; o sol dissipa-o como ao nevoeiro. Reparem bem, cavalheiros. Para os orientais, a vida não tem valor; a resignação é imediata; as noites são límpidas e sem lendas e as almas igualmente livres das inquietações sombrias que atormentam os cérebros nos países frios. No Oriente, podem conhecer o pânico, mas ignoram o medo.

Pois bem: eis o que me aconteceu nessa terra de África:

"Fazia a travessia das grandes dunas ao sul de Ouargla. É uma das mais estranhas regiões do mundo. Os senhores conhecem a areia compacta, a areia lisa das intermináveis praias do oceano. Pois bem: imaginem o próprio oceano transformado em areia no meio de uma borrasca; imaginem uma tempestade silenciosa com vagas imóveis feitas de poeira amarela. São altas como montanhas, essas vagas, desiguais, diferentes, erguidas exactamente como numa maré enraivecida, mas muito maiores, e estriadas como o chamalote. Sobre esse mar furioso, mudo e imóvel, o devorador sol meridional jorra a sua chama implacável e directa. É preciso escalar essas vagas de cinza de ouro, voltar a descer, escalar novamente, escalar sempre, sem descanso e sem sombra. Os cavalos arquejam do esforço, afundam-se até aos joelhos e deixam-se resvalar pela outra vertente das surpreendentes colinas.

Éramos dois amigos, acompanhados por oito spahis e quatro camelos com os respectivos cameleiros. Já não falávamos, prostrados pelo calor e pela fadiga, ressequidos de sede como aquele deserto ardente. De súbito, um dos homens soltou uma espécie de grito; todos pararam; e ficámos imóveis, surpreendidos por um inexplicável fenómeno conhecido dos viajantes daquelas paragens perdidas.

Algures perto de nós, numa direcção indeterminada, rufava um tambor, o misterioso tambor das dunas. Rufava distintamente, ora mais vibrante, ora mais fraco, parando e recomeçando o seu fantástico rufar.

Os árabes, aterrorizados, olhavam uns para os outros; e um disse, na sua língua: 'A morte paira sobre nós'. E de repente, o meu companheiro, meu amigo, quase meu irmão, caiu do cavalo, de cabeça, fulminado por uma insolação.

E durante duas horas, enquanto tentava em vão salvá-lo, aquele tambor invisível não cessou de me encher os ouvidos com o seu barulho monótono, intermitente e incompreensível; e eu sentia o medo, o verdadeiro medo, o medo horrendo, insinuar-se nos meus ossos, diante daquele morto querido, naquele buraco incendiado pelo sol, entre quatro montes de areia, enquanto o eco desconhecido nos lançava, a duzentas léguas de qualquer aldeia francesa, o rufar rápido do tambor.

Naquele dia compreendi o que é ter medo; soube-o ainda melhor de outra vez..."

O comandante interrompeu o narrador:

- O senhor desculpe-me, mas esse tambor? O que era?

O viajante respondeu:

- Não faço ideia. Ninguém sabe. Os oficiais, frequentemente surpreendidos por esse ruído singular, atribuem-no geralmente ao eco ampliado, multiplicado, desmesuradamente aumentado pelos vales formados pelas dunas, gerado por saraivadas de grãos de areia carregados pelo vento e que esbarram em tufos de ervas secas. Porque sempre se observou que o fenómeno ocorre na proximidade de umas plantinhas queimadas do sol, duras como pergaminho.

Esse tambor não seria, pois, senão uma espécie de miragem de som. Apenas isso. Mas só o soube mais tarde. Agora, a minha segunda emoção.

"Foi no Inverno passado, numa floresta do nordeste da França. A noite tinha chegado duas horas mais cedo, de tal modo o céu estava escuro. Tinha como guia um camponês que caminhava a meu lado por um trilho ínfimo, sob uma abóbada de abetos, através dos quais o vento desabrido uivava. Por entre as copas, via passarem nuvens à desfilada, nuvens desvairadas que pareciam fugir de algo pavoroso. Por vezes, no meio de um estrondo violento, toda a floresta se inclinava na mesma direcção, com um gemido de dor; e o frio invadia-me, apesar do meu passo rápido e das minhas roupas pesadas.

Íamos cear e dormir à casa de um guarda florestal, que já não estava longe. Eu estava ali para caçar.

O meu guia, de vez em quando, erguia os olhos e murmurava: 'Que tempo desgraçado!' Depois falou-me das pessoas para casa de quem íamos. O pai tinha morto um caçador furtivo, dois anos antes, e, desde então, ficara taciturno, como que dominado por uma recordação. Os dois filhos, casados, viviam com ele.

As trevas eram cerradas. Não via nada à minha frente nem à minha volta, e a ramagem das árvores que se entrechocavam enchia a noite de um murmúrio incessante. Por fim, avistei uma luz e em breve o meu companheiro estava a bater a uma porta. Gritos agudos de mulheres vieram em resposta. Depois, uma voz de homem, uma voz estrangulada, perguntou: 'Quem vem lá?' O meu guia identificou-se. Entrámos. Era um quadro inesquecível. Um velho de cabelos brancos, de olhar ensandecido, com a espingarda carregada na mão, esperava-nos de pé no meio da cozinha, enquanto dois mocetões, armados de machados, guardavam a porta. Divisei nos cantos sombrios duas mulheres ajoelhadas, de rosto escondido, virado para a parede.

Explicámo-nos. O velho voltou a encostar a arma à parede e mandou preparar o meu quarto; depois, como as mulheres não se movessem, disse-me bruscamente: 'Sabe, senhor, matei um homem faz esta noite dois anos. No ano passado, ele apareceu a chamar-me. Espero-o ainda esta noite'.

E acrescentou, num tom que me fez sorrir: 'Por isso, não nos sentimos em paz.'

Tranquilizei-o como pude, feliz por ter vindo precisamente nessa noite e assim assistir ao espectáculo daquele terror supersticioso. Contei algumas histórias e consegui praticamente acalmar toda a gente.

Junto à lareira, um velho cão, quase cego e de grandes bigodes, um daqueles cães que se parecem com pessoas nossas conhecidas, dormia com o focinho entre as patas.

Lá fora, a tempestade enfurecida abatia-se sobre a casita e, por uma vidraça estreita, uma espécie de postigo junto à porta, vi de repente uma grande agitação de árvores açoitadas pelo vento, iluminadas por grandes relâmpagos.

Apesar dos meus esforços, percebia que um terror profundo dominava aquelas pessoas e, sempre que parava de falar, todos os ouvidos se fixavam ao longe. Cansado de assistir a tais medos imbecis, ia pedir para me deitar quando, de repente, o velho guarda saltou da cadeira, voltou a pegar na espingarda, balbuciando numa voz desnorteada: 'Ele está aqui! Ele está aqui! Estou a ouvi-lo!'

As duas mulheres tornaram a cair de joelhos nos seus cantos, escondendo o rosto; e os filhos voltaram a pegar nos machados. Ia tentar acalmá-los de novo, quando o cão adormecido despertou bruscamente, levantou a cabeça, esticou o pescoço, fitou o fogo com o seu olhar quase cego, e soltou um daqueles uivos lúgubres que sobressaltam os viajantes, à noitinha, nos campos. Todos os olhos se voltaram para ele, agora imóvel, direito sobre as patas, como dominado por uma visão; e voltou a uivar na direcção de qualquer coisa invisível, desconhecida, medonha sem dúvida, pois o pêlo eriçou-se todo.

O guarda, lívido, gritou: 'Ele está a senti-lo! Ele está a senti-lo! Ele estava lá quando eu o matei'.

E as duas mulheres, desnorteadas, puseram-se ambas a uivar com o cão.

Involuntariamente, um grande arrepio percorreu-me a espinha. Aquela visão do animal, naquele lugar, àquela hora, no meio daquela gente alucinada, era um espectáculo aterrador.

E durante uma hora, o cão uivou sem se mover; uivou como na angústia de um pesadelo; e o medo, um medo assombroso, apoderou-se de mim. Medo de quê? E eu sei? Era o medo, só isso.

Permanecemos imóveis, lívidos, na expectativa de um acontecimento pavoroso, de ouvido à escuta, coração aos pulos, sobressaltados pelo mínimo ruído. E o cão pôs-se a andar em torno da sala, farejando as paredes, sempre a ganir. Aquele animal estava a pôr-nos loucos! Então, o camponês que me tinha trazido até ali, atirou-se a ele, numa espécie de paroxismo de terror insano, e, abrindo uma porta que dava para um pequeno pátio, atirou-o lá para fora.

O bicho calou-se imediatamente; e ficámos mergulhados num silêncio ainda mais aterrador. De súbito, todos à uma, tivemos uma espécie de sobressalto: um ser deslizava encostado à parede exterior, do lado da floresta; depois, passou pela porta, que pareceu tactear com uma mão hesitante; depois não se ouviu mais nada durante dois minutos que nos fizeram enlouquecer; depois voltou, sempre a roçar na parede; e raspou ligeiramente, como faria uma criança com a unha; depois, subitamente, surgiu uma cabeça no vidro do postigo, uma cabeça branca, com olhos luminosos como os das feras. E a boca emitiu um som, um som indistinto, um murmúrio lamentoso.

Então, um estrondo enorme ressoou na cozinha. O velho guarda tinha disparado. E imediatamente, os filhos precipitaram-se a bloquear o postigo, pondo ao alto a enorme mesa, que sustiveram arrimando-lhe o aparador.

E juro-vos que, ao ouvir o estampido do tiro, que não esperava de todo, senti uma tal angústia no coração, na alma e no corpo, que me senti desfalecer, prestes a morrer de medo.

Ficámos ali até à chegada da aurora, incapazes de nos mexermos, de dizermos uma palavra, crispados num pânico inenarrável.

Ninguém ousou desobstruir a saída até apercebermos, pela fenda de um telheiro, um ténue raio de dia.

Junto à parede, contra a porta, jazia o velho cão, de garganta despedaçada por uma bala.

Saíra do pátio através de um buraco que tinha cavado por debaixo de uma cerca.

O homem de rosto moreno calou-se; depois acrescentou:

- E no entanto, naquela noite, não corri perigo nenhum; mas preferia reviver todas as horas em que enfrentei os mais terríveis perigos do que aquele único minuto do tiro, na cabeça barbada ao postigo.



(23 de Outubro de 1882)

26.6.08

O DRAGÃO DA MEIA - NOITE

Jurandir Araguaia, amigo das letras sombrias e grande mestre do fantástico nacional, retorna às nossas páginas com mais um conto surpreendente, assustador, e magistral. Confira!



O DRAGÃO DA MEIA - NOITE

Jurandir Araguaia



Habita entre nós um réptil.
Percebi, durante certa madrugada, estranhos ruídos vindos do corredor. Parecia um chocalho. Minha esposa achou que era um silvo. Minhas filhas ouviram estalos. Cada qual guardou seu som. Acendi a luz do abajur e, munido de um halter de 1 quilo, usado para exercícios, avancei tremendo na sua direção. Acendi a luz e, em um flash, notei que desaparecera como se entrasse no buraco da noite.

O que era? Não consegui responder. Parecia uma espécie indefinida.

Sumiu no ar? Ao que parece. Não pregamos o olho. As luzes ficaram acesas nos quartos.

Na noite seguinte realizamos uma minuciosa revista antes da hora do sono. Cada pedaço da casa foi revistado. O cansaço nos tomou. Durante as horas tardias novamente sentimos sua presença. Derrubou coisas na cozinha. Adotei um bastão improvisado de madeira como elemento de defesa. Minhas filhas trancadas no quarto ao lado gritavam. Acendi a luz e corri à cozinha. Dois pequenos olhos vermelhos, rubis incandescentes sobre a pia, fitavam-me. Bati a mão no interruptor de luz e os olhos evaporaram diante da claridade. A cozinha em pandemônio. Travessas reviradas, embalagens de alimentos foram abertas e o conteúdo espalhado pelo chão. O porteiro chamou-nos pelo interfone. Recebeu reclamação de vizinhos que acordaram com os nossos gritos.

Desculpas pedidas. Guardamos silêncio. Seríamos tomados por loucos. Toda uma família passou a ser encarada com desconfiança pelos moradores do lugar. Nossas olheiras denunciavam as noites agitadas. Nas noites seguintes deixamos todas as luzes acesas. Como poderia um animal subir ao quinto andar e viver entre nós sem que ninguém o visse, sem deixar qualquer rastro durante o dia? O porte era considerável. Não poderia se ocultar facilmente. Janelas fechadas. Armários revistados. Não havia buraco na parede, ou nos ralos, ou atrás da pia ou dos sanitários que pudesse abrigá-lo.

Chamei um caçador de pragas. Revistou, buscou, constatou não haver vestígio de animal algum. Noite após noite, se deixávamos algum cômodo sem iluminação, acordávamos com a sua presença. Quartos trancados e abajures acesos viraram norma. Ele passava pelo corredor escuro. Arranhava nossas portas. Minhas filhas gritavam. Eu abria a porta e ele fugia da claridade engolido pelo vácuo da noite. Era um inferno. O síndico me chamou para conversar. Reclamações sucediam-se. Minhas desculpas desgastavam-se. A desconfiança habitava entre nós. Certo dia, ao sair para o trabalho, encontrei meu carro pichado com os dizeres: loucos, vão embora. Não contei nada à minha família, elas não precisavam passar por aquilo. Comprei uma pistola no mercado negro. Passamos a necessitar de calmantes. Minha esposa entrou em paranóia.
Você tem que fazer alguma coisa.

Nenhum de nós conseguia executar direito as suas tarefas. Eu errava no trabalho. Minhas filhas não estudavam. O casal parou de fazer amor. A vida virou do avesso. Dormíamos todos juntos em um só quarto enquanto o animal dominava a casa. A conta de luz foi às alturas. Pensei em chamar o Corpo de Bombeiros. Ri da minha ingenuidade. Dizer o quê? Que o animal desaparece ao ascendermos as luzes? Loucos, era o que pensariam, era no que nos tornávamos.

Em uma noite aconteceu: queda geral de energia. Amontoados no mesmo quarto, gritávamos antes que ele aparecesse. Duas enormes pupilas, do tamanho de bolas de futebol, ameaçavam nos devorar. Chispas eram lançadas. Um odor de morte invadiu o lugar. Senti que uma das minhas filhas foi arrancada de nós e gritava de medo e horror, enquanto a tremenda fera a balançava no ar entre os seus dentes. Com uma pequena lanterna eu mal conseguia divisar o que ocorria. Disparei a esmo a arma. Os gritos sucediam-se. Atirei até que tudo ficasse calmo. Os olhos sumiram. Acendi a luz e constatei que toda a minha família estava morta. Os tiros erraram o alvo. Ninguém acreditou em mim. Fui preso. Os vizinhos me olhavam com ares de ódio. Sentia em cada um a mesma energia da fera. Hoje, em minha cela, no escuro, abro os olhos e vejo aquelas duas chamas a me encarar, risonhas, vibrando com a minha desgraça...


Jurandir Araguaia

I.S. MAGAZINE

IS MAGAZINE - A REVISTA ELETRÔNICA DA IRMANDADE DAS SOMBRAS – NÚMERO 3

Entrevista: ROBERTO DE SOUSA CAUSO .
Matéria Especial: Possessão Demoníaca.
Mais: contos, resenhas e poemas sombrios.
Baixe a IS número 3
IS MAGAZINE NÚMERO 3

Leia também a IS número 1

20.6.08

AMO-TE TANTO, MINHA QUERIDA!

A escritora e amiga das sombras Tãnia Mara Souza, volta à nossas páginas com uma bela poesia. Boa leitura!





AMO-TE TANTO, MINHA QUERIDA!


Por Tânia Mara Souza



Amo-te tanto minha querida
E já não me importa a tua pele assim ferida
Repouso em teu peito calado em puro encanto
E o aroma nauseabundo de teu corpo
Respiro e quero-me deste olor impregnado

Os espasmos que em teu outrora corpo santo
Os vermes causam, deleito-me, sorvo e vibro
Pois te sinto ainda em volúpia em meus braços
E meus dedos brincam em teu lacerado umbigo
Lambuzando-me em teu sangue coagulado

Amo-te tanto minha querida
Que me importa tua doce pele necrosada?
Se em ti tenho tenra a minha morada
E aos humores da morte aspiro enamorado

Perdoaras, bem sei, essa volúpia incontida
De possuir-te em lascívia empolgante
Meu desejo é antigo, e não faço dos vermes inimigos
Quando passeamos por tua carne apaixonados
E em úmida putrefação te abraço

Amo-te tanto minha querida
Que perdoaras também a faca assassina
Que te presenteei na esquina assombrada
Sei que ainda eras uma menina
Perfurei em teus seios a vida
Em teu ventre, em teus braços e coxas exibes
As marcas da minha paixão afiada
Mas, ah, não esconderei de ti mais nada
Somente assim serias minha doce e completa amada

Ainda assim não foste ainda minha
Tive que esperar deusa querida
As tolices de uma gente desesperada
Enquanto preparava-te esta doce morada
E foi na noite calada que ousei atrevido
Profanei o túmulo onde estavas
E finalmente és minha mulher adorada

Quando vivias, gostava de tua tez tão rosada
Quando indiferente passavas por mim todos os dias
Mas amo-te muito mais assim toda esverdeada
Pois era linda, mas não me pertencias
És agora minha soturna namorada

Nesta caverna sombria, entanto glamurosa
De vermes e purulentos vapores infestada
Nossas núpcias enfim serão celebradas
E tolos os que te choram em cova vazia
Onde foste enterrada e agora jaz abandonada

Mal sabem do deleite,
Dessa podridão soberba
E do amor profano que te ofereço
Amar-te assim até que seja apenas
Em meus braços desnudo esqueleto

18.6.08

A LENDA DO CAVALUM

Uma aterradora lenda portuguesa narrada por Olimac do blog DOCUMENTOS e DO BAÚ DE MINHA AVÓ.


A LENDA DO CAVALUM


As Furnas do Cavalum, na vila de Machico da ilha da Madeira, são umas grandes grutas escavadas na rocha de basalto que o povo diz serem a morada de um monstro. Cavalum é um diabo em forma de um enorme cavalo com asas de morcego que deita fogo pelas narinas. Ainda é possível, em dias de temporal, ouvir os urros e as patadas do Cavalum ecoar nas paredes da gruta. Embora haja quem diga que estes ruídos não são mais do que o eco do ribombar dos trovões, o povo afirma serem do monstro que ali foi obrigado a ficar contra a sua vontade.

Segundo a lenda, nos tempos em que o Cavalum andava à solta, foi a besta bater à porta de igreja para falar com Deus. Quando Deus lhe perguntou ao que vinha, o Cavalum disse-lhe que lhe queria propor um desafio: o monstro tinha a intenção de destruir toda a povoação, igreja incluída, e queria ver se Deus, que já estava um bocadinho velho, tinha forças para o impedir. Deus mandou-o embora dizendo que não tinha paciência para tais brincadeiras. Mas o Cavalum, que achou que tinha sido honesto em O avisar, reuniu o vento e as nuvens e juntos despertaram uma grande tempestade que se abateu terrível sobre a povoação. Do alto do penhasco, o Cavalum relinchava de satisfação perante a aflição dos habitantes. Mas Deus, envolvido nas suas mantas diante da lareira, não mexeu um único dedo, pensando que o Cavalum depressa se cansaria da sua brincadeira. Mas a tempestade subiu de intensidade e o povo, atemorizado, viu as casas e os campos serem arrasados. Até o crucifixo voou pelos ares até ir parar ao mar, levado pelo vento, por indicação especial do insolente Cavalum. Foi aí que Deus começou a ficar mesmo muito irritado e decidiu acabar com toda aquela provocação infantil.


A sua primeira reacção, claro está, foi fazer com que um barco que estava no mar achasse o crucifixo. Depois chamou o sol que apareceu com toda a sua força, afastando as nuvens, o vento, os trovões e os relâmpagos. O céu ficou azul e a felicidade voltou ao coração dos homens. Não querendo mais ser interrompido nos seus afazeres pelas tropelias do monstro, Deus decidiu prender o Cavalum nas grutas, onde ainda hoje de vez em quando se ouvem os seus protestos de raiva e desespero.

17.6.08

SILÊNCIO

A Câmara apresenta mais um clássico absoluto da literatura fantástica universal. O mestre Edgar Alan Poe mais uma vez nos faz mergulhar num mundo envolto nas mais profundas trevas do horror. Boa leitura!



SILÊNCIO

Edgar Alan Poe


Fábula
"O cimo da montanha dormita; .
vales, rochedos e grutas emudecem."
Alcman.



ESCUTA - disse o Demônio, pondo a mão sobre minha cabeça. - A região de que falo é uma lúgubre região da Líbia, às margens do rio Zaire e ali não há repouso nem silêncio. "As águas do rio são amarelas e insalubres e não correm para o mar, mas palpitam eternamente, sob o rubro olhar do sol, em movimentos tumultuosos e convulsivos. Por muitas milhas, de cadalado do leito lamacento do rio, estende-se um pálido deserto de gigantescos nenúfares, que suspiram, um para o outro, naquela solidão e erguem para o céu os longos colos lívidos, meneando as frontes imortais. E dentre eles se evoca um murmúrio indistinto, semelhante ao rolar de uma torrente subterrânea. E um para o outro eles suspiram.

"Mas há um limite para seu reino, o limite da floresta escura, horrenda, enorme. Ali, como as ondas em torno das Hébridas, os arbustos rasteiros agitam-se sem cessar. No céu, porém, não sopra vento algum. E as altas árvores primitivas oscilam, eternamente, para lá e para cá, com um rumor poderoso e estalidante, E dos seus altos cimos, caem, uma a uma, as gotas de um sempiterno orvalho. E as seus pés, estranhas flores venenosas jazem, estorcendo-se em agitado sono. E nas alturas, zunem fortemente as nuvens plúmbeas, que correm continuamente para o oeste, até rolarem, em cataratas, por cima da muralha ardente do horizonte, E às margens do rio Zaire não há repouso nem silêncio.

"Era noite e a chuva caía; e ao cair, era chuva, mas, ao chegar ao chão, era sangue. E de pé, no paul, entre os altos nenúfares, eu estava, enquanto a chuva caía sobre mim. E os nenúfares suspiravam um para o outro, na solenidade de sua desolação.

E, de-repente, através do fino e lívido nevoeiro, surgiu a lua, toda carmesim, E meu olhar caiu sobre um rochedo enorme e escuro, que se erguia à margem do rio, iluminado pela luz da lua. E o rochedo era enorme e de um cinzento pálido. Pálido e cinzenta. Letras estavam gravadas na superfície da pedra; caminhei através do paul de nenúfares até à margem, para poder ler as letras gravadas na pedra. Mas não pude decifrá-las. E ia regressar ao paul, quando a lua brilhou ainda mais vermelha. Voltei-me e olhei de novo para o rochedo, para as letras, que formavam a palavra DESOLAÇÃO."Ergui a vista e descobri um homem, de pé, no cume do rochedo; ocultei-me entre os nenúfares, a-fim-de poder ver os movimentos do homem. Ele era alto, de porte imponente, e envolvia-se, dos homem. Ele era alto, de porte imponente, e envolvia-se, dos ombros aos pés, numa toga romana. Os traços de seu rosto eram indistintos, mas suas feições eram as de uma divindade; pois luziam mesmo através do manto da noite, da névoa, da luz e do sereno. Erguia o cenho, pensativamente, e seu olhar ardia de preocupação; e nas poucas rugas que lhes sulcavam as faces, eu lia as legendas de tristeza, de fadiga e de desgosto pela humanidade, e o amor ansioso da solidão.

"E o homem sentou-se sobre o rochedo, pousou a cabeça na mão e contemplou meditativamente a soledade. Mergulhou a vista nos arbustos rasteiros e inquietos e elevou-a às altas árvores primitivas e, mais alto ainda, até ao céu rumorejante e à lua avermelhada. E escondido em meio aos nenúfares, seguia eu os movimentos do homem. E o homem tremia na solidão; mas a noite avançava e ele permanecia sentado no rochedo."E o homem desviou depois sua atenção do céu e baixou a vista sobre o lúgubre rio Zaire, sobre suas águas lívidas e amarelas e sobre as legiões lúridas de nenúfares. E o homem escutava os suspiros dos nenúfares e o murmúrio que deles se evolava. E, bem oculto, espreitava eu as ações do homem. E o homem tremia na solidão; mas a noite avançava e ele permanecia sentado no rochedo.

"Depois desci para os recessos do paul, patinhando nas brenhas de nenúfares e gritei pelos hipopótamos, que habitavam nos lameiros mais fundos do pântano. E os hipopótamos ouviram os meus gritos e vieram, com o behemoth (1), colocar-se no sopé do rochedo, e à luz rugiram forte e pavorosamente. E, bem oculto, espreitava eu as ações do homem. E o homem tremia na solidão; mas a noite avançava e ele permanecia sentado no rochedo.

"Depois apostrofei os elementos, com maldições tumultuosas; e uma terrível tempestade formou-se no céu, onde antes não havia vento. E lívido se tornou o céu, com a violência da tempestade. E a chuva golpeava a cabeça do homem; e a água do rio corria escachoante, a espumejar de dor; e os nenúfares gemiam nos leitos; e as florestas se despedaçavam ao sopro do vento; e o trovão ribombava; e os raios caíam; e o rochedo se abalava até a base. E, bem oculto, espreitavam eu as ações do homem. E o homem tremia na solidão; mas a noite avançava e ele permanecia sentado no rochedo.

"Encolerizei-me, então, e amaldiçoei, com a maldição do silêncio, o rio, e os nenúfares, e o vento, e a floresta, e o céu, e os trovão, e os gemidos dos nenúfares. E, amaldiçoados, emudeceram. E a lua deixou de vaguear pela estrada celeste. E o trovão morreu ao longe. O raio não mais fulgurou. E as nuvens penderam imóveis. E as águas voltaram ao seu nível e sossegaram. E as árvores cessaram de oscilar.

E os nenúfares não mais suspiraram. E não mais se ouviu o murmúrio que deles se evolava, ou qualquer sombra de som, por toda a vastidão ilimitada do deserto. E ao contemplar as letras gravadas no rochedo, vi que haviam mudado; lia-se agora a palavra SILÊNCIO.

"E de novo volvi o olhar para o rosto do homem e seu rosto estava lívido de terror. De-repente, ergueu a cabeça e pôs-se de pé no rochedo à escuta. Mas nenhuma voz havia, por toda a vastidão ilimitada do deserto. E as letras gravadas no rochedo diziam silêncio. E o homem estremeceu, voltou o rosto e pôs-se em fuga, precipitadamente; e nunca mais o tornei a ver."

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Ora, lindas história se encontram nos volumes dos Magos, nos melancólicos volumes com fecho de ferro. Neles, afirmo, há esplêndidas histórias do Céu e da Terra, e do mar poderoso; e dos Gênios que governam o mar, e a terra, e os altos céus. Há também muita ciência nas palavras proferidas pelas Sibilas; e coisas sagradas se ouviam outrora, junto às folhas sombrias, que tremiam em torno de Dodona; mas, considero, tão certo como vive Alá, essa fábula que o Demônio me contou, sentado ao meu lado, à sombra do túmulo, como a mais maravilhosa de todas! E ao terminar o Demônio sua história, caiu dentro da cavidade do sepulcro, às gargalhadas. E como eu não pudesse rir com o Demônio, ele me amaldiçoou. E o lince, que vive eternamente no sepulcro, saiu do seu fojo e deitou-se aos pés do Demônio, encarando-o fixamente.
***

(1) - Animal considerado como o hipopótamo do Nilo, e descrito no livro de Jó (XL 15-24) (Nota dos TT.)


(Publicado pela primeira vez no BALTIMORE BOOK, em 1839)

6.6.08

A INVASÃO DE SANTEREZ

A INVASÃO DE SANTEREZ




Um conto de Henry Evaristo



O passado está cheio de fantasmas e monstros reais. Desde a pré-história o homem vive cercado por um mundo que esporadicamente lhe propicia vislumbres de uma natureza que não é a sua e, para além disso, de uma realidade muito diversa da que lhe é familiar. Na antiguidade a sensação de que éramos rodeados por um universo invisível eventualmente capaz de esbarrar com o nosso próprio mundo gerou um dos mais bem elaborados conjuntos de crenças e mitos de que a mente humana já foi capaz. A mitologia grega agrega um código de preceitos, noções e idéias de uma abrangência tão colossal que se digna a conter expressa em suas metáforas e fábulas a própria essência da cultura e pensamento da humanidade. Na contramão deste poder imaginativo que se tingia com cores vibrantes para explicitar a psique humana e seus diversos pontos de contato com os mundos invisíveis através dos medos, deveres e honras, mas ainda assim repleta de uma criatividade belíssima em sua decadência, a idade média foi um eficiente catalisador destas “certezas incertas” que povoam o alegado imaginário humano, mas, com o florescimento das idéias racionalistas e materialistas sobre o paradigma teocêntrico, os temas metafísicos, místicos, ocultos, foram postos de lado pela força e urgência do capitalismo onde a selvageria destes mesmos homens na luta pelo estabelecimento e a manutenção de um status quo não permitiram mais que se desse espaço para conjecturas. Porém, aquele antigo mundo obscuro e assustador continua lá, no íntimo da consciência, e seus rastros podem ser bem definidos na poeira do dia-a-dia dependendo dos olhos do observador.

Existem muitas coisas estranhas e assustadoras ocorrendo nas grandes e pequenas cidades do mundo em nossos dias; escondida sob montanhas de protocolos e miríades de normas burocráticas, um pesquisador voltado para estes temas encontrará, sem sobra de dúvida, vasta coleção de acontecimentos horrendos. Eles são testemunhas mudas e renegadas das vezes em que o insólito se aproxima de nós sem que nem mesmo percebamos. Sem que tenhamos tempo de preparar nossas defesas. São testemunhas também do medo do homem em lidar com as coisas que desconhece e que sua ciência não pode explicar. Como num acordo tácito de alguma espécie de contrato social para o inominável, elas são banidas para baixo, para os porões das instituições onde permanecem esquecidas e temidas como coisas mofadas espreitando de nichos escuros. Ocorreu em Santerez, na América Central, o caso que narro a partir de agora.

II

O telefone tocou por volta das duas horas da manhã de domingo. A policial Marian Montese, grávida de seis meses, atendeu. Devia ser a décima chamada naquela madrugada e ela esperava de todo o coração que fosse apenas mais um dos costumeiros trotes passados pelos filhinhos de papai que estavam em férias na cidade. Naquela época do ano, quando as aulas findavam na capital, o pequeno município se enchia de garotos e garotas repletos de hormônios que não se davam por satisfeitos enquanto não conseguiam fazer mal ou prejudicar alguém com suas brincadeiras. Mesmo assim, Marian, sentindo já as dificuldades que um corpo mais pesado aliado à perda de sono ocasionava, torcera até o último momento para que o sujeito do outro lado da linha fosse apenas mais um moleque cheio de espinhas que gostasse de gemer ao telefone. Nem se preocupou em cuspir fora os sucrilhos com leite que estivera devorando poucos segundos antes. Atendeu com a boca cheia e mal conseguiu pronunciar “delegacia de polícia”. Ouviu em retorno apenas um pouco de estática e silêncio. Desligou sentindo-se aliviada por ter sido atendida em mais aquele seu pequeno desejo e ia dirigir-se novamente à copa quando o telefone tocou novamente.

Do lado de fora do pequeno prédio um vento tímido começara a soprar por volta das seis da tarde e agora tornara-se de uma frieza incômoda passando a uivar nos cantos externos das paredes e por entre as frestas das janelas. Havia apenas um agente de plantão no balcão de atendimento ao público no andar térreo. Lém disso, duas viaturas estavam fazendo ronda pelas ruas mal iluminadas do município.

Ela avançou para o aparelho mais uma vez e antes que pudesse alcançá-lo a campainha silenciou.
“Malditos riquinhos” Pensou. Em sua mente, apenas os filhos dos mais ricos eram capazes de gastar o dinheiro dos pais em ligações telefônicas inúteis numa comunidade carente como aquela. Por outro lado, àquela hora os filhos das classes baixas da cidade já deviam estar todos dormindo encolhidos sob suas cobertas desgastadas após terem passado boa parte da noite ouvindo estórias assustadoras por conta da véspera do dia de todos os santos.

O interfone tocou na parede da porta de entrada; um som estridente e agudo ressonou nas paredes atulhadas de cartazes e lembretes invadindo o silêncio da madrugada como uma estranha profanação. Marian girou nos calcanhares e correu para atender antes que a campainha voltasse a agredir seus ouvidos. Era Esteban, o agente da recepção. Sentia-se solitário e perturbado pela visão que tinha de seu balcão. A entrada do edifícil dava para o início do parque ecológico da cidade; àquela hora uma floresta escura e brumosa.

“Está tudo bem aí?” Disse ele por sobre o barulho do vento.

“Tudo certo aqui no alto. Como estão os vaga-lumes do parque ai embaixo?” Respondeu a agente.

“Ah, engraçadinha! Nem me fale. Esse bosque aqui é de arrepiar!”.

Esteban era novato, viera transferido da capital há apenas três semanas. Não se acostumara ainda com os bucolismos do interior.

“Não se preocupe. No máximo Velásquez, o bêbado do bairro, deverá aparecer pedindo abrigo contra o frio ainda antes das cinco da manhã.” Disse Marian e faz menção de desligar mas o agente da recepção a chamou novamente.

“Se precisar de qualquer coisa me chame, ok? Estarei a noite inteira por aqui!” Disse isso com a maior dose de sarcasmo que o avançado da hora o permitiu, e desligou.

Marian ficou ainda um instante com o fone na mão, depois colocou-o na base e foi até a janela. Do terceiro andar ela podia ter uma visão mais ampla do parque municipal. Era uma imensa área de floresta densa que o governo nacional tombara como patrimônio histórico e desde então passara a preservar da maneira mais natural possível. Ninguém podia entrar a não ser funcionários e visitantes em grupos com hora marcada. A agente sabia da existência de um posto avançado de vigília; uma cabana de madeira embrenhada em algum ponto no meio da floresta e construída sobre os galhos de uma grande árvore. Em algumas noites, quando o tempo fechava de verdade e as estrelas desapareciam do céu, ela podia ver uma tênue luminosidade elevando-se do meio das copas verdes no horizonte; eram as janelas do posto iluminadas por lampiões de querosene.

Por outro lado, conhecia uma meia dúzia de funcionárias da polícia urbana que costumavam ir até lá farrear com os guardas florestais. Ela mesma andara saindo às escondidas com um deles pouco depois de conhecer seu marido, mas antes de apaixonar-se por ele. Mesmo assim se arrependia deveras por nunca ter se embrenhado na mata com o federal bonitão. Agora, casada e com um filho para nascer, esforçava-se para esquecer as brincadeiras do passado e, mesmo amando o companheiro, não reclamar pelas coisas que deixou de experimentar.

O telefone de emergências tocou novamente.

Ela dirigiu-se lentamente para o aparelho em cima de sua mesa esperando que ele parasse de tocar. Mandar viaturas para averiguar denúncias falsas de marginais tentando invadir residências de garotos dentuços era tudo o que ela não precisava em sua última noite de trabalho antes da licença maternidade.

Irritada ela sacou o fone do gancho. “Delegacia de poli...” Tentou dizer, mas uma voz alta e distorcida a interrompeu.

“Aqui é do pos... Estamos... De aj... Aqui!”.

Marion não conseguiu entender do que se tratava.

“Delegacia de polícia de Santerez. Posso ajuda-lo?”.

Mesmo sabendo que devia ser um trote, a agente tinha o dever de tentar obter o máximo de informações sobre toda e qualquer ligação; sobretudo no meio da madrugada.

Os ruídos no outro lado da linha silenciaram de repente. Depois a voz tornou a gritar.

“Ajuda!”

Era uma voz masculina; adulta. E Marian não mais pensou que se tratasse de um trote.
“Enviaremos ajuda, senhor. O que está havendo? Pode falar mais? Se não puder desligue e ligue novamente para eu saber que está me ouvindo. Pode fazer isso?”

Por alguns segundos não houve qualquer sinal de que o outro lado houvesse entendido o que Marian dissera. Depois, no entanto, a voz soou de novo. Era apenas um sussurro mas trouxe com ela a impressão de que algo muito errado estava realmente em andamento.

“Marian? É você?”

“Policial Marian falando. Positivo. Quem é?”

Novamente os ruídos tomaram conta da ligação. A agente olhou pela janela e viu que o vento uivante de outrora dera então vez a uma chuva torrencial.

“...uma coisa horrível... aqui...” Falaram do outro lado. “Ajuda, ajuda! Ibanez! Ibanez!”

Marian sentou-se em sua poltrona. A voz do outro lado da linha era de Camillo Ibanez, o guarda florestal com quem traíra seu marido. Sentiu um impulso de desligar mas, por outro lado, a voz do homem parecia tão desesperada que algo realmente grave poderia estar acontecendo.

“O que há, Ibanez?”

A resposta soou distante e desconexa em meio a um turbilhão de estática. A qualquer instante a ligação iria cair.

“Há mortos e feridos aqui! Precisamos de ajuda!”

“Ibanez, você está no posto do parque? Confirme!" Marian percebeu que estava quase gritando sem querer. Seu coração saltara com a última informação.

“Ibanez!” Gritou ela. Está no parque? No posto de observação? Confirme por favor!

“No posto! No posto!". A voz desesperada de Ibanez causava arrepios em Marian.

“Você precisa me dar mais informações!”

“Mande socorro, merda!”

“Ibanez, aguarde na linha!”

O desespero de Ibanez tomara conta da agente. Trêmula, ela pegou o rádio comunicador.

“Todas as viaturas! Ocorrência com vítimas no posto de vigília no interior do parque municipal. Entendido? Confirmem!”

De algum ponto longínquo o rádio respondeu. Eram Castro e Gutierrez.

“Central, confirme o local da ocorrência, por favor?”

“Parque ecológico municipal, posto de vigília!” Gritou Marian. Estou com um dos guardas na linha. Algo grave aconteceu por lá. Confirmem!”

“Entedido. A caminho!”

Marian largou o rádio e retomou o telefone. Estava desligado. No mesmo instante o interfone chamou novamente da porta de entrada da sala. O som abrupto do aparelho, que antes apenas incomodava e irritava, agora lhe provocou um grito de pavor. O mais rápido que pôde ela se dirigiu até ele mas, antes de atendê-lo, um calafrio percorreu todo seu corpo.

A voz calma de Esteban quase soava como um alívio para toda aquela tensão.

“Olá, Marian!”

Ela o interrompeu.

“Esteban. Há algo acontecendo no parque.” Estou monitorando a vítima e as viaturas agora. Enviei todas para o interior da floresta. Tudo bem aí embaixo?”

Neste momento o rádio comunicador soou em cima da mesa com um ruído agudo e áspero que espalhou a voz terrível do guarda florestal por toda a sala deserta. Estava mais nítida agora.

“Marian!” Gritou Ibanez de seu posto de observação no meio da floresta.

“O que há com este parque hoje?” Perguntou Esteban no interfone.

“Esteban, o que quer dizer? Aguarde, por favor!” Pediu Marian.

“Marian!” Gritou a voz desesperada no rádio amador. “Eles saltaram das sombras das árvores. Marian!!!”

“Você não sabe da maior!” Disse Esteban do andar térreo.

“Esteban, tenho que atender o rádio! Aguarde!” Gritou Marian.

“Eles são... Como feras! Mataram os homens! Não sei para onde foram. Desapareceram!” Berrou a voz no rádio.

Marian soltou o interfone e correu em direção ao outro aparelho agarrando-o com toda força. Sentiu uma fisgada forte no abdome.

“Ibanez! Repita por favor!”. Gritou ela.

“Eles saltaram da escuridão depois do por do sol e nos atacaram. Acho que são como animais! Sorveram o sangue dos outros guardas.”

No interfone, largado fora do gancho e oscilando de um lado para o outro na parede, Esteban chamou.

“Marian, olá!? Há três sujeitos parados do outro lado da rua aqui embaixo! O que devo fazer?” Disse ele mas só conseguiu ouvir como retorno a voz distante da colega falando no rádio amador.

"O que você está dizendo, Ibanez? Não entendo! O que houve?” Gritou a agente.

“Eles são muitos! Não sei quantos são! Peça reforços imediatamente! Não são pessoas normais!”

“O que?” Disse Marian começando a ter os sentidos entorpecidos pela loucura que presenciava.

“Sabe o que é engraçado, Marian?" Disse Esteban ao interfone pela última vez. "Estes caras saltaram de dentro do parque e simplesmente estão parados lá fora.” Mas não foi ouvido.

“As viaturas chegaram! Vou descer...” Disse Ibanez no rádio amador. Mas Marian não lhe deu mais atenção. Havia um barulho estranho vindo do corredor. Eram como silvos, sibilos de serpentes que avançavam até a sala vindos do elevador e das escadas.

A agente correu até o interfone. Estava mudo.

“Esteban! Esteban! Está me ouvindo? O que houve ai embaixo?”

Mas o policial não respondeu. Não havia, naquele momento, mais ninguém na recepção do prédio. Havia apenas um cadáver exangue que era arremessado pelas paredes por seres de pesadelo que saltaram abruptamente das sombras do bosque e avançaram ferozes para a cidade adormecida.

Marian soltou o interfone ouvindo estalos na madeira da porta misturados a rosnados furiosos que vinham do lado de fora de sua sala. Era como um bando de cães raivosos que, de repente, invadissem a central de polícia.

Naquele momento, daquela mesma forma surpreendente, centenas de outras famílias da cidade já haviam sido chacinadas; massacradas por uma força sobrenatural que tomara formas humanóides naquela noite fria de inverno e se esgueirara para fora de lugares escuros nas profundezas das matas. Muitos cidadãos de santerez, em desespero extremo, ainda conseguiram chegar aos seus telefones mas somente para descobrir, no último instante, que eles estavam mudos.

Marian não conseguiu sacar sua arma; nem pôde lutar por sua vida e pela de seu filho. Não houve tempo para tentar fugir quando as janelas do escritório estouraram deixando entrar o ar frio da madrugada e um grupo feras assassinas enlouquecidas pelo cheiro do sangue da criança que a agente carregava em seu ventre. Naquele momento seu marido, Tomás, já estava morto assim como todo o restante de sua família.

Não houve mais nada além de sofrimento nos últimos minutos de vida de Marian Montese. Ela não viu as hordas tenebrosas que saltitaram para fora do parque e marcharam rumo ao centro da cidade; não pôde alertar ninguém para o que estava ocorrendo e também não teve tempo de chorar por seu filho. As criaturas, ao contrário, tiveram todo o tempo necessário para agir ao seu bel prazer com as vidas que tomaram naquela sala do terceiro andar. E ficaram à vontade para se servir de tantos quantos encontraram naquela noite terrível.

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