VAGANDO PELOS CAMPOS DEVASTADOS
Paulo Soriano
Vagar pelos campos devastados pela fome, esmolando aqui e furtando acolá, é tudo o que me resta. Houve um tempo em que me eram bem-vindas a sedução e a beleza quase asfixiantes dos vales lindeiros ao Minho. Hoje, já não me comovem os meandros do belo rio. Como sempre, ele cumpre, pachorrentamente, a sua sina, quase silencioso e sempre muito mais traiçoeiro que profundo. Mas ainda me banho em suas borbulhas e afogo a minha sede na frescura de suas águas.
Há uma senda que serpenteia da cidade de Ourense à vila dos Coutos, margeando o rio como se fora uma sombra sórdida. Nestes tempos de muita fome, a vereda é quase deserta; mesmo assim, é caminho obrigatório para os que finalmente capitulam e abandonam os campos mirrados, escoando como regatos em busca do mar e das caravelas do Novo Mundo. É em sendas como esta que os vagabundos de minha espécie, que sobreviveram à peste e ao abandono, perambulam, lançando mão da sagacidade ou da lascívia para colher migalhas dos emigrantes.
Antes de morrer, vergada à fúria da peste, que vitimara meu pai e meus irmãos, minha mãe me dissera:
- Não passas de uma garota. Protege-te bem. Bem difíceis emergem os tempos que virão. És livre para esmolar e furtar. Mas não mates. E nem faças de teu corpo serventia de mancebos obscenos. Que em tua bolsa não tilinte moeda de fornicação. Toma em tua mão o que te servirá de escudo. Não deixa de ser uma espécie de amuleto eficaz. E, se procederes conforme minhas instruções, estarás de todo e para sempre protegida em tua honra.
Eu escondera as minhas roupas sob o peso duns pequenos seixos, removidos dentre as raízes de um velho álamo, quase à margem da vereda. Mas, ao retornar, depois de um demorado mergulho, notei que minhas vestes haviam desaparecido. Quem as furtara - soube pouco depois - fora um rapazote quase imberbe - feio e maltrapilho-, mas armado de adaga. Ele agora admirava, com enorme curiosidade e maior ainda excitação, o meu formoso corpo, completamente molhado e nu.
- Dá-me de volta as minhas roupas! – gritei.
O rapaz fez pouco caso de mim. Sorria-me como um néscio, mas havia volúpia em seus olhos de raposa.
- Dá-me logo de volta! – insisti, exasperada, agachando-me e escondendo os seios com os braços dispostos em cruz de Santo André.
- Sim! – disse-me o rapaz. - Dou-te sim. Mas, tudo tem um preço... Quero-te. Abre-me as pernas.
O rapaz sorriu uma fileira de dentes brancos e irregulares, resfolegando de lascívia.
- Tira logo a tua roupa, rapaz – disse-lhe finalmente, estirando-me de costas na grama e abrindo bem as pernas. Naquele momento, não houve como impedir o assédio angustiante da imagem de minha mãe moribunda.
O jovem avançou sobre mim, pondo abaixo os calções com a ansiedade de um lunático, e prestes a ejacular. Penetrou-me como um raio e, imediatamente, estremeceu. Quando, arquejante, abriu os olhos, consultando feliz o instrumento de seu sucesso, viu que todo o púbis estava encharcado de sangue. Perguntou-me, então:
- Estás naqueles dias?
- Não, não estou.
- Então, donde vem tanto sangue?
- De tuas veias, evidentemente.
Quando o jovem verificou que tinha o pênis mutilado, urrou como um animal ensandecido. Cessada a excitação, somente agora experimentava a dimensão da dor dilacerante.
- O que tu fizeste comigo? – gritou o jovem imberbe. – Que fizeste comigo, ó puta dos demônios?!
Não respondi, deixando o rapaz embeber-se de sangue e pânico. Nas águas do Minho, limpei cuidadosamente o fragmento de lâmina de navalha, antes de acomodá-lo, novamente, na abertura de minha vagina.
Vagar pelos campos devastados pela fome, esmolando aqui e furtando acolá, é tudo o que me resta. Além da honra imaculada de senhorinha casta...
2 comentários:
Um conto afiado e sangrento, breve e intenso... Grotesco.
Outro insofismável mestre da Litfan contemporânea! Soriano copnduz a pena com a maestria dos gigantes! Conto que rutila no terror intenso!
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