A MALDITA CHOUPANA DOS DELÍRIOS
Rogério Silvério de Faria
(Um conto de Terror Delirantista e Fantasia)
Foi escrevendo amarguradamente seu livro que nunca seria publicado, lá naquela choupana afastada, perto do Pântano da Coruja Corcunda, que Terêncio verificou com assombro que as ígneas forças criativas de seus delírios eram melhores que as forças imanentes do destino, destino que os Deuses Sombrios forjaram e lhe infligiram ainda no útero aquoso de sua mãe, hoje falecida como uma rosa pisoteada pelos cascos de fogo do cavalo da morte.
Filho de uma família de proletários desiludidos refugiara-se como poeta que era nos sonhos e devaneios cheios de aventuras insólitas, ao completar seu quadragésimo primeiro ano, após anos de fracassos e tribulações no insosso palco da vida cotidiana
Terêncio era sincero, sensível e incompreendido, e quando mostrava a alguém da vida prosaica seus escritos fabulosos, esse alguém o chamava de louco, néscio ou lunático.
Tentara ser feliz no amor. Amou por doze meses a bela e virginal Dandara, mas esta, catequizada pelos maledicentes e detratores de Terêncio, sucumbira nas areias movediças do ciúme, e desde então o solitário viu a alma e o amor de Dandara evaporar como o perfume dourado dos cabelos de Afrodite, deusa-mãe dos amantes e dos poetas malogrados.
Terêncio era um sujeito desajeitado para as coisas prática da vida. Seus mundos eram aqueles dos devaneios criados após leituras e mais leituras de livros antigos e estranhos, nos espaços interestelares das linhas e entrelinhas.
Certa tarde triste de outono, ao crepúsculo, sob fina garoa, Terêncio largou tudo, sua vida e seu destino, refugiando-se como valente eremita no Pântano da Coruja Corcunda, e lá tentaria pintar com palavras o desassossego de não poder sonhar acordado sem culpa, bem como a vitória que era ingressar e viver e contar a todos a beleza do mundo maravilhoso do delírio, as aventuras dos devaneios mais loucos e febris. Escreveria um livro, portanto. Um livro maravilhoso onde todos os sonhadores do mundo pudessem beber o licor sagrado das palavras esfuziantes e alucinógenas, tecidas no manto crucial do delírio poético.
Passou a comer apenas mel e gafanhotos, bebendo a água tépida de um córrego que descia rumorejante e límpido do morro até o pântano onde estava a choupana.
A angústia de um homem terrivelmente solitário e triste diante do absurdo da condição humana, é cruz que se carrega com denodo, mormente os poetas que não enterraram seus sonhos no cemitério dos dias sempre iguais.
E Terêncio escreveu febrilmente sobre os delírios que tinha, desde tenra infância, quando era uma criatura feliz e sem medos. E chorou por duas noites porque vira que o seu mundo não era aquela podridão asquerosa que tentaram lhe impingir quando se tornara adulto na vida física, numa cidade cinzenta onde apenas se conjugava os verbos comprar e vender.
Houve uma noite na solidão aterradora daquela choupana em que Terêncio escreveu tanto em seu caderno, mas tanto, tanto... Que ele viu que sua obra era um romance autobiográfico, e ele, Terêncio, foi transportado como um anjo sobre nuvens douradas num céu plácido de estrelas de luzes iridescentes que o acalmavam tanto quanto o olhar hipnoticamente amoroso de sua já morta mãe, quando ela o embalava no colo, nas noites escuras da infância onde a fome roia toda a família de poucos recursos, naquele bairro cinzento nos arrabaldes da cidade sem esperança.
Foi transportado em vida, isto é, foi levado da vigília para o delírio. Uma assunção terpsicórea e alucinante, uma subida ao mundo delirante sem fronteiras.
No último delírio em que se perdeu Terêncio atravessou o estranho mundo de Swyrnea. Swyrnea havia sido criado por um outro poeta delirante e febril, habitante de longínquas e acres terras de Pindorama.
Foi muito além de Swyrnea que Terêncio conheceu Shyrla Máris, em Kthunbulkthur, reino vizinho da Swyrnea.
Filha do mago Sorianus de Klapanthyzyr, Shyrla Máris fora raptada por Kolga Salba, o mago viajante interdimensional, e somente Terêncio, o ungido, o valoroso campeão escolhido, poderia salvá-la das garras do mago negro, versado na Ciência da Serpente do Descenso, nascida do pus das sete chagas da cauda do Demônio.
Bebendo na cabaça sagrada a seiva violácea das árvores mortas de Krizumne, plantadas no Bosque dos Sátiros Mancos, e com ajuda da Magia Luminosa de Soranius, Terêncio despertou seu verdadeiro ser delirante, e então assumiu seu nome verdadeiro, Asariel Wareh Kareh, guerreiro e mago neófito das Hostes da Luz. Asariel Wareh Kareh, portador da magnífica espada flamejante!
Com a ajuda de Soranius e seu discípulo favorito, o inquieto Hevahrystus (ambos os poetas que sonhavam acordados no mundo da vigília, mas que eram magos e guerreiros no mundo do delírio, e, portanto profetas da Magia Luminosa), todos partiram na grande aventura em busca da princesa raptada, Shyrla Máris, a virgem de olhos cor de âmbar e seios tentadores, princesa cujo encanto faz sonhar até mesmo os demônios mais ferozes do Inferno. Shyrla Máris, aquela cujos olhos lembravam os doces olhos de Dandara.
No caminho encontraram o andarilho Lion Nardus, delirante também do mundo dos acordados, sempre empunhando um machado de guerra cuja lâmina não brilhava mais que seus olhos negros. Também encontraram a valente amazona Déia Thuam, hábil no arco e flecha, e a feiticeira do Bem Magna Victória. E então seguiram todos até a fortaleza de Kolga Salba, no topo enevoado da Montanha da Serpente do Descenso.
Montados em seus voadores Yrazakzais, animais meio libélulas meio cavalos, com rostos de leões mansos, eles chegaram até a fortaleza do misterioso e temido mago negro Kolga Salba.
Asariel Wareh Kareh e seus amigos guerreiros lutaram contra os homens-morcegos Drynomaths, fiéis servos de Kolga Salba.
A batalha foi cruel e decisiva. Asariel quase chorou quando viu morrer Lion Nardus e Hevahrystus sob as garras e caninos dos terríveis e fétidos Drynomaths. Lion Nardus e Hevahrystus talvez tivessem perecido porque foram abruptamente interrompidos em seus devaneios, em suas casas, no mundo da vigília... mas também podem ter morrido subitamente na vida física, o que de fato era desastrosamente a mesma coisa. Lion Nardus e Hevahrystus morreram na batalha, não sem antes matar vários homens-morcego. Fim igualmente triste tivera Déia Thuam, que também não morreu sem antes fincar flechas no coração apodrecido de dúzias de Drynomaths. Magna Victória, todavia, mesmo ferida, viveu para entoar preces aos Deuses Luminosos até o fim de seus dias nas Terras Delirantes.
No final, houve a batalha mística entre a Luz e a Sombra, Sorianus versus Kolga Salba, e este último, ferido de morte pela Magia Luminosa emanada do cetro místico de Sorianus, enveredou por um dos portais interdimensionais, e hoje o feiticeiro se refugia no Mundo dos Pesadelos, jurando voltar para vingar-se de todos.
Por vinte anos Terêncio ou Asariel Wareh Kareh viveu ao lado da princesa dos olhos cor de âmbar, filha de Sorianus, o sábio de hirsuta barba. E houve muitas festas nos reinos delirantes. E o vinho azul do reino de Kthunbulkthur foi servido a todos. E toda manhã, quando Terêncio acordava de seu delírio, anotava e escrevia febrilmente sobre tudo o que ocorrera durante os devaneios.
Eram trechos e mais trechos narrando suas aventuras nos devaneios, como Asariel nas dimensões alucinógenas de seu ego mais sombrio e delirante.
* * *
Dez malditos anos se passaram antes que, num dia de forte chuva, um aventureiro, certo poeta perdido e solitário de nome Stephen Passioncraft, encontrou a choupana abandonada perto do pântano; em seu interior havia várias ossadas humanas além do próprio esqueleto de Terêncio (vestido com andrajos puídos de tonalidade ambarina), este sentado espartanamente com uma caneta na mão diante de um caderno amarelecido sobre uma escrivaninha coberta de pó e teias de aranhas.
Stephen Passioncraft arregalou os olhos de terror, pois reconhecera pelas vestes (um dólmã verde) num dos esqueletos o seu amigo nefelibata Júlio Leófitas, do qual supunha que havia morrido nas selvas escuras de Madagásgar.
Stephen derrubou da cadeira o esqueleto de Terêncio e sentou-se a ler o manuscrito, e entusiasmado, empunhou a caneta e continuou as aventuras delirantes nos mundos onde hoje reina soberano o príncipe regente Asariel Wareh Kareh, ao lado da filha de Sorianus , a princesa Shryla Máris dos olhos cor de âmbar.
E Stephen, depois de compreender que o delírio é uma benção mas também uma maldição, escreveu até cair morto de fome e cansaço, como ocorrera com Terêncio e os mil e um poetas delirantes que, cansados do tédio de uma vida insípida, refugiaram-se na choupana, e portanto nas Terras Delirantes, onde ainda vivem como guerreiros ou magos ou bardos errantes.
A maldita choupana dos delírios continua lá e continuará para todo o sempre, pois é sabido que continuamente haverá uma legião de poetas enlouquecidos de dor e solidão em busca de aventuras no mundo barbaramente perfeito que só o delírio pode criar, poetas enlouquecidos e solitários como este que acabou de escrever este estranho e insólito conto-delírio.
2 comentários:
Este conto do Rogério é muito bom. Gostei muito do estilo mágico que move o personagem, quer dizer, a magia retratada aqui na verdade só existe na cabeça do personagem. Mas é interessante imaginar um homem, sozinho, numa cabana isolada, em lugar ermo no tempo real, enquanto a sua mente divaga totalmente absorta pelos delírios que acomentem... um mundo que é só dele e pelo qual o absorve totalmente. Delirante mesmo!
E viva o Pântano da Coruja Corcunda!
www.rogsildefar.tk
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