O caboclo Bentinho era homem de coragem. Ah, era sim! Não havia vivente, neste mundão de meu Deus, que botasse dúvida de sua macheza na frente das fuças dele. Não senhor! E matador também! Sim! Pois não se criava encrenca braba que o cabra da peste não resolvesse na ponta da faca, que vivia de levar amarrada no cordão da cintura. Nas suas costas já se botava por riba uma boa dezena de desafetos que ele tinha mandado desta pra melhor. A fama do homem corria longe! Muito além das terras que faziam fronteira com a pequena cidade de Itaúba, aonde ele morava, no meio do sertão agreste, contavam-se os causos de sua valentia. Era assim o caboclo Bentinho: não tinha medo nem de homem, nem de bicho e, dizia-se “inté”, tampouco de assombração!
Bentinho e o folclore em torno de sua figura só tinham rival em outro sertanejo de igual fama conhecido como “Tonhão dos Espíritos”. Deste, então, pouco se sabia a não ser que tinha parte com o Demo, o Capeta, o Coisa Ruim! Vivia isolado numa casinha esturricada, feita de madeira velha e escura, sempre vestido de paletó e calça marrom surrados pela poeira acachapante dos ventos que esmerilhavam os elementos naturais da caatinga. Mas não era Tonhão um capiau qualquer. Não senhor! Era homem versado nas letras dos cafundós dos infernos porque a criatura falava com gente morta através dos papéis. Ô se isso lá era coisa de gente certa!
Um dia, diz que a mãe de Bentinho, de quem o “maledito” puxou a ruindade, bateu a “caçuleta” sem aviso, de supetão, coisa de coração cansado que pede sossego pelo avanço da idade! Da boca do povo corria o cochicho que a velha já ia tarde. Ninguém gostava dela porque a cobra coral carecia de freios na língua e falava mal de todo mundo. Ela “derriçava” o cacete nos animais e nos empregados da fazenda fácil, fácil, assim, sabe, como quem joga lavagem pra porco. O baque da morte da “santa” mãezinha pro coitado do Bentinho foi grande. Ah, se foi! Ficou o homem inconformado de um tal jeito que, mal o corpo da defunta tomou gosto dos bichos da terra, veio ele ter comigo antes da lua fazer assento naquela fatídica noite, cheia de acontecimentos, que ainda me acompanham por onde vou neste sertão sem porteira.
— Vadico, quero que vosmecê me leve inté no cafua do Tonhão dos “Espríto”.
— Oxênte homi! Vosmecê tá de miolo mole, é? Abilolou de vez? Aquilo lá tem parte com o cão!
— Arre égua, deixe de sê abestado, homi! E eu lá tenho medo de lidá com criatura bisonha feito ele? Minha santa mãezinha finou-se num repente. Não deu tempo de nada, visse? Não chegou a dá o último suspiro, a pobre coitada! É capaz que ela teja percisada de alguma coisa lá do outro lado, né? Diz que o Tonhão é de falá com quem bate a “caçuleta”! Pois então?
— Deixe de sê cagão homi! Diz que vosmecê é dos “pouco” que conhece o caminho inté lá. Se vosmecê não vai, vosmecê tá me fazendo uma desfeita! E homi, mesmo sendo amigo meu, que me faz uma desfeita, eu deito a faca no “gorgomio” sem dó nem piedade!
Pois, então, foi assim que Bentinho me deu o convencimento de ir ele mais eu, cada qual encarapitado no seu jegue pachorrento, pras profundas da caatinga, em noite escura que nem carvão. Depois de umas tantas horas, já de destino certo e, enveredando por trilhas e atalhos, num sobe e desce da cachorra, calhou a gente de ver, ao longe, a moradia do “malacabado” filho do Tinhoso. A luz tremelicante de vela a mercê do vento, que se escapava das gretas das paredes pregueadas do casebre, batia nos olhos da gente como uma parecença de farol maligno dentro do negrume da noite! Eita visão “dos inferno”! A vontade que me deu era “carcá” dali rapidinho que nem calango que foge de caboclo morto de fome. Olhei pra “peixeira” escorrida no lado do Bentinho e desisti do pensamento.
Mal invadimos a mangueira do casebre sombrio, Bentinho não contou passo. Desmontou do seu jumento raquítico e mandou pernas na direção da porta de entrada do cafua do Tonhão! Não chamou o vivente pelo nome, tampouco bateu palmas pra se fazer anunciar. Empurrou a entrada do batente e mergulhou lá dentro, emproado, que nem galo quando faz presença pra galinha nova! E eu, na cola dele, fui junto, não com a mesma empáfia porque sou criatura de paz, temente a nosso senhor Jesus Cristo!
Cruz credo! Não conhecia o cabra de presença porque dele só ouvira falar “estórias”! E, de fato, como se dizia nas conversas, o homem mais parecia um cão chupando manga de tão feio. O ambiente funesto do cômodo escuro, a vela de chama tremeluzente próxima dele, mais as folhas de papéis em desalinho, por todos os lados, não lhe faziam melhor a figura. De começo, após nossa entrada de supetão, ele não nos deu atenção, ou fez que não viu, não sei dizer. Bentinho tomou aquilo como uma afronta. O porquêra pigarreou forçando o barulho de engasgamento de quem puxa catarro pra limpar o “gorgomio” e cuspiu no chão de madeira tosca da sala. Os olhos negros, da cara amassada e empalamada de Tonhão, que estavam de pouso nos papéis por cima da mesa, tomaram prumo e buscaram nossa direção. Só da mirada que o caboclo me deu veio um sopro de frio forte que me arrepiou todo o corpo, dos pés a cabeça!
— Tonhão, comi muita poeira nestas estradas pra mode de vosmecê me dizê cumé que tá a minha santa mãezinha que bateu a “caçuleta” não faz nem cinco dias! Quero sabê se a pobre tá percisada de alguma coisa?
A vosmecê que me ouve, não sei direito como explicar o acontecido. Tenho pra mim que Tonhão já devia de tá de conluio com o Sacripanta, em meio d'algum tipo de ritual, porque assim que Bentinho deu intimação, ele começou a rabiscar a folha de papel num apressamento desatinado, os olhos se fugiram pra não sei d'onde e, por pouco não me borrei nas calças, quando ouvi a voz espremida e roufenha, da velha Antonha, mãe de Bentinho, saindo da boca da criatura molambenta!
— Fio... meu fio... Bentinho... meu menino... Eu já tava te esperando! Tô nas profunda dos inferno e não tô gostando nadica de nada desse diacho de lugar! Vosmecê tem que me tirá daqui, meu fio!
— Meu fio, meu menino, já fiz um “combinado” aqui com o Belzebu, só que vosmecê tem que me ajudá!
Naquele exato momento Tonhão do Espíritos começou a se estrebuchar. Vixe Maria, mãe do céu! O homem ficou feio! As mãos que bolinavam o papel pareciam querer abandonar o serviço da escrita exigido pelo “Bode Preto”. Deu dentro das minhas idéias, assim, sabe, no meu jeito de pensar que o traquinas “malacabado” tava num esforço “pra mode” de se livrar do encosto maligno... mas não tava conseguindo, não! Daí, vosmecê que me dá ouvidos nessa minha contação do fato “assucedido”, vai bota dúvida no que eu vou te contar agora. Mas te adianto que não sou cabra dado a mentiras e nem invencionices, não! Pode acreditar! Por riba da cabeça do Tonhão começou a se formar uma nuvem empanturrada, meio “escurecente”, tal qual se “assucede” no começo das tempestades brabas, quando no raro, acontecem por aqui! E dentro da sala, veja vosmecê! É isso mesmo! Uma nuvem dentro da sala, homem do céu! Vosmecê acredita nisso? Mas espere que o pior mesmo vem por aí. De dentro da nuvem começou aparecer um mundaréu de criaturas medonhas que, decerto, vinham das profundas. Um arrepio me cutucou forte a espinha de baixo pra cima que nem choque elétrico!
As criaturas bisonhas se misturavam as carnes ou estavam ligadas umas nas outras, homens, mulheres, morcegos, esqueletos humanos, bichos que não dei conta de atinar, todos mal formados, um por riba do outro, o outro por riba de um. Olha, era uma misturança que fazia “inté” mal pros olhos do vivente. Nunca vi daquilo, nem em pesadelo se vosmecê quer saber. E no meio daquele mafuá das profundas, entre almas e demônios, num é que apareceu as fuças da velha Antonha, estampada no bucho do Bode Preto. Vixe Maria, mãe do céu! Foi nessa hora que, por pouco, quase arriei os intestinos ali mesmo! Quis me escafeder dentro do pretume da noite, mas meus gambitos fizeram birra! De lá de riba a cobra coral mandou recado pra Bentinho botando minhoca na cachola dele.
— Fio, o Belzebu me aprometeu que se vosmecê sangrá, esfolá, matá de morte bem matada, pra mais de 30 cabras, ele vai me devolvê pra vida de novo! Olhe só, meu fio! O gramuião me faz vivê de novo! Ele bota minha alma no corpo outra vez!
— Oxênte, se não tenho! E tem de sê pra ontem, meu fio. Pode começá com o Tonhão aí, esse fio duma égua parideira, que não tá fazendo gosto d'eu proseá com vosmecê, fio. Mata ele! Mata! Cutuca a peixeira velha no bucho desse empalamado! Mata ele!
Não deu tempo de nada! Foi como o pensamento! Bentinho, esporeado que nem galo de briga, correu com a peixeira na mão mergulhando por cima da mesa e, num corte de banda, sangrou o “gorgomio” do Tonhão dos Espírito que, emborcou de cabeça, virado de pernas pro ar, o desenfeliz. Bentinho não parou o serviço encomendado, não! O sangue velho espirrou pra tudo quanto foi canto. Eu vi! Vi sim! Vi com os olhos que esta terra há de comer! Enquanto Bentinho golpeava o corpo estrebuchado do outro estatelado no chão, lá de riba, dentro da nuvem, as criaturas dos infernos se agitavam e se moviam que nem um amontoado de cobras ao redor do Tinhoso que levava a cara da velha Antonha pregueada no bucho. Ela se ria alto, feliz, que nem passarinho preso que foge da gaiola, a desgramada. E, de repente, os olhos negros dela caíram por riba de mim. Ai, ai, meu Senhor Jesus Cristo. Senti que a coisa ia ficar mais preta ainda! Um sorriso murcho da boca chupada da velha me estremeceu o prumo e quase desmaiei!
— Bentinho, meu fio! Esse aí já se foi. Larga dele! A alma já desencarnou e tá vindo pra cá! Agora, pega aquele estrupício lá, ó. Vadico é fuxiquero! Estripa esse desgramado, fio d'uma porca, tumém!
Daí pra diante pouca coisa posso dizer. Não sei o que foi que deu no meu amigo Bentinho, meu compadre, meu parceiro de traquinagens da infância. Ele se levantou num pulo e virou-se pra mim. Não disse palavra, mas os olhos dele diziam: vosmecê vai morrer cabra! Eu que não sou bobo nem nada, não pedi explicação, nem misericórdia. Não senhor! Tomei o vão da porta escancarada pra noite e deitei cabelo pra fora do casebre do Tonhão! Deixei o meu jegue na mangueira e “garrei” o mato da caatinga, sem olhar pra trás. Enquanto corria desesperado, caindo e levantando, ainda podia ouvir o riso da velha Antonha azucrinado os meus ouvidos.
Ninguém, que sobreviveu àquela noite, esquece da tragédia. Não se comenta, mas ninguém esquece. Corri até a cidade. Fiz o maior barulhão que já se tinha visto na história daquele povo. Eu berrava alucinado, nas ruas empoeiradas de Itaúba, que Bentinho vinha “estripá” gente de bem pra resgatar a velha Antonha dos infernos. Muitos fugiram, outros não acreditaram e um grupo se armou de facas e armas de fogo pra esperar o “maledito” nos limites fronteiriços da cidade que levavam ao casebre de Tonhão. Foi assim que vimos o Bentinho, acompanhado da velha Antonha, desenterrada, apodrecida e amarrada no meu jegue. Quando ele desmontou do seu quadrúpede, a faca rombuda e os olhos do cabra tomaram brilho dentro da noite. Não fizemos muxoxo. Começamos a atirar! Os animais de carga e a velha desempacotaram-se no chão, mas Bentinho, não! O homem tava de corpo fechado pelo Capeta de uma tal maneira que nem bala entrava na carcaça do vivente! Ele berrou e correu pra cima de “nóis”. Eita que foi um Deus nos acuda, um desespero sem tamanho! Era gente espalhada correndo pra tudo quanto era canto! Quem corresse mais chorava menos porque Bentinho ia passando a faca em todo mundo. Era no pescoço, nas costas, nos braços, nas pernas... vixe, foi uma gritaria que se ouviu de longe, que serviu de aviso para quem estivesse na cidade que tratasse de tomar providência de arrumar as trouxas e picar a mula! Na confusão, o caboclo que Bentinho não lanhava uma boa ferida pro resto da vida, morria estrebuchado, segurando as tripas no meio da caatinga. Olha esta cicatriz aqui nas minhas fuças. Não nasci zarolho, não! Foi ele que fez!
Bem... vou dar o “causo” por terminado porque não tenho mais o que dizer. Esta “estória” que eu te contei já vai há muito, sabe? Jamais voltei a botar os pés lá pras bandas de Itaúba, mas estou bem informado do que acontece naquele “eitão” de terra! É verdade! O Belzebu, o Demo, o Coisa Ruim, o Bode Preto, faz questão de me deixar inteirado a quantas anda o combinado dele com a cobra coral. Em algumas noites, escuras que nem carvão, me bate um encosto maligno, fico em transe, assustando os meus amigos, meus filhos e parentes. Nestas horas, sou tomado pelo sentimento de desespero de alguém, vítima de Bentinho, que não conhecendo a região, acaba estripado e abandonado pra morrer sozinho dentro da noite, em meio a caatinga. Então, vejo claramente, pelos olhos do agonizado que se esvai em sangue, o casebre isolado e lá no vão da porta, alumiada pelas velas tremeluzentes, alcanço com a vista boa, escorada no batente, a figura apodrecida da velha Antonha sorrindo seu sorriso mucho e me dizendo:
O barulho da bola estourando se espalhou na sala. Adoro goma de mascar. A tosse sacudiu o peito do velho sentado na poltrona, o peito chiava enquanto eu apenas observava o corpo carcomido pela idade estremecer. Após alguns minutos, a sua mão magra estendeu-se e me chamou: Quantos anos minha filha? A velha pergunta. Vinte, respondi sabendo que meus olhos desmentiriam, mas isso de fato não importava, nunca importa para eles. Mais uma vez me estendeu a mão. Meu chiclete ainda estava doce quando grudei na mesa de mogno ao seu lado e sorri, o sorriso é fundamental para gerar a confiança. Cheguei perto do homem e senti o cheiro dos antibióticos, primeiro a grana vovô... O velho também riu, mas a tosse mais uma vez o sacudiu todo, quando apontou para um envelope sobre a mesa. Peguei sem conferir. A sala estava escura, apenas algumas velas iluminavam o lugar. É bonito aqui, você vive sozinho?, perguntei, enquanto meus saltos plataformas ecoavam no assoalho amadeirado e eu sujava meus dedos nos livros acumulados de poeira. Não te chamei para conversar menina, venha cá, mais uma vez o peito chiou ameaçadoramente. Quanta velharia! Era chegada a hora e, sorrindo, me aproximei do velho. Calma vovô, dei uma risada que perdeu-se nas sombras e nos acessos de tosses que de vez em quando interrompiam o silêncio... Passaram-se algumas horas, na parede, um relógio antigo avisava que a madrugava se anunciava quando fui para os fundos da casa.
Diogo estava parado em frente à parede, um quadro maldito, Christine. O maior tesouro desse cofre é um quadro bizarro... Diogo era bonito, os cabelos levemente grisalhos, o ar de respeito que muitas vezes me salvara. Um advogado decadente, cujos conhecimentos me fizeram a herdeira de milhões. O quadro é realmente bizarro, horripilante seria o termo correto para ele. A primeira vez que senti sua força insana foi quando a moça da galeria veio para avaliação. Ficou parada em frente ao quadro, parecendo hipnotizada, quando me olhou, seus olhos revelavam certo asco, não, não servia para a galeria. A polícia ficou intrigada com a sua morte, mas a presença de duas testemunhas e do exame do corpo revelou que fora apenas acidente, ela tropeçou na dobra do tapete e bateu com a cabeça na mesa, o sangue jorrou ate ser absorvido pelo assoalho amadeirado. Quando os médicos chegaram ela já estava morta. O fato de eu ser apenas uma jovem herdeira, órfã no mundo ajudou a eliminar qualquer suspeitas. Na minha nova situação, o que mais me agrada é o olhar penalizado dos que me cercam. Pobrezinha, sozinha agora. A neta que ele tanto procurou foi encontrada.
Eu? Eu sou a pobre menina rica, a papelada encontrada no cofre pelos advogados quando o velho morreu de um infarto fulminante, revelou que finalmente ele havia encontrado a neta perdida. Pobre homem, noticiaram os jornais, morrera sem conhecer a neta. Pobre menina, dizem de mim, órfã e milionária, disfarçando a inveja no olhar. Sozinha no mundo. Mas não estou só, Diego está comigo, sua devoção me enerva, mas tem sido útil tê-lo a meu lado. O quadro está exposto na sala, por alguma razão pérfida, eu o quis ali, onde posso vê-lo. Há boatos sobre sua origem, os curadores não encontraram registro sobre o pintor. Agora está na nossa casa, evito ficar sozinha com ele, mas constantemente, quando enfim desperto de um longo sonho, me vejo parada perante o quadro, sentindo minhas forças sumirem e só penso em dormir...
...
Ah, horror horror... O quadro é maldito, cada vez mais Christine se distancia de mim. Um quadro bizarro! O maior tesouro do velho era apenas um bizarro quadro, exposto na parte mais escura do cofre, de forma tal escondido que quase não o vi. Mas o que sei eu? Acaso sou critico de arte? Apenas sei que as mais horrendas são as que mais valem e assim devia ser com estes traços mórbidos que algum artista encharcado de alucinógenos pintou numa noite maldita. Ah, se eu soubesse o que hoje sei. Só sei que meus olhos tremeram quando cheguei bem perto daquela coisa. Talvez a loucura já estivesse comigo naquela noite, quando senti os olhos fixos do homem sentado na velha cadeira parecendo sugar meus sentidos. Vai ficar a vida inteira admirando essa coisa? A voz áspera de Christine me despertou. Ah, Christine, por ela eu me perdi para sempre e, se mais uma vez me pedisse, eu me perderia. Estávamos naquela noite, no cofre da mansão dos De Alvarez, escondi meu ciúme quando a vi entrando, mas rezava para todos os santos que fosse a última vez. Vi quando acrescentou mais um envelope no meio dos documentos amarelados, enquanto eu escondia dentro da camisa uma caixa contendo algumas jóias, este foi meu erro maior, nada deveria ter sido tocado, nada deveria ter sido movido. Jamais deveríamos ter ido. Ah, Christine... Temo por sua saúde, por horas a vejo sentada na mesma poltrona onde o velho morreu, os olhos fixos na pintura.
...
Não sou a neta verdadeira. O nome dela era Anna Julia, deve ter morrido naquela pequena casa na fronteira, onde cada copo d’água custava-nos serviços infames, a casa onde conheci sua história, da mãe enlouquecida que fugira da família rica. Um dia, ela dizia, um dia eu verei minha verdadeira família. Quando fiz 16 anos eu fugi, trazendo a certidão de Anna Julia e um nome que nunca tivera. Encontrar o velho patife e convencer Diego a forjar a minha identidade foi fácil. Apenas o velho não queria a neta, não se interessava, por isso eu fui até ele, por isso o matei. E herdei toda a sua fortuna, esta casa decrépita e... O quadro. Na pintura, um homem sorri, escrevendo cartas numa escrivaninha de mogno, sei que a um olhar mais atento o sorriso é na verdade uma careta de dor. Alguns vultos parecem entrar pela janela, junto à neblina. As cores são doentias, um tom escuro, um verde nauseante predomina; não sei, porém sinto meu peito apertar-se quando vejo o quadro, os olhos do homem parecem seguir-nos por todo lado. O testamento diz que não pode ser vendido, a despeito do valor, deve ser conservado ou doado. Mas ninguém o quer. Desde que o vejo escrevendo, sinto uma necessidade incontrolável de também escrever, este caderno serve para registrar minha história, mas temo que seja encontrado, por isso o guardo comigo para onde vou. Diogo também escreve, vejo como se concentra enquanto os olhos parecem vagar pelo escritório.
Os olhos do homem me seguem, Diego riu, dizendo que era remorso, mas jamais conheci o significado dessa palavra, posso sentir quando entro na sala, os olhos enfermiços das criaturas me seguindo, por onde vou eles me perseguem. Mencionei as criaturas? Sim, a neblina da pintura se desvanece a cada dia, revelando seres monstruosos, primeiros foram os olhos, depois, ah depois...
...
Christine gritou por mim esta tarde, sua face estava pálida e me disse que o quadro estava mudando. Olhei horrorizado e o que antes eram apenas névoas ganharam contornos horripilantes, bestiais, uma massa disforme onde homens e feras tomam formas nas brumas, contorcendo-se em dor e angústia, lançando-nos olhares ameaçadores. Nunca tive fé, mas se há um Deus, clamei por ele vendo aquela monstruosidade. Temo estar sendo influenciado por Christine, seria este um plano para me enlouquecer? No entanto, vejo que está bastante perturbada a minha menina. Gritou para que fosse embora e a deixasse. Não quer mais sair e sinto o cheiro de remédiosna sua pele, entretanto, ela nega que os esteja usando, ao contrário, constantemente me acusa de estar viciado em antibióticos. Dois meses após a primeira, tivemos a segunda morte diante do quadro, a copeira sofreu um ataque epilético enquanto limpava a sala, da queda fulminante não mais se levantou, os contornos do quadro tornaram-se mais vividos, os rostos mais definidos, bestas feras... No entanto, Christine não deseja desfazer-se da obra. Sente um estranho prazer em fitar a pintura obscena.
...
Quantos anos minha filha? A voz ecoa e o chiado insuportável parece invadir tudo, não suporto mais os seus olhos cravados em mim. Quantos anos minha filha?, e o cheiro do antibiótico inundou a casa enquanto ouço seu peito miserável chiando... Por onde vou, os olhos malditos me seguem enquanto os monstros entram pela janela e gritam, me amaldiçoando. O quadro, o maldito quadro. A marchand disse que é apenas uma técnica, ilusão de ótica, mas eu sei que as imagens se contorcem e se fundem de forma desesperadora, os gemidos não me deixam dormir e os olhos das criaturas me seguem. Sinto o cheiro dos remédios misturados a uma podridão inominável. Diogo me olha e sei que esconde algo, o quadro me disse, sussurrou para mim enquanto tossia, que eu deveria vigiar os passos do meu amante. Hoje, quando ele saiu, fui ao seu quarto. Encontrei as jóias, a sombra do velho me guiou até elas, escondidas embaixo do colchão. Ah, tolo, tentando me enganar. Eu ri quando seu sangue espalhou-se pelo assoalho de madeira depois sumiu escorrendo pela parede ate a sala onde pendurei o quadro maldito. Chorei então, pois finalmente estava sozinha no meu pesadelo. Posso sentir os olhos de Diogo me seguindo pela casa, às vezes com ódio, às vezes com amor. Juro que o vi chorar certa noite, o corpo retorcendo-se em meio aos outros que entram pela janela do maldito quadro. Todas as noites eles chegam, chamando meu nome, dizendo palavras obscenas que ouvi nos tempos de outrora. Amaldiçoando meus dias pela eternidade.
É noite, o vento sacode as cortinas e acordo mais uma vez com o chiado do peito do velho, ele sussurra no meu ouvido e pede por sangue, sinto o corpo febril e já não posso dormir, meus dias tem sido essa velha poltrona, sinto a presença de Diogo no quadro, posso reconhecer a avaliadora do museu, a velha copeira, me olham angustiados em meio às bestas que aumentam em número e ferocidade a cada dia que passa. Devo apenas obedecer... A faca que encontrei na cozinha servirá aos meus propósitos, tudo que quero é poder dormir sem o cheiro nauseante dos medicamentos nem o chiado do peito enfermo ameaçando sufocar-me no leito.
...
O que leio nestas folhas coladas a minha frente e a lembrança do que vi ameaçam toda lógica, escrevo o que consigo entender das letras tremidas e evito pensar no que meus olhos testemunharam. Os corpos estavam espalhados pela casa, nem as crianças foram poupadas, muitos morreram dormindo, outros, encontrados nas posições mais estranhas. Não havia sangue, apenas o horror da morte.
A beleza da herdeira era conhecida por todos, no entanto, passara os últimos meses em reclusão total, até que a insanidade tornara-se incontrolável a ponto de levá-la ao assassinato de todos os empregados. Estava encolhida na velha poltrona, murmurando que eram ordens do quadro, que o velho a obrigava. Foi recolhida a um sanatório, onde uma camisa de força a segurava. Sempre que despertava, gritava por socorro, pedindo que o velho fosse embora. O caso fora arquivado até que seu sumiço repentino me levara de volta a velha mansão. As folhas espalhadas pela casa foram recolhidas por mim, colei todas elas e o que li revelou-me uma trama cruel e a insanidade que trouxera aos moradores. Não entendo como não foram encontradas antes nem penso nisso, apenas registro que leio, sinto uma necessidade absurda de transcrever estes acontecimentos inimagináveis. Aqui, nesta poltrona onde ela passou seus últimos dias, leio e transcrevo o registro de sua insanidade.
Entendo que a pintura os perturbassem, vi enfim o quadro a que se referem as folhas do diário quando abri a porta e um arrepio de horror tomou meu corpo, não pude conter um arquejo. Tal qual uma pintura em trompe l’oeil, as imagens parecem saltar e sair do quadro como num teto profano, uma massa de carnes, homens e feras em um escárnio de dor e ódio. Em meio a eles, vislumbro o rosto de Christine, a mais bela herdeira que esta cidade já vira, entrelaçada ao corpo de Diogo, juntos e amaldiçoados... Seus olhos me prendem e eu apenas escrevo...
...
Mais uma morte assolara a velha mansão dos De Álvares, desta vez, um jovem repórter que invadira o local durante a noite foi encontrado dias depois, enforcado na velha sala, a poltrona caída, os olhos arregalados e fixos na pintura que dominava o ambiente. Folhas de uma reportagem insana estavam espalhadas pela casa. Não há justificativas para seu suicídio, e as garatujas encontradas não esclarecem o assunto. Mais uma vez, os portões foram lacrados...
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LA SIGNO DE LA DEMONO Leonardo Nunes Nunes (Do Esperanto: O SINAL DO DEMÔNIO)
“E faz que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e servos, lhes seja posto um sinal na sua mão direita, ou nas suas testas”
Apocalipse 13:16
Primeira ParteA Delegacia
“Com meu cigarro no canto da boca, pus-me a criar mundos. Meus ídolos morreram, uns de câncer, outros por suicídio mesmo. Mas todos eles deixaram algo em comum nesta Terra: a criação. Eu só tenho medo de beber do vinho da morte sem antes deixar meu maior legado a Terra: O sonho cria vida.”
- Esse foi o recado suicida desse sujeito – falou Américo, capitão da polícia – Alguém consegue ler nas entrelinhas? – E olhou fundo nos olhos de cada um dos cinco policiais em sua sala, ouvindo o ressoar de uma respiração coletiva permitido pelo silêncio sepulcral em que a sala caíra momentaneamente – Eu não quero ser
o estraga-prazeres, mas não vou deixá-los ir sem antes descobrir o que o camarada quis dizer com esse bilhete. Alguém consegue decifrar o recado?
- Não exatamente – aventurou-se o primeiro policial, de nome Alessandro. Era conhecido na corporação como San, e assim era chamado sem a menor cerimônia – Mas... ele fala sobre uma obra, uma criação que não poderia faltar. A isso eu entendo que ele queria sentir-se útil.
- Útil?! – perguntou o segundo policial, Ronaldo – Não faz nenhum sentido. O sonho cria vida. Ora. Vamos até o presídio? – perguntou em tom de ironia – Lá encontraremos pessoas assim, tenho certeza. Suicida, isso já sabemos. Para que complicar as coisas? O que queremos saber se ele era ou não um escritor? Não fará a mínima diferença.
- Pois eu digo que sim – atravessou o terceiro policial chamado Ricardo – Não existe na literatura a criação de fórmulas, de vidas, de humano? Basta ler qualquer coisa, na internet inclusive, sobre os tais “Contos Fantásticos”. Sim, Ronaldo. Podemos ir pelo caminho mais fácil, é suicídio e pronto. Mas existem lacunas a serem preenchidas. Tenho certeza que com uma boa pesquisa podemos encontrar a resposta que procuramos.
- Pois eu concordo com Ronaldo – disse o quarto policial, Francisco. Francisco era mais conhecido por Chico, e já estava na corporação há mais tempo que os outros, sendo o mais velho da sala, incluindo o capitão, n’um total de cinco anos. Não era muito chegado à leitura, muito menos nesse ‘negócio’ de internet, de novidades dos anos dois mil. Não usava celular, e para encontrá-lo, somente através do telefone fixo; todos sabiam que seu telefone fixo era um aparelho tão ou mais antigo do que o aparelho telefônico da sala do capitão – Acho que não vamos encontrar nada nas histórias que ele escrevia. Agora, se vamos brincar de leitura, bem... não me responsabilizo pela perda de tempo. Temos que ser mais objetivos. Quando iniciei na carreira, o processo era menos rebuscado.
O quinto policial, que só absorvia o conteúdo da discussão, permanecia quieto. Seu nome era Cristiano, e era filho de um grande policial que morrera em acidente de carro certa feita enquanto perseguia um bandido que jamais foi preso. Para Cristiano, aquela conversa não estava levando a lugar algum. Discutir se deveriam levar em consideração as histórias que o suicida escrevia ou não, estava, para ele, fora de questão. Se o caso permitia essa investigação, não era contrário à tarefa, mas não fazia questão de fazer qualquer esforço a mais, sendo desnecessário. Gostava, sobretudo, de centrar forças n’um objetivo bem traçado. Para ele, era primordial um serviço bem executado. À moda antiga. Sem exibicionismo. Bem como absorvera o método do falecido pai.
- Capitão – interviu Cristiano – Não acho que vale a pena discutir se devemos ou não fazertal coisa. Se o caso permite, aliás, exige essa tarefa, vamos fazer e pontofinal – nesse momento olhou para cada um dos colegas na sala, e para o capitão também, a fim de constatar que todos prestavam atenção no que dizia – docontrário, para quê o esforço desnecessário?
O capitão levantou-se de sua cadeira e caminhou pela sala, enquanto todos permaneciam em seus lugares. O tapete fino que vinha da porta, bem como o chão da sala, estava muito limpo. A estante que carregava seus troféus de golfe, futebol sete e bocha, estava lustrosa. As gavetas, todas fechadas. Na parede atrás da sua
mesa, vários mapas, todos pendurados de forma organizada. Organizada também estava sua mesa, sobre a qual vários papéis repousavam, inclusive o bilhete do suicida. Falou dali mesmo:
- Meus amigos, esse é o bilhete que nos traz muita dor de cabeça. Está carregado de um sentimento profundo, além de um desespero também. Prato cheio para um psicanalista, que não faz muita diferença para nós, polícia. No entanto, a chave de todo esse mistério está contida nessas cinquenta e quatro palavras. É
difícil de acreditar, eu sei. Mas está ali. Sim, o sonho cria vida. E destrói também.
“Eu osconsidero os melhores da corporação. Os mais competentes. Os mais espertos. Astutos. Sagazes. Mas ninguém até agora me disse o que está contido nesse bilhete. Vamos, pessoal. Façam força.”
- Quantasvezes pesquisaram o apartamento dele? Sete? – perguntou Cristiano, o policialdo ‘serviço bem executado’ – E porque só na última encontraram seu corpo? Sete equipes, e só a última teve a competência de encontrá-lo?
- Obrigado, Cristiano – respondeu o capitão – Esse era um ponto que eu queria chegar. O corpo. Em que lugar ele estava nas outras seis vezes anteriores? Como todos sabem, foi encontrado jogado na cama do seu quarto, sem muitos ferimentos, a não ser do pescoço; sem sangue espalhado pelo corpo. Todas as equipes que entraram no caso são competentes. O corpo poderia ter sido removido, mas não havia sinal nenhum que isso pudesse acontecer; eu mesmo descarto essa hipótese. Então pergunto-lhes: o que aconteceu?
- Vamos até o apartamento dele – respondeu Ricardo – pesquisar o que foi deixado para trás.
- E o que foi deixado para trás? – perguntou Chico.
- Pistas – respondeu Ricardo laconicamente.
O Apartamento
A porta de entrada do apartamento do suicida estava lacrada por rolos daquela fita adesiva que a polícia usa desmedidamente. Os vizinhos não perdiam a oportunidade de, sob a soleira da porta de entrada dos seus apartamentos, vasculharem o que mais uma vez a polícia fazia ali no prédio. Como se sabe, pouca coisa foi
descoberta, e somente isso era capaz de dar asas à imaginação de cada morador daquele prédio de cinco andares.
Basicamente nada tinha sido alterado, desde a última investigação – a que resultou o achado do corpo. Eles estavam lá para encontrar qualquer coisa que pudesse ter escapado aos olhares “atentos” das outras equipes, e de fato conseguiram. Ricardo até tinha razão ao considerar a literatura como fator que desencadeou
todo o acontecido, no entanto não conseguia fazer os pontos ligarem-se entre si. Encontraram dois livros sobre magia negra e tudo mais, mas isso qualquer pessoa tem em casa. O que não se encontra facilmente nas casas de pessoas normais são utensílios de cunho duvidoso. Encontraram também uma bacia de metal mal lavada, uma adaga e uma peneira também de metal, uma dentro da outra e todas debaixo da pia da cozinha.
Chico deu o braço a torcer ao abrir desajeitadamente um dos dois livros de magia negra. Caíra dele um papel qualquer, desenhado em traços mal feitos uma figura peçonhenta e um número. 66. Do mesmo livro, abriu a página referente à numeração e encontrou um encantamento que promete abrir uma passagem entre dois ou mais mundos. Algo com ângulos de quinze graus mais distâncias que ele não conseguia entender.
Não foi preciso pesquisar muito mais. O material encontrado deu cabo a algumas dúvidas que ainda existiam. Tiraram as histórias que o suicida escreveu para fora do guarda-roupa e passaram-se n’uma leitura que demorou um bom tempo – sinal que desta vez Chico, bem como Ronaldo, estava equivocado. Detalhes como a crença na Lua como Deusa, a obsessão que passara a ter com bizarrices e pequenas esculturas de madeiras, além dos constantes zumbidos que, segundo os relatos dos vizinhos, o suicida fazia todas as noites, geralmente antes de dormir, foram descobertos. Só faltava saber como só foi descoberto o corpo na sétima
investigação.
Segunda ParteOs sonhos me falaram que o único caminho é o suicídio. Os sonhos me falaram que meus ídolos tiveram que trilhar esse mesmo caminho. Os sonhos me garantiram que logo ao final desse caminho encontrar-me-ia com meus ídolos. Mas antes de viajar, devo fazer que minha vida valha à pena. Devo criar.
Qual é a essência de minha vida? O que me levou a viver aqui e continuar morto lá? Do que, afinal, sou feito? Ou fui feito? E para onde vou? Qual será o último lugar que meus pés pisarão? Céu? Inferno? Dis? R’Lyeh? De qualquer forma, estou condenado. Resta-me... escrever. O que será que as pessoas vão pensar sobre tudo isso?
A minha maior contribuição. É isso! A minha maior contribuição para a humanidade! Não falo de minha vida, pois ela vai acabar dentro em pouco, mas do que estou criando.
Quero. Quero poder investir nesse projeto de vida, para depois morrer. Acho que ainda estou ligado a este lugar devido à chuva que cai insistentemente. Adoro a chuva. Adoro a escuridão, as trevas. Adoro lugares lúgubres. Sou filho deles, afinal. Sangue do meu sangue, sombra da minha sombra. E se tenho medo? A coragem que tenho no peito não cede lugar, ainda mais para o medo. É bobagem pensar que estou aqui só de passagem, pois terei minha marca. E quem em mim acreditar, estará salvo. E quem em mim não acreditar, não fará diferença. Cultuo a Lua como Deusa, a minha adorada Deusa. Levo uma vida desregrada, mas
pouco me importo. Terei meu lugar lá.
Sabe o que ouço aqui dentro? Um estranho zumbido dentro de minha cabeça quando deito-a no travesseiro. Mais parece um aviso de que eles estão chegando. Mais parece um recado de que novos habitantes o nosso Planeta Terra terá. Para nós, alienígenas. Para eles, alienígenas somos nós. Também sei que tudo isso já estava escrito, e não tardaria em chegar. Basta as estrelas alinharem-se para formar o caminho do qual eles atravessarão. E meu auxílio, é claro. É das mãos de um humano que a porta abrirá, mas não é dos olhos de um humano que veremos a glória.
Eu aconselho vivermos como sempre vivemos. Deixemos o pânico na hora em que o pânico virá. Não vamos antecipar nada, nem o nosso sofrimento, pois para tudo tem um tempo. Inclusive para o fim.
Às vezes olho-me no espelho e vejo um monstro. É difícil constatar que nasci assim. É difícil, aliás, respirar,
viver olhando para esse “sinal do demônio” no menor dedo da minha mão direita, e não desistir de uma vez por todas. É uma guerra interna, mas que não respeita barreiras.
A única coisa que vejo no futuro é a obra. Devo criar. Somente assim serei liberto dessas amarras que prendem minha sequiosa alma à mercê de todo o mal contido nesse lugar. Olhar para os lados e ver as pessoas em suas atividades normais, tudo isso me faz sentir um aperto no peito, pois sou incapaz de ser, de ter, de dar.
Existe a febre, também. Não aquela que nos deixa doente, mas a dúvida sobre o que me transformarei. O tempo corre rio abaixo, e eu continuo sofrendo com isso. Para variar, a hipertensão é outro mal que me aflige. Mas, acostumado, nenhuma importância mais tem.
O sonho cria vida. É isso que me fará deixar o maior legado nesse planeta. Serei lembrado como o criador, tal qual a sede na garganta farei-me um vício na boca de cada um que possuir a mesma carne, o mesmo sangue humano que o meu.
Terceira parteA Escrivaninha
Por fim, a espera teve resultado, consegui terminar a minha aguardada obra-prima. Nem sei por onde começar. Estou eufórico! Acho que é a hipertensão. A garganta seca, os olhos ardem, o rosto queima. Um calor invade meu sepulcro, e uma inquietação instala-se no meu âmago. Ah!, maldito sinal do demônio. Foste tu a causa dos meus problemas, serás tu o primeiro a desgarrar-se de mim: fujas como um louco foge do manicômio. E leve consigo minha dor.
Leva minha dor em sua mala de couro branco. Assim, quem sabe, terei paz. Isso se a sorte permitir. A mesma sorte que vem me abandonando dia após dia, como se assim ela própria fosse me matar. Sorte tem aqueles que nasceram para brilhar. Eu, por minha vez, engendro uma artificial luz, da qual luto para mantê-la acesa, e que continuarei a lutar, por meio de minhas criações, para que jamais se apague. Sem em vida não posso ter sucesso, a minha morte vem para iluminar o caminho de minhas obras.
Minhas mãos estão inchadas e cortadas. Escamosas, indicam que envelheci vinte anos em um. Mas ainda assim apresento
esse sinal horroroso que jamais vai deixar de existir, e que vai me acompanhar até na minha última morada como humano,
meu ataúde de alabastro. Aqui vai meu desejo: que eu seja enterrado sob mil glórias, mas ainda assim na escuridão que foi, e ainda é, minha morada.
Que os filhos dos filhos de meus leitores sejam como jamais fui: sadios e cheios de saúde. Essa herança me é cruel demais para suportar. Procuro incessantemente meios para fugir, para amenizar, para curar todo esse mal que me aflige. O sinal do demônio em minha destra. Falta-me saúde. Não é só hipertensão, é a síndrome, Síndrome de Koffer*1, que fui condenado a nascer.
As unhas crescem, meu rosto enrijece, minha carne apodrece. Mil rugas surgem, e minha imagem aterroriza. É como um bacanal doentio, um festival proporcionado pelos vermes vivos ‘inda em mim. A extravagante realidade da vida humana. Que não teve remorsos ao dar-me de beber do líquido que forma a vida. E é essa vida que fui condenado a morrer.
*1] Síndrome de Koffer: foi-me, certa vez, soprado em sonhos que eu iria morrer de “Síndrome de Koffer”. Inspiração onírica.
Sem nome, sem lustro
Naturalmente um feitiço só pode ser efetuado se o mago souber a fórmula exata. Precisa-se recitá-la completa, sem erros, de chofre. Aqui se enquadra qualquer pequeno grande humano, caso queira marcar época, mesmo que o preço final seja sua vida. E recitar a fórmula seria o passo mais fácil, pois uma rápida leitura seria o suficiente para decorar. Há que ser usado os utensílios que permitem transpor tempo e espaço. É provar, de uma vez por todas, que sabe da verdade. Não hesitar um segundo sequer para colocá-la em prática.
Seguindo esses passos, pude encontrar o portal que me levaria muito longe. Como é bom sentir todo o poder do mundo nas minhas mãos! É ser deus, sem brincar de ser deus. É ser demônio, sem ser um demônio. É sentir a vida novamente, mesmo que eu nunca tenha tido uma. É deixar minhas fraquezas de lado e deter todas as forças do cosmos; é derrotar Leviatã, a serpente mitológica, sendo ela própria, mas com poderes ainda maiores.
O marrom predomina, são cores abstratas, mas ainda assim concretas, pois sinto ao tateá-las. Consigo ainda entrever cores claras e cores mais escuras, o branco e o preto, amarelo e caramelo mesclam-se n’um turbilhão de matizes que nunca vi antes. É assustador, mas é maravilhoso ao mesmo tempo. Tamanho poder homem algum jamais sentiu, ou viu. Eu posso caminhar por entre eles. Eu posso flutuar, inclusive. Posso vê-los, tocá-los, senti-los!
Materializam-se dentro do meu cômodo. Eu já não sinto verdadeiramente meu corpo. Sinto, entretanto, o revoar desses demônios, o ruflar de suas asas, o raspar de suas unhas fétidas e infectadas, o enfadonho respirar. Eles escapam pelo portal aos milhares, são presenças sufocantes, e como fumaça, perscrutam cada ângulo, cada espaço, cada centímetro de minha sala, invadem minhas escrivaninha, entram em meu corpo, são como invasores que devastam tudo por onde passam.
Eu vejo cada vez mais nítido o que são. Iníquas, dominam tudo, inclusive a mim. Era isso que eu procurava! A essência de minha vida, o motivo pelo qual atravessei anos sem desistir da minha criação!
Sou levado por essas mesmas criaturas ao lugar de onde originaram-se. Ah!; o que vejo? Muitas crias, muitos seres, muita realidade. Todos esperando a hora certa para o retorno. Eis que atravessei a barreira dos mundos. Um lugar que jamais esquecerei.
Agora é o meu retorno. Sou sugado pelos meus próprios pensamentos... tudo isso de profundo e profano foi eu quem engendrou. Sem nome, sem lustro é a cria dos meus pensamentos!
E todos esses seres me fazem crer que sou o único a conhecer a face mais negra do cosmos. O intento mais puro, e cruel, e
avassalador, dos que vivem lá no outro lado; o lado que reside o desconhecido. Sob um insignificante preço: minha vida.
O retorno é até pior do que eu imaginava. Posso ver novamente meu quarto, minha cama... está tudo acelerado, muito rápido, absurdamente incontrolável. Foram poucos os momentos em que pude sorrir de felicidade. Poucos... é algo que não sei explicar, tudo desacelerou de repente. É como pular com uma corda no pescoço. A velocidade é enorme, mas, de repente, tudo pára. Sim, eu sorri. E meu sorriso tem motivo. Encontrei, em minha cama, definitivamente, o que tanto procurava: a minha morte.
FIM