FOGO-FÁTUO
Um conto de Henry Evaristo
I
Era o fim da madrugada quando cheguei em casa e avancei furtivamente através da sala, passando pelo corredor escuro e silencioso, até alcançar meu próprio quarto. Dormia sozinho e sabia que teria todo o espaço e privacidade necessária para lidar com as coisas que eu trouxera comigo do cemitério municipal. Eu sabia que naquela data eu finalmente conseguiria. Era o Festum omnium sanctorum, o trinta e um de outubro, véspera do dia de todos os santos. E eu, após vencer o velho e carcomido portão da necrópole abandonada, roubara de lá, entre outras coisas, um fogo-fátuo verdadeiro. Depositara-o dentro de um pequeno frasco de vidro transparente de forma que sua forte luz azul agora lançava sombras dançantes e fantasmagóricas pelas paredes de meu quarto.
Um fogo-fátuo! Deus me ajude! Eu consegui roubar o segredo dos mortos! E agora ele seria meu. Tudo o que eu sempre quis ele me daria. Realizaria meus desejos de riqueza e, com eles, os de soberba.
Por longos cinco anos eu o cacei.
Ora, Bram Stoker estava certo! No cerne da própria existência destas criaturas escondia-se a chave de todas as delicias terrenas. Não é a toa que os Tsekes e os romenos mais destemidos costumavam se aventurar pelos bosques e pântanos selvagens em busca destas estranhas manifestações na véspera de todos os santos. Pois ali, em meio às trevas da noite dos maus espíritos, o fogo-fátuo marcava a localização de tesouros imensuráveis.
Ao buscar estudos sobre o tema, sobretudo nos livros do ocultista medieval Moranus Malgred, descobri que eles eram a mais provável origem para as lendas dos leprechauns, aqueles pequenos seres, prováveis habitantes de mundos paralelos ao nosso, que possuem a localização dos fins de todos os arco-íris. Descobri que os fogos costumavam aparecer principalmente onde havia a presença da Rumex conglomeratus ou simplesmente folha de labaça; pequenas plantas que ocorrem em lugares úmidos e alagadiços. Segundo as lendas druidas e irlandesas, os leprechauns vivem entre estas plantas e é nestes locais que findam os arco-íris do mundo. Ali, em meio à vegetação, estas pequenas criaturas escondem grandes somas em potes de ouro.
Mas há um outro aspecto destas lendas, este muito mais verossímil, porém não menos assombroso. Para a ciência, o fogo-fátuo é tão somente uma reação química perfeitamente explicável. Após o início da decomposição, a matéria orgânica morta e enterrada sob terrenos pantanosos, assim como os ossos daquilo que está morto, passam a liberar uma substancia altamente inflamável chamada fosfina. A fosfina, em determinadas condições especiais, ao entrar em contato com o oxigênio do meio externo, passa por um processo rápido de combustão espontânea. O deslocamento súbito do ar ao seu redor a faz mover-se. Ocorre principalmente em cemitérios onde o terreno é úmido. Eis uma boa explicação também para o fenômeno dos fantasmas.
Munido destas informações, juntei-as ao fato de que a velha necrópole municipal, às portas da qual eu passava todos os dias de volta da faculdade, era repleta das tais plantas rumex. Certa noite, como era minha grande expectativa, pude testemunhar o surgimento do fenômeno. Postara-me aos pés da imensa grade do portão principal. A escuridão me dava cobertura para a curiosidade dos incautos que por ali se aventurassem àquela hora. De repente, logo após a meia noite, vi um clarão azulado se erguer por entre as lápides antiqüíssimas. Fiquei quieto, mortalmente assustado mas, ao mesmo tempo, extasiado diante da confirmação de que minhas idéias não eram meras tolices de sonhador. Depois senti um arrepio percorrer todo meu corpo. A chama azul estava vindo em minha direção, por dentro do cemitério, rasteira e veloz. Levantei-me e sai do lugar. Nem vi como cheguei em casa e nem o tempo que levei no percurso. O único pensamento que tomava minha mente era o de que a noite estava quente, abafada, estagnada. Não havia deslocamento de ar que justificasse aquele comportamento do fenômeno. Muito menos que explicasse a sua tentativa de aproximação.
Com o passar dos dias, passei a crer que o que ocorrera fora um sinal. Eu estava certo e os estudos também. Havia alguém enterrado naquele lugar que levara consigo, pra debaixo da terra, alguma grande quantia de valores; o que para minha mente jovem demais se configurava na idéia quase exata de um tesouro tendo em vista que os antigos moradores da cidade, cujos descendentes se encontravam todos jazendo no solo sagrado da necrópole abandonada, eram finos descendentes de aristocracias espanholas e árabes. Decidi me dedicar a encontrar novamente o fago-fátuo, segui-lo e cavar. Para isso postei-me todas as madrugadas aos pés do portão enferrujado imaginando como faria pra entrar caso o fenômeno ocorresse novamente diante de meus olhos. Assim esperei munido apenas de coragem, paciência e uma pá de coveiro. Mas ele jamais apareceu novamente. Não antes de se passarem cinco anos.
Durante este tempo eu formulei mil teorias a respeito do fenômeno. Li e reli livros de ciências e analisei exaustivamente os mitos. Cheguei à conclusão de que poderia ganhar muito tendo um fogo fátuo aprisionado. Ora, se ele podia detectar onde havia massas em decomposição e velhos ossos enterrados, com certeza me poderia guiar até sítios prenhes de riquezas ocultas. Seria eu então o homem mais rico e viajado do mundo.
Meu quarto convolou-se um pequeno estúdio abarrotado de livros e mapas. Esquemas dos subterrâneos de Paris e Londres e das catacumbas paleocristãs Romanas. Ali seria possível encontrar tudo a respeito dos leprechauns, gnomos, duendes; dos fogos-fátuos, fogos de Sant’Elmo e toda espécie de fenômenos atmosféricos. Consegui os livros de Baumman sobre as lendas da Escandinávia, Cornualha e Ilhas Hébridas; e afanei da biblioteca da capital um exemplar do "In Reich Der Färbtone" onde está contida a história dos terríveis Hjramurgos, os misteriosos habitantes das colinas secretas de Cornwall. Poderiam ser estas criaturas a origem exata das lendas sobre pequenos homens místicos que surgem aqui e ali ao redor do mundo? A despeito da malignidade do tema, e das implicações diabólicas, a sedução das possibilidades que o fenômeno me oferecia era insuplantável.
No último ano de minha espera resolvi abandonar todo tipo de especulação e conjectura. Larguei os livros a um canto do quarto e passei a me empenhar na tarefa de como iria aprisionar o fogo. Resolvi que tudo seria da forma mais simples e obvia que eu pudesse imaginar. Iria prendê-lo em algum vasilhame pequeno, de vidro transparente, com pequenos furos para que não perdesse o contato com o oxigênio que o alimentava. Ali eu o manteria pelo maior tempo que me fosse possível nem que para isso tivesse que depositar no interior do vasilhame alguma matéria para se decompor e lhe fornecer substâncias químicas adequadas para se perpertuar. Assim eu o teria e o levaria aos cemitérios e pântanos onde ele me apontaria a localização exata de cadáveres enterrados junto com seus pertences mais valiosos como era a tradição entre os membros da sociedade local.
Dentre todas as noites do ano, a véspera do dia de todos os santos era a mais propícia, segundo as antigas lendas da Europa oriental, para que os tesouros enterrados se revelassem através do fogo-fátuo. Era a noite em que todos os maus espíritos vagavam soltos ao bel prazer pela terra dos vivos. Um potenciômetro para as forças ocultas da natureza; quando as percepções de homens e bestas se acirravam e se podia, com o espírito correto, ver por entre as trevas dos bosques e dos pântanos.
Foi numa noite assim que ele me apareceu novamente. E quando eu o notei, estava quase adormecido sobre meus braços enregelados.
Deitara-me mais uma vez aos pés do velho portão carcomido do antigo cemitério. Passava das três da manhã e, como a vizinhança daquele velho bairro era exígua mesmo durante o dia, eu tinha toda a tranqüilidade para operar meu plano sem ser notado. Ademais, o terreno possuía centenas de frondosos carvalhos que obstruíam a visão de seu interior.
O avistei por entre as mesmas lápides de sempre; como a marcar o local. Era, afinal, o que eu esperava que fizesse. Rapidamente pus meu plano em andamento. Com o passar do tempo eu havia elaborado diversos métodos de como entrar no cemitério mas naquele momento a excitação era tamanha que esqueci toda a organização e simplesmente me lancei contra as barras enferrujadas do portão. Retorci-as com minhas próprias mãos e com extrema facilidade. Logo estava aberta uma vaga grande o suficiente para que eu me esgueirasse para dentro.
A primeira sensação que tive foi a de que profanava um lugar sagrado; que perturbava a quietude dos mortos que ali jaziam ha décadas em paz e silencio, mergulhados num esquecimento completo e bem vindo.
Era o intenso gemido do vento fustigando os galhos das árvores que me infligia este sentimento. Percebi como o clima mudara. Agora um sopro frio atingia meu corpo e me fazia lamentar não ter me agasalhado adequadamente para a ocasião.
Dos fundos do terreno começava a brotar uma neblina espessa que parecei vir cobrindo tudo ao seu redor. Era como se a natureza, de repente, resolvesse executar alguma espécie de dança para me saudar. Era o que minha inocência imaginava naquele momento!
De repente senti algo às minhas costas. Virei-me e vi o fogo-fátuo oscilando na escuridão. Por um momento fiquei imóvel, sem saber direito o que deveria fazer. Depois vi as pequenas labaredas azuis do fenômeno arquearem na direção do fundo do cemitério. Traçaram no ar uma linha reta em direção a uma lápide grande cuja sombra já se encontrava quase toda imersa pela neblina repentina. Corri pra lá motivado agora por um estranho senso de urgência que me mandava fazer o que tinha de fazer o mais depressa possível e deixar aquele lugar o quanto antes. Foi o que fiz.
Com minha pá de coveiro, e sem mais hesitações, lancei-me a empresa de cavar uma abertura na lápide depreciada. Não olhei para os lados, não vi, nem ouvi mais nada até sentir a barreira à minha frente ceder e um monte de terra podre se despejar aos meus pés. Junto com ela bolou do interior para o lado de fora uma ossada vestida com uma estranha farda militar. Foi somente à esta visão que me contive. Pois o crânio esfacelado, cuja boca arreganhada trazia um ar zombeteiro mais que anormal, não podia ser ignorado por nenhum homem são. Oh, aqueles buracos de órbitas vazias pareciam me fitar em diabólica desaprovação! Desci minha pá sobre aquela visão dantesca e a atirei para o mais longe que podia da maldita ossada. Depois me lancei a perscrutar o interior da lápide.
Imediatamente avistei postada ao fundo uma caixa de tamanho médio; como um baú de pequenas proporções. Novamente usei a pá; desta vez para puxá-la até onde a pudesse alcançar. Retirei-a de seu lugar e a lancei para o lado de fora com um movimento rápido. A madeira podre despedaçou-se com o impacto. Imediatamente o som de moedas e dobrões brotou na noite, tilintando sobre o pavimento em ruínas. Ofegante eu observei o tesouro que encontrara. E novamente a sensação de urgência me assolou. Apressei-me em juntar tudo quanto havia na caixa e partir para a segunda parte de meu plano.
Com o vasilhame de vidro, dirigi-me até onde havia visto o fogo-fátuo pela última vez. Lá ele estava como a me esperar. Nem mesmo atentei, perdido que estava em minha louca ambição, que aquele era um fenômeno de curta duração e que persistir daquela forma por tanto tempo não podia ter nada de normal. Inclinei-me sobre ele e depositei o frasco. As chamas diminuíram tanto que por um momento pensei que se extinguiriam mas, de repente, retomaram a força ao captarem o oxigênio que entrava pelas frestas abertas à faca na superfície da tampa. Quando vi que não iria apagar, ergui-me pronto para partir daquele lugar horrendo. Não olhei pra trás. Não vi a quem eu tinha usurpado naquela madrugada. E muito provavelmente não me dei conta dos manifestos inflamados que minha ação suscitara no interior abafado daquela terra esquecida.
II
Era o fim da madrugada quando cheguei em casa e avancei furtivamente através da sala, passando pelo corredor escuro e silencioso, até alcançar meu próprio quarto. Dormia sozinho e sabia que teria todo o espaço e privacidade necessária para lidar com as coisas que eu trouxera comigo do cemitério municipal.
Primeiro deitei-me um pouco em minha cama de solteiro. Estava tonto. O mundo parecia oscilar diante de mim. Entendia que algo muito sério tinha sido levado a cabo naquela noite. Sentia-me alquebrado e subitamente devastado pela cruel curiosidade de saber quem teria sido o dono daquele tesouro que agora me pertencia. Ergui-me lentamente, sentindo o mundo rodar. Quase podia entender que alguma coisa que emanava das pequenas labaredas azuis do fogo misterioso depositado em minha escrivaninha é que devia estar me causando a sensação de doença. Eu podia ouvir o vento do lado de fora e sentir como ele fustigava as janelas penetrando na casa como algum invasor invisível. Mas somente quando senti necessidade de tomar um pouco de ar puro, e abri a janela, é que percebi como a estranha neblina parecia me ter acompanhado desde o cemitério e agora envolvia toda a casa não deixando mais se divisar nada do lado de fora.
Decidi que tentaria dormir um pouco antes do amanhecer. Só depois é que iria contar minha fortuna. E, mais tarde, após meu café da manhã reforçado, iria ao banco investir onde pudesse e me iniciar como novo rico.
Mal deitara quando ouvi soar a campainha da porta da sala. Ora! Não podia imaginar quem poderia ser àquela hora. Mesmo assim meu subconsciente insistiu em advertir-me de que não seria exagero, ou desespero infundado, considerar a possibilidade de ser a policia. Ir preso como ladrão de cemitério e aparecer nos jornais da região seria de certo demais para os corações de meus velhos pais. Por isso resolvi apressar-me para atender à porta antes que alguém mais acordasse. Retirei meus sapatos sujos de lama e corri em direção à sala no andar de baixo.
A dependência estava mergulhada na escuridão. As janelas de vidro eram como quadros em branco devido à névoa do lado de fora. E, mais uma vez e campainha soou pela casa. Ouvi algo como um resmungo vindo do ander de cima; era meu pai que estava despertando. Corri para a porta e, mais uma vez sem refletir sobre meus atos, a abri.
Senti meu coração parar. O mundo inteiro girou em torno de mim e tudo ao meu redor pareceu de repente desfocado; pois só o que meus olhos arregalados podiam ver era a figura alta parada do lado de fora. Depois meus nervos em frangalhos me jogaram ao chão e um jato quase incontrolável de náusea subiu de minhas entranhas. Oh, meu Deus! O que foi que eu fiz! De onde viera aquela coisa que adentrava agora minha casa? A coisa com o cheiro de morte e decomposição que vagava pela sala, diante de mim, e me olhava com uma careta de desdém como nenhum ser jamais deveria poder olhar para outro!
De onde eu estava, o vi subir lentamente as escadas e desaparecer no segundo andar. Depois me ergui, pensado em meus pais, e corri em seu encalço. Alcancei-o em meu quarto. Segurava em uma das mãos parte do tesouro que eu lhe subtraíra e na outra o vasilhame transparente com o fogo-fátuo. Olhou-me mais uma vez com sua careta desdenhosa. Era alto e estava fardado como militar. As órbitas de seus olhos estavam vazias, como buracos negros que conduziam ao inferno, e fizeram meu sangue congelar nas veias. Sua cabeça era um crânio esfacelado pelo tempo e por um recente golpe de pá de coveiro!
Segui o morto quando ele deixou meu quarto. O acompanhei escada abaixo até a porta de saída da casa. Sentia seu cheiro de coisa velha e sem vida invadindo minhas narinas e penetrando em meu corpo para sempre. E acho que aqui e ali pisei em alguns de seus velhos ossos que deixava cair pelo caminho.
No umbral ele parou. E novamente me olhou. Seu olhar me derrubou agora sobre uma poltrona próxima. Foi assim que fiquei até a manhã chegar. Quieto, ofegante.
E assim têm sido os restos de meus dias. Nunca me recuperei da sensação de fraqueza, tontura e náusea. Sinto todos os sintomas todos os dias. Felizmente o senhor misericordioso parece estar terminando seu castigo para mim; pelo menos aqui nesta terra, pois sinto a cada dia que se passa que minha vida se esvai mais um pouco lentamente.
De tudo o que vi, ouvi e senti naquela madrugada, o que mais me castiga nestes meus dias proximos do fim é a certeza que restou como único resultado de minha empreitada mortal.
Quando a coisa me lançou seu último e feroz olhar, ergueu o dedo indicador descarnado e me apontou fazendo um sinal de negação. Depois saiu caminhando trôpega até o portão onde, dobrando à esquerda, desapareceu na noite; ela, parte de seu tesouro e seu estranho fenômeno azul.
Imediatamente passei a ouvir ruídos de correria novamente no andar de cima. Pareceu-me que escancaravam a janela de meu quarto e reviravam as coisas. Ouvi o tilintar das moedas e dobrões e depois sons de sapatos de solado duro passando apressadamente pelo corredor. Então mais uma vez se fez silêncio. Algo havia novamente deixado a casa.
Daquela madrugada em diante meus pensamentos nunca mais se ordenaram. Não mais fui capaz de ler uma obra, de ouvir uma peça ou de escrever um texto. Isto que vos narro é por encargo de meu enfermeiro particular e biógrafo amador.
No entanto, não posso encerrar esta obra sem avisar-lhes da minha importante constatação. Cuidado ao encetarem empresa de procurar pelo fim do arco-íris pois a última coisa de que me recordo daquela noite antes do sol nascer foi da agitação que se deu pela rua de fronte à minha residência quando centenas de minúsculos pés, calçados com sapatos de solados de madeira, pareceram passar correndo ladeira abaixo adentrando nas matas próximas e desaparecendo no escuro em meio a gargalhadas de escárnio. Pude ainda ouvir o som do restante de minhas moedas tilintando dentro de suas bolsinhas de couro.
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