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22.12.06

VENTO FRIO

Eis mais uma homenagem da Câmara dos Tormentos aos grandes mestres da literatura fantástica. Desta vez homenageamos o grande mestre Howard Phillips Lovecraft.


VENTO FRIO

HOWARD PHILLIPS LOVECRAFT


Indagas-me por que receio as rajadas de vento frio; porque tremo mais que as pessoas comuns ao entrar num aposento gélido e sinto náusea e repulsa quando a friagem da noite se insinua, furtiva, pelo calor de um suave dia de outono. Há quem diga que eu reajo ao frio de modo semelhante ao que outros reagem ao fedor, e serei último a desmentir essa impressão. O que farei será relatar a situação mais horripilante em que já me encontrei e deixar a ti a tarefa de julgar se ela representa ou não urna explicação satisfatória para essa minha esquisitice.
É falso imaginar que o horror esteja associado indissoluvelmente com o negrume, o silêncio, a solidão. Eu o conheci no esplendor fulgurante de urna tarde de sol, em meio ao clangor da metrópole e no ambiente apinhado de uma pobre e comuníssima casa de pensão, tendo a meu lado uma senhoria prosaica e dois homens robustos. Em meados de 1923, eu conseguira um emprego enfadonho e pouco rendoso numa revista, em Nova Iorque; e na impossibilidade de pagar o aluguel de uma moradia decente, comecei a vagar de uma pensão barata para outra, em busca de um quarto que combinasse as qualidades de limpeza adequada, mobiliário tolerável e preço bastante módico. Constatei, antes que passasse muito tempo, que só me restava optar entre diferentes males; entretanto, pouco depois dei com uma casa na Rua 14 Oeste que me repugnava muito menos do que as outras que eu havia experimentado.
Era uma mansão de grés pardo, com quatro pavimentos, que datava aparentemente de fins da década de 1840, com mármores e madeirames cuja magnificência enodoada e manchada lembrava que no passado o prédio conhecera altos níveis de elegante opulência. Os quartos, amplos e de enorme pé-direito, decorados com um papel de parede inacreditável e com cornijas ridiculamente complicadas, tinham um deprimente bafo de bolor, bem corno um vago cheiro de cozinha; entretanto, o chão era limpo, a roupa de cama bastante aceitável e a água quente nem sempre estava fria ou desligada, de modo que vim considerar a casa como um lugar pelo menos suportável para hibernar até poder realmente voltar a viver. A senhoria, uma espanhola desmazelada e quase barbada, chamada Herrero, não me amolava com mexericos ou reclamações a respeito da luz que eu deixava acesa até tarde em meu quarto, no terceiro andar, dando para a rua; e os demaispensionistas eram tão sossegados e calados quanto se poderia desejar. Eram na maioria espanhóis, só um pouco acima do nível mais grosseiro e ínfimo. O único motivo realmente sério de aborrecimento era o ruído dos bondes na rua.
Eu já estava residindo ali bem umas três semanas quando ocorreu o primeiro incidente insólito. Certa noite, por volta das oito horas, escutei um barulho como que de líquido que caísse no chão, e de repente me dei conta que já fazia algum tempo que o ar estava impregnado de um penetrante odor de amônia. Olhando em torno, vi que o teto estava molhado e gotejante; parecia que a infiltração provinha de um canto do lado que dava para a rua. Ansioso por cortar o mal pela raiz, desci depressa para falar à senhoria, que me garantiu que o problema seria logo resolvido.
- El doctor Muñoz - comentou ela, subindo as escadas correndo, em minha frente - deve ter derramado seus produtos químicos. Está fraco demais para cuidar de si próprio... cada vez mais fraco... pero no tiene nadie que pueda ayudarlo. E muito esquisito com essa doença dele... toma banhos de cheiros estranhos o dia inteiro, nem pode ficar nervoso ou sentir calor. Ele mesmo arruma o quarto... O quartinho dele vive cheio de garrafas e máquinas e ele não pratica mais a medicina. Mas antigamente ele foi famoso... mi padre ouviu falar dele em Barcelona... e há poco tiempo tratou o braço do bombeiro que cuida do encanamento e que começou a doer de repente. Ele nunca sai, só vai até o terraço, e mi hijo, Esteban, traz, para ele comida, roupa limpa, remédios e produtos químicos. Diós, a quantidade de sal amoníaco que esse hombre usa para se refrescar!

A Sra. Herrero desapareceu pela escada do quarto andar e eu voltei para meu quarto. A amônia parou de pingar e eu sequei a que havia caído. Enquanto abria a janela para arejar o cômodo, ouvi os passos pesados da senhoria no andar de cima. Quanto ao Dr. Muñoz, eu nunca havia escutado seus passos, lentos e macios. Só havia escutado um ruído que parecia ser o de um mecanismo com motor a gasolina. Fiquei a imaginar, por um momento, qual poderia ser a estranha enfermidade desse homem e se sua recusa obstinada em aceitar auxílio não resultaria de uma excentricidade infundada. Lembro-me de ter tido um pensamento banal, o de quanto é patética a situação de urna pessoa eminente que decaiu socialmente.
Talvez eu jamais viesse a conhecer o Dr. Muñoz se não fosse o ataque cardíaco que de repente me acometeu numa tarde em que eu estava escrevendo em meu quarto. Médicos haviam-me falado do perigo que representam tais crises, e eu sabia que não havia tempo a perder; por isso, ao me recordar do que a senhoria tinha dito sobre a ajuda que o inválido prestara ao bombeiro, arrastei-me pela escada e bati debilmente à porta do quarto que ficava em cima do meu. Minha batida foi respondida em bom inglês por uma voz curiosa, mais ou menos à direita, que me indagou o nome e profissão. Uma vez respondidas as perguntas, abriu-se um pouco a porta ao lado daquela em que eu batera.
Recebeu-me uma lufada de ar frio; e embora o dia fosse um dos mais tórridos do fim de junho, tive um estremecimento ao transpor a porta e entrar num espaçoso apartamento, cuja decoração suntuosa e de bom gosto constituiu uma surpresa naquele ninho de penúria e miséria. Um sofá dobrável atendia, agora de dia, à sua função de sofá, e o mobiliário de mogno, o magnífico papel de parede, as pinturas antigas e as esplêndidas estantes de livros indicavam antes o estúdio de um fidalgo que um quarto de pensão. Percebi então que o quarto que ficava sobre o meu - o quartinho com garrafas e máquinas, mencionado pela Sra. Herrero - era simplesmente o laboratório do doutor e que seus aposentos principais ficavam naquele amplo apartamento adjacente, cujas alcovas corretas e o grande quarto de banho lhe permitia ocultar toda roupa e objetos gritantemente utilitários. O Dr. Muñoz, evidentemente, era um homem com berço, cultura e excelente gosto.
A figura que eu tinha diante de mim era a de um homem baixo, mas muito bem proporcionado, trajado numa indumentária um tanto formal, de corte e feitio perfeitos. Um rosto bem-feito, de expressão senhoril, mas em nada arrogante, tinha a orná-lo uma barba aparada e um pouco grisalha, enquanto um pincenê antiquado se antepunha a olhos grandes escuros, equilibrando-se num nariz aquilino que dava um toque mourisco a urna fisionomia em tudo mais marcadamente celtibérica. Uma cabeleira basta e bem-tratada, que indicava visitas regulares de um barbeiro, partia-se com muita elegância sobre a testa alta. E toda a impressão que aquele vulto transmitia era de acentuada inteligência, origens nobres e excelente educação.
Não obstante, ao contemplar o Dr. Muñoz naquela lufada de ar frio, fui tomado de uma repugnância que nada em seu aspecto poderia justificar. Somente sua tez, que se inclinava à palidez e a frieza do toque de sua mão poderiam ter dado uma base física a essa sensação, porém mesmo essas coisas teriam de ser relevadas, dada a notória invalidez do homem. É ainda possível que tenha sido aquele frio singular que me indispôs, pois tamanha gelidez era anormal num dia tão quente, e o anormal sempre desperta aversão, suspeita e temor.
No entanto, a repulsa logo cedeu lugar à admiração, uma vez que a extrema perícia daquele estranho médico se manifestou incontinenti, a despeito da algidez e do tremor de suas mãos exangues. A um olhar ele compreendeu minhas necessidades, atendendo-as com habilidade de mestre; enquanto me assistia, consolava-me com voz harmoniosamente modulada, embora inusitadamente oca e sern timbre, assegurando-me ser o mais implacável dos inimigos da morte, e que havia dissipado sua fortuna e perdido todos os amigos numa vida inteira de experiêcias extravagantes, dedicadas à repressão e extirpação de tamanho flagelo. Parecia haver nele um certo fanatismo benevolente, e ele não cessava de divagar, quase garrularnente, enquanto me auscultava o peito e preparava uma beberagem de drogas trazidas de seu pequeno laboratório. Era evidente que a companhia de uma pessoa bem-nascida representava para ele uma rara novidade naquele ambiente de indigência e o levava a uma desusada loquacidade, ao ser empolgado por recordações de dias melhores.
Sua voz, embora estranha, era ao menos apaziguadora; e eu não percebia sequer o som de sua respiração enquanto ele pronunciava aqueles longos períodos, tão cheios de lhaneza. O doutor procurava afastar meus pensamentos da crise cardíaca, discorrendo sobre suas teorias e experiências. Lembro-me bem do tato com que ele procurou consolar-me da debilidade de meu coração, insistindo em que a vontade e a consciência são mais fortes do que a própria vida orgânica, de forma que se urna organização física for originalmente saudável e preservada com cuidado pode, mediante um realce cientifico dessas qualidades, reter uma espécie de animação nervosa, apesar das mais sérias lesões, defeitos ou mesmo ausências no conjunto de órgãos específicos.
Algum dia, dis-se-me ele meio a brincar, poderia me ensinar a viver (ou ao menos manter alguma espécie de existência consciente) até mesmo sem coração! Quanto a si, afligia-o uma série de enfermidades que exigiam um regime rigorosíssimo, que incluía o frio constante. Qualquer elevação marcada da temperatura poderia, caso se prolongasse, afetá-lo de maneira fatal; e a frialdade de sua moradia, cerca de 13º centígrados, era mantida por um sistema absorvente de arrefecimento a amônia. As bombas do sistema eram impulsionadas pelo motor a gasolina que eu já escutara de meu quarto.
Aliviado de minha crise num tempo maravilhosamente breve, deixei aqueles aposentos frígidos como discípulo e servidor do talentoso recluso. Depois disso, fiz-lhe várias visitas, devidamente agasalhado. Ouvia-lhe o relato de pesquisas secretas e resultados quase espantosos, e estremecia um pouco ao examinar os volumes incomuns e inacreditavelmente antigos em suas estantes. Por fim, convém acrescentar, fiquei quase curado para sempre de minha doença, devido à sua terapia tão efetiva. Ao que parece, ele não desdenhava os encantamentos dos medievalistas, porquanto acreditava que essas fórmulas crípticas contivessem raros estímulos psicológicos, que poderiam, concebivelmente, exercer efeitos singulares na substância de um sistema nervoso que tivesse sido abandonado pelas pulsações orgânicas. Comoveu-me o que ele contou sobre o idoso Dr. Torres, de Valência, que compartilhara com ele suas primeiras experiêcias, e que cuidara dele por ocasião da grave enfermidade que o acometera dezoito anos antes, e da qual procedia sua atual debilitação.
Pouco depois de haver o venerando facultativo salvo o colega, ele próprio sucumbira ao horrendo inimigo que combatera. Possivelmente o esforço tivesse sido excessivo; o Dr. Muñoz deixou claro, em sussurros (conquanto não descesse a minúcias), que os métodos de
cura haviam sido excepcionalíssimos, envolvendo cenas e processos desaprovados por galenos idosos e conservadores.
Com o passar das semanas, observei com pesar que, com efeito, meu novo amigo estava, lenta mas inequivocamente, perdendo suas forças, tal como sugerira a Sra. Herrero. O aspecto lívido de sua fisionomia se intensificava, a voz se fazia mais vazia e indistinta, seus movimentos musculares mostravam menor coordenação, seu espírito e sua força de vontade revelavam menos fortaleza e iniciativa. Não parecia ele de modo algum desatento a essa triste transformação, e pouco a pouco tanto sua expressão quanto sua conversa foram adquirindo uma ironia desagradável que restaurou em mim a repulsa sutil que eu havia sentido de início.
Ele foi cultivando caprichos esquisitos, afeiçoando-se a especiarias exóticas e incenso egípcio até que seu quarto recendia como a tumba de um faraó no Vale dos Reis. Ao mesmo tempo, aumentava seu desejo de ar frio, e com minha ajuda ele ampliou a tubulação de amônia de seu quarto e modificou o sistema de bombas e a alimentação de sua máquina de refrigeração, até conseguir manter a temperatura entre 1º e 4,5º centígrados e, finalmente, na casa de 2º centígrados negativos. O banheiro e o laboratório, naturalmente, eram menos frios, para que a água não se congelasse no encanamento e os processos químicos não se vissem prejudicados. O inquilino do cômodo ao lado do dele queixou-se do ar gélido que entrava pela porta de ligação; por isso, ajudei o doutor a instalar re-posteiros pesados, que mitigassem o problema.
Uma espécie de horror crescente, de feitio bizarro e mórbido, parecia possuí-lo. Ele falava da morte sem cessar, mas ria cavamente quando coisas como providências fúnebres ou de sepultamento eram obliquamente sugeridas. De maneira geral, ele se converteu em companhia desconcertante e até repelente. Contudo, por gratidão ao modo como ele me curara, eu não me dispunha a abandoná-lo aos estranhos que o cercavam, e tinha o cuidado de espanar-lhe o quarto e atender às suas necessidades de cada dia, metido num sobretudo pesado que eu havia comprado especialmente para esse fim. Da mesma forma, eu fazia grande parte de suas compras e observava com assombro alguns dos produtos químicos que ele encomendava a farmacêuticos e fornecedores de laboratórios.
Uma crescente e inexplicada atmosfera de pânico parecia avolumar-se em seu apartamento. Toda a casa, como já foi dito, recendia a bolor; entretanto, o odor em seu apartamento era pior e, apesar de todas as especiarias e do incenso, bem como dos acres produtos químicos dos banhos (agora contínuos) que ele insistia em tomar sem ajuda, percebi que o cheiro deveria estar ligado à sua enfermidade, e tive um calafrio ao refletir sobre qual poderia ser. A Sra. Herrero persignava-se ao olho e deixouode bom grado aos meus cuidados, sem nem mesmo permitir que o filho, Esteban, continuasse a lhe prestar serviços. Quando eu sugeria que ele buscasse o auxílio de outros médicos, o inválido revelava fúria, tão grande quanto ele parecia atrever-se a demonstrar. Era evidente que ele receava o efeito físico da emoção violenta, e no entanto sua força de vontade e seus ímpetos antes se fortaleciam que minguavam, e ele se recusava a guardar o leito. A lassidão dos primeiros tempos de sua enfermidade deu lugar a um retorno de sua disposição fogosa, de modo que ele parecia arremessar reptos ao rosto do demônio da morte no momento mesmo em que esse antigo inimigo se apossava dele. A simulação do comer, que sempre fora, curiosamente, quase um formalismo, foi praticamente abandonada; e somente a força mental parecia protegê-lo
do colapso total.
Adquiriu ele o hábito de redigir longos documentos que cuidadosamente lacrava e cercava de recomendações para que eu os transmitisse, após sua morte, a certas pessoas por ele nomeadas - na maioria letrados das Índias Orientais, mas entre as quais havia um outrora famoso médico francês, hoje em geral tido como morto, e a respeito de quem as coisas mais inconcebíveis haviam sido murmuradas. Quero dizer desde logo que queimei todos esses papéis, sem entregá-los nem abrí-los. Seu aspecto e sua voz se tomaram assustadores ao extremo, e sua presença quase insuportável. Num certo dia de setembro, ao vê-lo de relance, um homem que tinha vindo consertar sua lâmpada elétrica de mesa foi tornado de uma crise
epiléptica, crise essa para a qual o doutor prescreveu remédios eficientes, enquanto se mantinha longe da vista. Aquele homem, é bom que se diga, havia passado pelos horrores da grande guerra sem haver sucumbido a um susto tão medonho.
Foi então que, em meados de outubro, sobreveio, com subitaneidade estarrecedora, o horror dos horrores. Numa noite, mais ou menos às onze horas, a bomba da máquina refrigeradora quebrou-se, de forma que dentro de três horas o processo de resfriamento amoniacal se tornou impossível. O Dr. Muñoz chamou-me, batendo com os pés no chão, e pus-me a trabalhar desesperadamente para reparar o dano, enquanto meu anfitrião praguejava num tom cuja cavidade inerte e impetuosa foge a qualquer descrição. Não obstante, meus esforços amadorísticos foram baldados; tendo ido buscar um mecânico de uma garagem vizinha, que ficava aberta a noite toda, ficamos sabendo que nada poderia ser feito até de manhã, quando
um novo pistão teria de ser adquirido. A indignação e o medo do ermitão moribundo, elevando-se a proporções grotescas, parecia ser de molde a destruir o que restava de seu físico fraquejante; e em certo momento um espasmo fez com que ele levasse as mãos aos olhos e corresse ao banheiro. Saiu dali tateando o caminho, com o rosto envolvido em bandagens, e nunca mais lhe vi os olhos. O frio do apartamento diminuía agora sensivelmente, e ao dar as cinco da manhã o médico retirou-se para o banheiro, ordenando-me que o mantivesse abastecido com todo o gelo que eu pudesse obter em farmácias e bares.
Ao voltar de minhas excursões, às vezes desencorajadoras, edeitar o que havia conseguido junto à porta do banheiro, eu escutava um contínuo espadanar de água lá dentro, enquanto uma voz grossa pedia "Mais... mais!" Por fim, raiou um dia quente, e uma a uma as lojas se abriram.
Pedi a Esteban que ajudasse com o provisionamento de gelo enquanto eu ia adquirir o pistão da bomba, ou que encomendasse o pistão enquanto eu continuava a buscar gelo; no entanto, instruído pela mãe, ele se recusou peremptoriamente a ajudar.
Por fim, contratei um vadio de aspecto miserável que encontrei na esquina da Oitava Avenida para manter o paciente abastecido de gelo, trazido de uma lojinha onde o apresentei, e me entreguei, diligente, à tarefa de localizar um pistão de bomba e de contratar operários que soubessem instalá-lo. A tarefa parecia quase interminável, e fui tomado de ira quase tão violenta quanto a do ermitão ao ver as horas se escoando num ciclo infatigável de telefonemas infrutíferos, de correrias de um lado para outro, indo ali e acolá' de metrô e transporte de superfície.
Mais ou menos ao meio-dia encontrei um fornecedor satisfatório numa rua remota do centro da cidade, e aproximadamente à 1:30 da tarde cheguei à pensão com as peças necessárias e dois mecânicos fortes e inteligentes.
Eu havia feito tudo quanto me fora possível e esperava chegar em tempo. O negro terror, no entanto, me precedera. A pensão se transformara numa casa de orates, e sobre as vozes aterradas escutei um homem rezando com voz gravíssima.
Havia pelo ar um quê de diabólico e os inquilinos rezavam o rosário com maior vigor ao sentirem o cheiro que exalava por baixo da porta fechada do médico. O vagabundo que
eu contratara, ao que parece, havia fugido aos gritos e de olhos esbugalhados pouco depois de haver feito sua segunda entrega de gelo, talvez corno resultado de excessiva curiosidade. Não podia, está claro, trancar a porta ao sair; no entanto, agora ela estava fechada, presumivelmente por dentro. Não se ouvia som algum, com exceção de uma espécie indefinível de vagaroso e denso gotejar.
Depois de consultar a Sra. Herrero e os trabalhadores, e apesar do medo que me corroía a alma, opinei que deveríamos arrombar a porta; todavia, a senhoria descobriu uma maneira de virar a chave pelo lado de fora, com auxílio de um arame. Havíamos previamente aberto as
portas de todos os outros quartos naquele corredor, além de descerrado as janelas até em cima. Agora, protegendo os narizes com lenços, invadimos, trêmulos, o amaldiçoado quarto, que resplendia com o sol quente do começo datarde.
Uma espécie de trilha escura e lodosa levava da porta aberta do banheiro até a porta do corredor, e dali à escrivaninha, onde uma pocinha horrorosa se acumulara. Havia ali alguma coisa rabiscada a lápis, como que por um cego trêmulo, num pedaço de papel nojentamente manchado, ao que parecia pelas próprias garras que haviam traçado as apressadas palavras finais. Depois a trilha conduzia ao sofá e terminava de um modo que não pode ser descrito.
O que estava, ou tinha estado, no sofa não posso nem ouso dizer aqui. Mas eis o que decifrei no papel pegajosamente manchado, antes de riscar um fósforo e reduzí-lo a cinzas; o que decifrei tornado de pânico, enquanto a senhoria e os dois mecânicos saíam em disparada daquele lugar infernal para ir relatar suas histórias incoerentes na delegacia de polícia mais próxima.
As palavras nauseantes pareciam quase inacreditáveis naquele fulgor amarelo de sol, com o matraquear de automóveis e caminhões que vinham subindo ruidosamente a Rua 14, mas, no entanto, confesso que acreditei nelas naquele momento. Se acredito agora naquelas palavras, honestamente não sei dizer. Existem coisas a respeito das quais é melhor não especular, e tudo quanto posso dizer é que detesto o cheiro de amônia e sinto-me desfalecer ante uma lufada de ar inusitadamente frio.
"O fim chegou", dizia o rabisco pestilencial. "Não haverá mais gelo... o homem olhou e correu. Fica cada vez mais quente e os tecidos não poderão durar mais. Imagino que saibas... o que eu disse sobre a vontade, os nervos e o corpo preservado depois que os órgãos cessassem de funcionar. Era uma boa teoria, mas não podia ser mantida indefinidamente. Houve uma deterioração gradual que eu não previra. O Dr. Torres sabia, mas o choque o matou. Não pôde suportar o que teria de fazer; tinha de me meter num lugar estranho e escuro, mas atentou à minha carta e me fez voltar, com seus cuidados. E os órgãos jamais voltariam a funcionar novamente. Tinha de ser feito à minha maneira (preservação artificial), pois vês: eu morri naquela época, há dezoito anos.”

20.12.06

ALGUÉM FAZ PARTE DA ESCURIDÃO

O contista Luciano Barreto estreía nas contribuições da Câmara dos Tormentos com um conto criativo e aterrador.
























Alguém faz parte da escuridão

por:Luciano barreto

Dois homens bebiam no bar. Um deles queria ira embora. E o outro não deixava. Falava que ainda era cedo. Que a noite iria melhorar, entre outras coisas.

— Estranho, meu primo paga! Se não pagar põe na minha conta que acerto com você, mês que vem. Vou embora. Vou aproveitar que ele foi ao banheiro. – o comerciante, atrás do balcão e percebendo que Mauro estava bêbado, concordou com o polegar empinado. Seu primo não sabia a hora de parar de beber. Então teve de usar este artifício.

Ele caminhou alguns metros e, trôpego, se aproximou da porta. Fazia sete graus naquela madrugada de quinta-feira. Vira a temperatura na praça central da cidade, antes de encher a cara no bar do estranho. Com imensa dificuldade começou a empreitada de procurar sua chave. O portão era somente empurrar, não necessitava de chave, já a porta não. O frio queimava suas orelhas e as roupas que usava não eram assaz. Uma calça jeans, uma camisa careca, um casaco surrado pelo tempo e um par de sandálias de borracha compunham seu traje naquela noite. A cada palavra que falava, junto com o som saía o vapor clássico das noites frias.

Após uma procura debalde, praguejou e sentou ao pé da porta. As bebidas que ingerira já estavam na garganta e queriam fazer o caminho inverso agora. Seus músculos estavam rígidos. A pele seca. Seu rosto já havia assumido um tom rubro devido à baixa temperatura da madrugada. Encolheu-se todo. A ânsia de vômito lhe rondando e mesmo assim um conhaque ali, naquele momento, seria algo aquecedor. Lembrou-se, então, que havia escondido a chave em uma planta, perto da porta. Sabia que se fosse para o bar do estranho, começaria a beber até o dinheiro acabar. E, por conseguinte, poderia perder a chave de sua pequena casa. Sendo assim a escondera no vaso da planta. Com dificuldade virou-se, ainda sentado, e começou a fuçar o vaso. Alguns segundos e nada! A chave não estava lá. “Onde estaria essa maldita chave?”. Ele pensou. Era uma chave prateada e redonda. O frio o açoitava com rigor. Fez um bico e o encostou à ponta do nariz. Sentiu seu nariz gelado. Era iluminado apenas por uma penumbra que provinha de uma lâmpada colocada acima da porta de sua casa. Um corredor ladeava sua casa. Nos fundos, um quintal com uma enorme árvore.

Mauro, então, iria dormir ali mesmo, ao relento. Já havia se entregado, quem sabe, a uma péssima noite de sono ou à morte. A morte pelo frio. Subitamente resolveu dar uma volta no quintal. A parte mais ao fundo – à noite – era muito escura. Possuía até os locais para colocar lâmpadas, os bocais presos à parede, mas nesses locais não existiam lâmpadas. “Contensão de despesas”, dissera uma vez ao seu primo que fora visitá-lo. Ele, andando a custo, começou a caminhar pelo corredor em direção aos fundos do quintal.

— Tô, muito chapado. Preciso parar com a bebida. Está escuro aqui. Ah, dane-se. Com certeza não preciso de luz. Eu sei exatamente onde está cada coisa nesse quintal. Com o salário que recebo, tenho a obrigação de andar nesta escuridão e andar bem.

No meio do quintal havia um enorme jambeiro. Nos dias de calor ele dava uma ótima sombra. Nos dias de chuva, uma ótima tapagem. Só nos dias de frio que ele não tinha muita utilidade. Seus grossos galhos retorcidos parecidos braços desvairados no ar. As folhas oblongas, como enormes línguas expelidas de uma boca insensata. Mauro, em seus dias de sobriedade, construíra uma escada de madeira acoplada ao tronco da árvore. Mas, com certeza, não iria subir aquela escada. Estava bêbado demais para tal tarefa. Então caminhou vagarosamente até perto do tronco. Encostou a mão no caule e tossiu algumas vezes. Iria bolçar a bebida ali mesmo, se precisasse. A escuridão era gigantesca. O tênue brilho da lâmpada incandescente sobre a porta do corredor não iluminava aquela parte do quintal e o tamanho da copa da árvore sobre quase todo o quintal impedia a passagem de qualquer luminosidade advinda de fora.

O frio ainda o incomodava. Sentou-se ao pé da árvore. Retirou do bolso do casaco, com um pouco de dificuldade, um maço de cigarros de filtros amarelos e um isqueiro que estava dentro da carteira junto aos cigarros. Rodou a pedra do isqueiro e surgiu a primeira faísca, mas não a chama. Rodou mais três vezes e só faíscas. O cigarro preso aos lábios e – por enquanto só a escuridão o tocava. Balançou o isqueiro e tentou novamente. As duas primeiras tentativas foram frustradas, contudo a terceira foi certeira. Encostou a chama no cigarro e puxou a fumaça com avidez. Mauro só queria dar uma talagada em qualquer conhaque barato naquele momento. Intuiu um barulho ao fundo. “Esses ratos são uma peste!” – falou ele em voz alta, ignorando o som. Lembrou-se de uma antiga música de um cantor muito conhecido e começou a assoviar sua melodia. A cada tragada sua face refulgia devido à luminosidade da brasa que ponteava o cigarro. Muitas folhas espalhadas no chão, secas e geladas, rolavam no meio da escuridão. Mauro sentiu algumas folhas em seus pés.

— Não adianta limpar. Elas caem e pronto! – disse, calmamente, olhando para a brasa do cigarro. Deu mais um trago e com a visão periférica viu algo na árvore. Engoliu seco. Virou-se de frente – ainda sentado – e deu outro longo trago segurando o cigarro com o indicador e o polegar direito. O foco do olhar era um dos galhos da árvore. Este trago fora para tentar iluminar o que vira há poucos segundos. Tragou demoradamente enquanto olhava para a árvore. A fumaça saía lentamente de sua boca quando disse:

— Deus do céu! – o cigarro caíra de sua mão e apagara-se em contato com as folhas. Ele começou, já trêmulo, a riscar o isqueiro para iluminar a árvore. Balançou-o e tentou de novo, apontando-o para um dos galhos da árvore. Depois que a chama produzida pelo isqueiro iluminou timidamente a árvore, ele balbuciou:

— Meu Pai do céu! – os olhos, arregalados, viram o corpo de um homem pendurado pelo pescoço em um dos galhos do pé de jambo. Os pés descalços apontando insanamente para o chão. O vento balançava debilmente o homem. Tentou levantar-se desesperadamente, mas um cão, que aparecera do nada, o vigiava. E ao primeiro movimento dele, o canino começou a rosnar medonhamente, em sua direção. Assim, ele voltou ao seu lugar de origem. “Que cachorro é esse?” – dissera para si mesmo. Tudo isso iluminado apenas pela chama do isqueiro. Numa mutação apavorante, começou a aparecer em volta do vira-lata pequenas chamas avermelhadas que corroíam sua carne num método invasivo, de fora para dentro. O animal gemia de dor. A corrosão continuou até o cão tornar-se uma forma redonda de cor vermelha, pairando no ar, recalcitrando à gravidade. Mauro olhava aquilo com horror. Seus olhos refletiam a cor vermelha que pairava a sua frente. Então o espectro vermelho começou a se locomover no ar. Rumou, lentamente, em direção a Mauro, que se encolhia cada vez mais junto ao largo tronco da árvore. Parou exatamente em frente ao rosto seu rosto. E em seguida começou a se deslocar para o corpo suspenso na árvore. O brilho do espectro iluminava o negrume do local. O homem acompanhava o movimento fugaz da matéria sobrenatural, que parou em frente ao corpo inerte do enforcado e englobou sua cabeça. A cena era insólita. O espectro irradiava uma luz avermelhada que deu possibilidade de Mauro ver o que acontecia no galho da árvore. O defunto, pendurado, balançando ao sabor do vento com um espectro avermelhado semitransparente englobando sua cabeça, qual uma touca disforme arriada até o pescoço. Em segundos, a coisa entrou pelas narinas do enforcado e, incrivelmente, o homem abriu os olhos resplandecendo um tom avermelhado, levantou os braços – antes pendidos – e retirou a corda do pescoço, a qual agora pendia sozinha, com um nó corrediço, do galho. A queda no chão foi equilibrada. O zumbi se aproximou do dono do imóvel. Os olhos luzindo a cor vermelha. Ao esticar o braço para o outro a fim de tocá-lo, este começou a ter a carne corroída pelo mesmo processo macabro do canino. Em questão de segundos o zumbi havia sumido, restando apenas o mesmo espectro avermelhado, porém agora um pouco maior; mais vultoso. Mauro tremia de frio e de medo. Mais medo que frio! Presenciara algo inexplicável e medonho.

O espectro pairou por segundos no ar, a sua frente, e repentinamente tomou a cabeça do espectador. Ele tentou – inutilmente – estapear a matéria gasosa que se aproximara, mas fora em vão. Suas mãos trespassavam a entidade vermelha. Quando sua cabeça foi tomada, não conseguiu respirar mais. Debateu-se por menos de um minuto.

Nesse minuto de sofrimento, ele viu um ser de mais ou menos uns noventa centímetros trajando uma túnica negra o olhando. A roupa tinha um cuculo que lhe escondia parte do rosto. Somente era possível ver, à luz vermelha da força letal, parte de um rosto desbotado e dentes pontiagudos vazando uma bocarra. O homúnculo com as mãos para trás; como se esperasse algo daquela situação. Em volta do pescoço e sobre a roupa negra, uma chave prateada e redonda pendurada em seu pescoço.

Depois que Mauro fechou os olhos e parou de se debater, o espectro entrou em suas narinas e ele reabriu os olhos, agora vermelhos. Subiu pela escada do tronco, lentamente. Equilibrou-se corretamente no galho. Abaixou-se, pegou a corda, colocou-a no pescoço, ajustou-a ao diâmetro de seu pescoço e olhou para o encapuzado, no chão. Este apenas meneou a cabeça em sentido positivo e o hospedeiro da entidade pulou do galho. Os sons foram característicos. A corda emitiu um baque surdo ao ser esticada. O galho rangeu um pouco e balançou. Algumas folhas secas caíram, o vento soprou forte e frio, o corpo de Mauro ainda balançava, porém agora na mais das assustadoras trevas.

Então a matéria vermelha desprendeu-se do mais novo cadáver, saindo por suas narinas e tornou a iluminar o local com seu brilho aterrador. Moveu-se em direção à pequena criatura de roupa preta e entrou no vão do capuz, sumindo em seu interior. A escuridão voltou a reinar e aquele pequeno e diabólico, ser era parte dela.

Lá fora, no frio da madrugada, se aproximava o primo de Mauro, extremamente bêbado. Tencionava reclamar com o parente e depois dormir em sua casa. Estava muito bêbado para voltar para a própria casa. Em pouco tempo entrou no quintal e bateu à porta algumas vezes. Depois chamou duas ou três vezes. Viu o vaso todo revirado. Um instinto o empurrou em direção aos fundos, atrás de seu primo. Ele só não sabia que alguém o esperava na escuridão. E esse alguém, definitivamente, não era Mauro.

9.12.06

O ASSOMBRO NA CASA DO SIDEMAR

















Rogério silvério de farias, lendário colaborador das clássicas revistas "Mestres do Terror" e "Calafrio", da Editora D-Arte, na década de 80, estréia como colaborador da câmara com um conto fantasmagórico assustador baseado em fatos reais!!!







O ASSOMBRO NA CASA DO SIDEMAR

Conto de Rogério Silvério de Farias





Querem ouvir? Eu conto! Mas é uma história de horror! Vocês têm certeza de que estão preparados para as coisas medonhas que vou contar? Estão?... Então, meus senhores, vou contar, mas não me responsabilizo pelos danos que esta história macabra possa causar em seus nervos. A história é deveras apavorante. Portanto, quem tiver nervos fracos, que vá ler outra coisa, outra coisa fresca como Paulo Coelho, por exemplo. Gosto de falar sobre as sombras e os mistérios que nelas habitam, gosto de falar da noite e do medo, do que se oculta nas trevas, do pânico, do horror catacúmbico. Gosto de falar das criptas, dos sepulcros antigos, dos pântanos enevoados, dos desertos e bosques solitários onde seres invisíveis dançam a terrível melodia da morte. Gosto de falar não somente das coisas do Céu e da Terra, mas das coisas do Inferno também. E que Deus tenha piedade da minha alma de contador de histórias proibidas e fantásticas!
A casa tinha sido erguida sobre um antigo sambaqui, nas regiões do Sul onde proliferam tais lugares estranhos onde jazem ainda restos de esqueletos, acumulados pelos habitantes pré-históricos do litoral e das margens de lagos e rios brasileiros, sítios onde antigas forças invisíveis parecem atingir o paroxismo nas noites de lua cheia. Forças etéricas, ali, são geradas, forças místicas, de incalculável assombro catacúmbico e nosferático, disso eu não tenho dúvidas.
Coisas estranhas aconteceriam naquela casa. Coisas comuns não a Terra, mas aos abismos negros que existem nas profundezas do negro Inferno.
Estava eu e o Sidemar, na casa. Era verão. Calor. Noite quente, abafadiça. A noite era de lua cheia. Propícia a fenônemos paranormais, sobrenaturais. Fenômenos que desafiam toda a lógica apregoada pelo ceticismo estéril.
Somente a luz da tv ligada, nós assistíamos um imbecil programa de auditório. Devo dizer que meu amigo Sidemar era um tipo estranho, excêntrico. E solitário. Sua família pedira que eu passasse um fim de semana com o sombrio cavalheiro de olhos tristonhos e negros como os poços do mundo da escuridão dos demônios. Eu não o conhecia muito bem. De sua infância e adolescência eu pouco sabia. Era psicólogo e advogado, o Sidemar, mas não exercia nenhuma das profissões; vivia de vender suas pinturas a óleo, quadros em estilo surrealista. Também era poeta bissexto, vez por outra publicava um livrinho contendo poemas que lembravam o estilo de Edgar Allan Poe.
De repente, das trevas da noite... entrou uma coisa alada, negra, lépida. Enfiando-se janela adentro, balançando as cortinas.
A princípio pensei tratar-se de um maldito morcego. Ou então um pássaro ou inseto da noite estival. Mas não era. Era algo muito estranho, pude ver na penumbra iluminada pela luz azulada da tv, era algo como uma imensa borboleta negra, em cujas asas viam-se desenhos estranhos, como que mandalas feitas por algum lunático.
Agora, nesta parte da história, quero falar sobre cadáveres. Mais precisamente, um cadáver.
A minha história tem cadáver, meus amigos. Eu não escrevo coisas edulcoradas e esperançosas. Não sou um Paulo Coelho. Eu sou Rogério Silvério de Farias, o sombrio, aquele que escreve como quem desenterra cadáveres.
Acontece que morreria alguém na frente da casa onde estávamos. Um motoqueiro fincou a cara no poste. Seu rosto ficou estraçalhado, uma massa de sangue e carne lacerada, amassada horrivelmente. Lavado de sangue. Na verdade sua cabeça quase fora arrancada com o impacto brutal.
Fomos averiguar, o estrondo tinha sido grande. A suposta borboleta sumira, voando e saindo pela outra janela. Tínhamos largado a tv e ido atrás da coisa alada. E agora estávamos olhando para o poste a frente da casa, e o cadáver do motoqueiro.
Ele quebrara o pescoço. A posição grotesca do cadáver, a motocicleta jogada ao chão, tudo deixava meu amigo Sidemar ainda mais nervoso, mas ele tinha me seguido até o portão.
Logo encheu de gente no local. Vizinhos e curiosos, alguns de pijama. Era mais de meia noite.
Meu amigo Sidemar ficava cada vez mais nervoso. Ele começou a dizer que a borboleta negra, ou o que quer que fosse aquela coisa alada, era o Anjo da Morte.
Mas o pior ainda estava por vir. O horror estava só começando.
Os companheiros do motoqueiro, que vinham da mesma festa da qual viera o morto, chegaram atrasados e ficaram atônitos ao ver o acidentado, vitimado pela morte.
Um deles, o irmão do defunto, começou a chorar como uma criança, dizendo: “Ele acelerou a motocicleta por causa daquela coisa na estrada, aquela coisa, aquela assombração do Inferno que vimos na estrada, a menina, a menina de branco..."
Incrédulo, comecei a indagar sobre quem era a tal menina de branco. Engoli em seco a ouvir de um vizinho uma explicação. Senti um calafrio na espinha.
Corriam lendas locais sobre essa menina, uma assombração contada por pescadores mais antigos.
Diziam os velhos caiçaras, ela é o ANJO DA ESTRADA DO INFERNO!
Pasmei ao ouvir aquilo.
A visao do cadáver com a cabeça quase que totalmente destroçada no poste, caído grotescamente, e a sirene da ambulância chegando...tudo deixava meu amigo Sidemar num estado de nervosismo alucinante.
Os primeiros pingos de chuva, os trovões soando, o relâmpago iluminando o pobre motoqueiro morto, agora sendo levado para o necrotério da cidade.
Eu sabia que os horrores daquela noite logo atingiriam o zênite da loucura. Meu amigo sentiu-se mal depois que a ambulância levou o cadáver do motoqueiro.
A chuva aumentou e entramos para dentro de casa. A chuva era forte, agora.
Fomos dormir com a imagem do cadáver com o pescoço quebrado em nossa mente.
Adormeci com um pensamento de revolta na mente: "Por que Deus pôde matar alguém assim? Por que a morte, Deus? Acaso seremos nós o teu gado?"
Lá pelas três da madrugada acordei-me num sobressalto.
No quarto ao lado meu amigo estava gritando de terror.
Havia faltado energia elétrica, imaginem a minha situação e o meu desespero quando tentei inutilmente acender as luzes, pressionando o interruptor.
Então acendi um isqueiro, e fui ao quarto de meu amigo. O que vi me deixou apavorado.
Iluminei o rosto de meu amigo, sentado na cama.
Eu preferia que Deus tivesse me cegado, nunca vou esquecer...Meu amigo Sidemar estava apavorado, babava, suava, tremia, os olhos deles contemplavam algo na escuridão medonha do quarto. Algo terrível. Algo medonho. Um assombro!
Eu estava meio sonolento ainda, mas eu vi, eu vi o horror!Juro que vi! Não, senhores, eu não sou louco! Um louco não guardaria na memória aquela cena sobrenatural, aterrorizante...aquele vulto sinistro...um vulto espectral, uma sombra, uma sombra do país dos mortos, uma sombra do Além!
Era o corpo astral do motoqueiro que morrera diante da casa, horas antes, isto era óbvio. O pescoço quebrado do espectro era a cópia idêntica da cabeça do cadáver que eu vira, caindo para o lado do corpo como a cabeça de um boneco desarticulado e bizarro...O que se seguiu foi a inconsciência para mim. Não lembro de muita coisa a partir de então.
Desmaiei, sim. Quanto a meu amigo... Seu juízo havia sido perdido, para sempre. Ele enlouquecera de medo, eu acreditava!
Quando acordei e me levantei do chão, a chuva havia passado.
Os primeiros raios da aurora iluminavam nossos rostos pálidos, lívidos ainda de terror...
Sacudi meu amigo tentando despertá-lo do torpor da loucura.
“Meu amigo!”, eu disse, ainda meio zonzo, “O que aconteceu depois que eu desmaiei? Conte-me, o que houve? Fale, homem , pelo amor de Deus!”
Ele permanecera em silêncio, seus olhos arregalados contemplando o infinito dos precipícios escuros da mente!
“E aquele vulto? Fale, seu maldito!O que,afinal, houve depois que eu desmaiei?”.
“Roger, meu amigo e irmão”, ele me disse, a voz trêmula como que atravessada pela eletricidade infernal do medo, “Roger, eu conversei... com o morto! O motoqueiro, Roger! Ele me contou coisas, muitas coisas...”
“Seu palerma e idiota!”, eu gritei, enfezado como um anjo caído, desferindo um tapa violento no rosto de Sidemar.
Ele me disse então, a voz gutural: “O morto, Roger, o motoqueiro morto, eu vi o corpo astral dele! E você também viu antes de desmaiar, você chegou a vê-lo, confesse!...Ele, o motoqueiro, nao queria morrer, Roger...A passagem foi violenta...Roger, ele...Ele se recusa a acreditar que está morto, Roger...
Num acesso de cólera, eu gritei, pegando-o pelo colarinho, sacudindo-o, dizendo: “Cale a boca, seu retardado! Nós não vimos nada, foi alucinação, um pesadelo! Foi sugestão, vimos o cadáver do motoqueiro em frente da casa, isso nos abalou mentalmente. Foi alucinação provocada pelo medo extremo!”
“Roger”, ele me disse, começando a rir e chorar ao mesmo tempo. Algo como um ricto boçal de loucura contorcendo seu semblante. “Roger...nao existe morte...Roger, há apenas a PASSAGEM... A passagem para as enlouquecedoras dimensões além da matéria física...Nós continuamos após a morte, levamos toda nossa loucura e angústia conosco! Estamos todos perdidos, Roger! Nós vamos morrer e acordar no Além, perdidos, solitários, confusos. Desesperados!”
Neste instante meu amigo soltou uma gargalhada que explodiu na casa como uma granada lançada por um demônio da loucura. Enfim, a demência total se apossara de Sidemar. E eu, trêmulo, peguei o celular e liguei para sua família, chorando em desespero.
Certas coisas na vida a gente nunca esquece. Nunca. Este foi o caso do Sidemar, a história do assombro na casa do Sidemar.
Duas semanas depois fiquei sabendo de seus familiares a verdade. Meu amigo Sidemar tinha um grau de mediunidade. Uma mediunidade não desenvolvida corretamente.
O tempo passou, fui crescendo, envelhecendo. Nunca mais tive um amigo de verdade. Nem mesmo um amigo estranho como Sidemar. Nunca mais o vi, desde então. Mas os horrores sobrenaturais daquela noite maldita ainda permanecem indeléveis em minha mente atormentada e solitária diante dos mistérios fantásticos da vida e da morte!

A MASMORRA


Eis mais uma colaboração espetacular do escritor Paulo Soriano na Câmara dos Tormentos.




A MASMORRA

Paulo Soriano


O carcereiro, que estava sentado à mesa, ressonava. À frente dele, sobre o tosco móvel de madeira derribada à floresta, uma candeia ardia, dispersando precariamente a escuridão viscosa, que emanava das paredes bolorentas, e a tudo envolvia, pesadamente, com o seu acre bafio. O vigia esquecera o postigo do cárcere aberto; por isso, uma nesga azulada de luz chegava à cela, adensava sobre nossas cabeças e depois morria, sufocada pela treva úmida e cruciante.


O meu companheiro de reclusão era jovem e moreno, como eu. Os olhos eram negros e indolentes, mas uma chama atroz, por vezes, rutilava subitamente em suas pupilas, e uma fisionomia absurdamente desumana assomava à sua face, como se emergisse das camadas mais obscuras de sua alma. Isto também – devo confessá-lo – vinha comigo; mas era ele, ao invés de mim, um rico e poderoso boiardo, que pelejara, com galhardia, contra os otomanos. Embora estivesse trancafiado há mais de uma semana, conforme eu calculava juntando a cada inexorável amanhecer mais um nó aos cadarços de minhas botinas, o jovem duque mantinha limpa e fresca a sua indumentária de nobre, malgrado tivesse agora as barbas crescidas e os cabelos oleosos em perene rebeldia. Juntos, parecíamos irmãos consangüíneos. Mas as semelhanças esmaeciam quando confrontávamos as nossas histórias.


Eu fora atirado ao calabouço do castelo de Bran porque sonegara a terça ao meu impiedoso suserano, e, agora, esperava o dia em que, em praça pública, e à guisa de exemplo, faria parte do macabro séquito destinado ao holocausto; ele, porque, dentre todos os boiardos da Valáquia, fora o único a ter o ventre poupado ao deslize perfurante da estaca aguçada. Tão-logo reconquistou de Vladislav o trono valáquio, Vlad Drácula convocou à sua corte, reunida em Tirgoviste, a poderosa nobreza do país. Ansiosa por cargos e regalia, mais de uma centena de boiardos acorreu, nesciamente, de peito inflado pela ambição, ao chamado do novo suserano. E não suspeitavam os gentis-homens que as portas do castelo se abriam como o aparato móvel e fatídico de uma ratoeira. Mal as barras de ferro selaram os portões do vasto salão de banquete, veio a ordem do sanguinário soberano, cuja crueldade rivalizava com a incomplacência: um a um os nobres valáquios encontram a morte cruel pela empalação. O motivo pelo qual se salvara o Duque de Vesta Verde ninguém sabia ao certo dizer; mas comentava-se amiúde, e erradamente, que Vlad Drácula, embora primogênito do Diabo*, hesitou em derramar sangue de mesma estirpe que a sua, talvez em respeito à memória de Vlad Dracul, de quem o duque, agora meu companheiro de masmorra, era igualmente filho, ainda que ilegítimo.


O jovem duque estava a salvo da empalação. Quanto a mim, eu só poderia dizer justamente o contrário, já que minha execução era quase iminente. Por isso, e porque havia pouco espaço nos meus cadarços para novos nós, recuava o pensamento quando se insinuavam em minha mente insidiosas sugestões. Sugestões incoercíveis – vaporosas e medonhas –, carregadas de imagens tenebrosas, pintadas em cores esfumadas, de uma morte certa e cruel. Eu via, emergindo da escuridão, o meu corpo dobrado, traspassado pela estaca em riste, sacudindo-se ao ritmo frenético dos espasmos que orquestram um fim agônico e prolongado. Atinha-me, assim, exclusivamente, ao meu passado de camponês. O duque me ouvia atentamente, embora minha narrativa o entediasse. Às vezes, maneava a cabeça à guisa de um assentimento impaciente. Eu ia completar uma reminiscência de infância quando a chave girou. Um jovem imberbe irrompeu de súbito, precipitado que fora, violentamente, de encontro ao chão. Desta feita, o carcereiro cerrou o postigo, arremessando-nos na escuridão mais aterradora. Apenas avisou, antes de fechá-lo, que tivéssemos cuidado com os nossos pertences – que a rigor eram nenhum – porque estaríamos na companhia de um gatuno. E sorriu ruidosamente, antes de aboletar-se em sua mesa, donde, pouco depois, vieram os sonoros roncos.


- Senhor Duque de Vesta Verde! Que o Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso único Salvador, esteja convosco! – Exclamou o rapaz que, num vislumbre embora mínimo, reconhecera imediatamente o seu senhor. – Cá estou para cumprir a minha pena. Mas vos posso participar de uma alegre notícia, que grassa em todo o país como um rastilho de pólvora, cujo fumo oloroso se eleva aos céus como uma dádiva e uma bênção divinas, em atenção às nossas preces silenciosas. Sabe-se que vosso irmão assinará, ainda hoje, a vossa alforria. Vosso tesouro e vossas terras serão restituídos, assim como vosso título nobiliárquico. Amanhã, ao morrerem as matinas, uma pequena comitiva irá vos escoltar até Tirgoviste, onde o Príncipe Vlad, pessoalmente, procederá à vossa reabilitação, em solenidade pública.


Às palavras do jovem imberbe, elevou-se um ruído, semelhante a um estalo de dedos. Ele prosseguiu:


- Ouve-me, senhor?


-Perfeitamente – eu respondi, ainda segurando o corpo inerte do príncipe. Eu havia partido o seu pescoço. Agarrara com a sinistra a sua goela, puxando-a para trás, amparando a sua nuca no meu ombro direito; com a outra mão, girei a sua cabeça rápida e violentamente para trás, até que viesse o estalo característico. – A ti sou profundamente agradecido pela menção da boa nova. Vem tu a mim, já que mereço o teu amplexo – disse, enquanto silenciosamente depunha o corpo do duque no assoalho de pedra.


Ouvi que o jovem se aproximava, até sentir-lhe a tépida respiração. Então, dando a volta em torno de onde ele deveria estar, repeti o procedimento homicida com a mesma destreza calma e silenciosa. Depois, recolhi os cadáveres em um canto obscuro e troquei as minhas vestes com as do Duque de Vesta Verde.


Naquela noite dormi mal. Estava demais excitado para deixar-me conduzir docilmente à languidez do sono. A expectativa de uma fuga quase imediata fazia o meu peito arfar e o meu coração bater descompassado. E a companhia de dois cadáveres atiçava a minha imaginação, que ardia em brasas. Assim, os meus febris pensamentos vagavam pela escuridão da cela, flutuando no ar como se donos de seu próprio destino. Minhas reflexões absorviam a umidade das trevas e, como elas, tornavam-se azedas e bolorentas. Migravam pelos cantos do cárcere, perpassavam as paredes como sombras fugidias, invadiam as mentes mortas do príncipe e do jovem larápio; depois, retornavam ao seu incôndito covil com o dobrar furioso de sinos lúgubres, a abalar-me os alicerces. Atormentava-me, como uma badalada a percutir e a vibrar em meu crânio, a possibilidade de ser reconhecido, embora me fiasse na convicção de que, usando os paramentos impecáveis do Duque de Vesta Verde – nos quais, à altura de meu peito, a estampa de um dragão inconcusso aquecia-me com as chamas que exalava pelas fuças –, até mesmo a minha mãe seria engabelada.


Foi quando senti que algo se aproximava de mim. Como que envolto num halo azulado, translúcido e fantasmagórico, o Duque de Vesta Verde, metido em meus trajes de camponês, mergulhava as mãos frias em meu pescoço e com elas pressionava-me o pomo-de-adão. Olhei nos seus olhos, e vi que não eram mais os mesmos, pois agora a sua face assumia as feições pueris do jovem imberbe, embora as mãos continuassem vigorosas e inflexíveis como as de um bravo guerreiro boiardo. Então uma adaga flutuante cintilou, antes de percorrer o meu pescoço com uma precisão absoluta. Estava-me a sufocar quando vieram as batidas na porta. Despeitei de súbito, arfando e bufando. O carcereiro chamava pelo Duque, anunciando, pelo postigo, a sua libertação:


- Senhor Duque, apressai-vos! Deveis logo vos aprontar, pois que vosso irmão, o Príncipe Vlad, vos espera no castelo de Tirgoviste! – Gritou o carcereiro do turno da manhã, aquele que aliciava garotinhas e as bolinava na sala de tortura, e que tinha os olhos nublados pela catarata. Não poderia haver dúvidas: eu estava a salvo.


De onde estava, o carcereiro certamente podia me ver, apesar de seus olhos baços de velho perdigueiro, mas não divisava os meus companheiros. Eu os havia recolhido ao fundo da cela para evitar que o velho vigia percebesse, prematuramente, que eles não dormiam, pois estavam, como vós já sabeis, definitivamente mortos. Levantei-me. Dei, como de costume, um nó no cadarço, e, simulando uma esplêndida majestade, transpus, transpirando uma arrogância quase genuína, os umbrais que se abriam para mim.


Em pouco tempo, escoltado por dois membros da guarda principesca, estava eu a caminho de Tirgoviste. Seguíamos por uma estrada de ladrilhos pétreos, margeada pela floresta de árvores esguias. Teixos e pinheiros subiam os vales num ritmo indolente, apressado pelos ventos, até as encostas das montanhas enevoadas. Pensava em como faria para me livrar de tão inoportuna e perigosa companhia. Precisaria agir rapidamente. Como um simples camponês, eu não estava bem treinado para a guerra e, desarmado, seria quase impossível fazer com que os guardas sucumbissem à minha violência. Mas, se me faltava a força física, sobejavam-me a astúcia e a artimanha. Buscando, confiante, uma oportunidade para escapar, pus-me a conversar com o guarda mais jovem, no intuito de distraí-lo:


- Alegra-me que esteja o Príncipe Vlad assim tão clemente...


- Ah, não sabe vossa alteza o que se passa no coração de vosso irmão! – Respondeu-me prontamente o guarda, sem tirar os olhos das rédeas de sua montaria. – Ainda ontem, o nobre príncipe concedeu, por decreto, anistia a todos os vassalos que sonegaram as terças pertencentes a seus suseranos mortos. Comenta-se que a clemência de nosso valoroso príncipe tenha um preço, pois deseja ele, sem tardança, empregar todos os homens disponíveis, nobres ou não, em campanha contra os turcos infiéis. Ele está arregimentando um exército poderoso, em que nenhum valáquio púbere pode faltar, nem mesmo os excomungados e sonegadores de tributos.


A estas palavras, minha face anuviou. Sem perceber que o fazia, apeei. Os guardas desceram de seus cavalos, perguntado-me:


- O que se passa, senhor?


Ao longe, eu ainda conseguia divisar o castelo de Bran, uma fortaleza negra mergulhada na floresta de árvores aguçadas. Ali, dois homens haviam sido sacrificados inutilmente, tombados ao assédio cruel de minhas mãos assassinas. Já quando eu os matara, estava a salvo, mas disso não sabia e nem poderia adivinhar. Permiti que minha astúcia homicida tisnasse o meu próprio destino. Deixasse-me ficar e, a esta hora, estaria de mãos limpas, livre de qualquer apuro e sem peias para desertar à convocação militar. Mas, agora, a minha situação parecia-me absurda e desnecessariamente complicada. Afinal, eu matara um duque, meio-irmão do sanguinário príncipe Vlad Drácula. A expectativa de uma fuga artimanhosa cedera lugar a um arrependimento estéril, e um medo insano golpeou o meu espírito com o ímpeto de um aríete.
- Votemos à montaria – ordenei.


- Não, senhor. Vós não ireis a lugar algum. Vossa alteza, involuntariamente, apeou no destino certo – disse-me, sem piedade, o guarda mais velho.


Os guardas arrebataram-me violentamente e me conduziram a uma clareira que se abria bem próxima à orla da floresta. Então, tudo compreendi. A sagacidade e a crueldade do Príncipe Vlad não tinham limites. Traiçoeiro como uma víbora peçonhenta, elaborara uma cilada para atrair o irmão à morte, mas de uma maneira tal que não recaísse sobre suas costas qualquer suspeita. O Duque de Vesta Verde era querido pelos súditos. Por isso, e não por um respeito sobrenatural a um pai defunto, poupara-lhe o príncipe, provisoriamente, a vida; mas não sem antes engendrar, em seu espírito malévolo, um desfecho que lhe atendia convenientemente às premências das injunções políticas. Vlad poupara a vida do irmão bastardo – e isto é fato – mas apenas para encenar uma morte burlesca: liberto pelo seu clemente príncipe, o duque padecera à investida de salteadores, quando rumava altivo para a reabilitação.


Sim, isto era evidente! O príncipe temia que o irmão bastardo aspirasse ao trono. E como fui tolo em crer que houvesse, naquele coração pedregoso, um pequeno nicho a abrigar um fiasco de clemência! Como fui néscio em olvidar que as armadilhas insidiosas eram a tática de que se valia o jovem príncipe para dizimar os seus inimigos!


Depuseram-me junto ao tronco de um jovem teixo; ali, dois cadáveres insepultos já me esperavam. Próximo a mim, o sangue ainda viscoso inundava o peito de dois homens maltrapulhos, proliferando sobre os seus corpos como a sombra de um sudário rubro e andrajoso. Repentinamente, o guarda mais velho mergulhou, à covardia, a sua adaga no tórax do próprio companheiro, cujos olhos, no momento da morte, sacudiam-se de surpresa e pavor. Depois, desferiu um golpe no próprio braço, num simulacro de enfrentamento heróico aos ladrões.


A farsa estava ultimada. Sim! Findava-se a macabra pantomima! Mas, quando o meu corpo fosse descoberto, Vlad Drácula não teria como abafar o escândalo de um fratricídio. Isto, de certa forma, me alegrava, aplacando-me o desespero.


“Pelo menos não morrerei empalado”, pensei, antes que a adaga amolada percorresse lentamente todo a circunferência de meu pescoço, que tombou num ângulo grotesco, antes que meu sangue se esvaísse completamente.


****


* No romeno, Drácula significa, literalmente, “filho do dragão”; o nome compõe-se da palavra “drac” (dragão), seguida do artigo masculino definido singular “ul” (o), que, naquela língua, diferentemente do que sucede nos demais idiomas neolatinos, se posiciona depois do substantivo, a ele aderindo; e, finalmente, da partícula designativa de filiação “a”, correspondente ao galego-português es (Rodrigues = filho de Rodrigo; Esteves = filho de Estevão). A palavra “drac” corresponde a um dos diversos apelidos conferidos ao diabo, encontrando, em nosso “cão”, um similar paralelo. Daí a alusão à primogenitura do diabo, já que, nesta acepção, Drácula está a significar “o filho do diabo”.

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