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8.11.09

ASSOMBRAÇÕES - EDWARD BULWER-LYTTON

ASSOMBRAÇÕES
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Edward Bulwer-Lytton




Um amigo meu, homem de letras e filósofo, disse-me um dia, meio zombeteiro, meio sério: “Adivinhe! Desde que nos vimos pela última vez, descobri uma casa assombrada no meio de Londres.”



“Assombrada de verdade? E pelo quê? Fantasmas?”



“Bem, não sei; tudo que sei é o seguinte: seis semanas atrás, minha mulher e eu estávamos à procura de um apartamento mobiliado. Ao passar por uma rua tranqüila, vimos na janela de uma das casas: ‘Apartamentos mobiliados’. O lugar nos convinha; entramos na casa, gostamos dos aposentos, mudamos para eles na semana seguinte... e os abandonamos no terceiro dia. Nada no mundo poderia ter convencido minha mulher a permanecer mais tempo; e não me surpreende.”



“E o que vocês viram?”



“Perdão; não quero ser ridicularizado como um visionário supersticioso, nem, por outro lado, poderia pedir-lhe aceitar, sob minha palavra, aquilo que você considerasse inacreditável a menos que seus sentidos o comprovassem. A única coisa que posso lhe dizer é que não foi tanto o que vimos ou ouvimos (pois você poderia muito bem imaginar que fôramos ludibriados por nossa própria imaginação vivida ou vítimas da impostura de outrem) que nos expulsou quanto um terror indefinível que nos tomava sempre que passávamos pela porta de um determinado quarto vazio, no qual nada víamos nem ouvíamos. E o mais espantoso de tudo foi que, pela primeira vez em minha vida, concordei com minha mulher, por tola que ela seja, e admiti, após a terceira noite, ser impossível ficar mais um dia naquela casa. Assim, na quarta manhã, chamei a mulher que cuidava da casa e nos assistia e disse-lhe que os aposentos não nos serviam e que provavelmente não ficaríamos ali no restante da semana. Ela disse secamente: ‘Sei por quê: vocês ficaram mais tempo do que os outros inquilinos. Poucos ficam além da segunda noite; ninguém antes de vocês ficou até uma terceira. Mas suponho que eles foram muito gentis com vocês’.”



“Eles quem?, perguntei, tentando sorrir.”



“Ora, os que assombram a casa, sejam quem forem. Eles não me incomodam; lembro-me deles há muitos anos, quando morei nesta casa, não como criada; mas sei que me matarão algum dia. Não me importo. Sou velha e morrerei logo, mesmo; e então estarei com eles e ainda nesta casa.”



“A mulher falava com sombria tranqüilidade, mas uma espécie de temor me impeliu a interromper a conversação. Paguei a semana de aluguel, e minha mulher e eu nos sentimos afortunados por pagarmos só pela estadia.”



“Você despertou minha curiosidade”, disse eu. “Nada me agradaria mais do que dormir em uma casa assombrada. Por favor, dê-me o endereço daquela que você abandonou tão vergonhosamente.”



Meu amigo deu o endereço e, quando nos despedimos, fui imediata-mente para a casa indicada.



Ela está situada na parte norte da Oxford Street (em uma travessa sem movimento, porém respeitável). Encontrei a casa fechada, sem nenhum cartaz na janela, e ninguém respondeu às minhas batidas na porta. Quando estava me afastando, um desses meninos que recolhem garrafas nas vizinhanças disse-me: “O senhor quer falar com alguém daquela casa?”



“Sim, soube que ela estava para alugar.”



“Alugar! Ora, a mulher que cuidava dela está morta. Morreu há três semanas e não há ninguém lá, embora o sr. J. a tenha oferecido a tanta gente. Ele ofereceu-a à minha mãe, que lhe traz carvão, na semana passada, apenas em troca de abrir e fechar as janelas, mas ela não quis.”



“Não quis! E por quê?”



“A casa é mal-assombrada; e a velha que cuidava dela foi encontrada morta na cama, com os olhos arregalados. Dizem que o diabo a estrangulou.”



“Bobagem! Você falou sobre o sr. J. Ele é o dono da casa?”



“É.”



“Onde ele mora? Quem é ele? O que faz?”



“Nada em particular, senhor; é solteiro.”



Dei ao menino uma gorjeta em paga de suas informações generosas e dirigi-me ao sr. J, na rua G, que ficava perto da rua da famosa casa mal-assombrada. Tive a sorte de encontrar o sr. J. em casa, um homem de idade, com uma fisionomia inteligente e maneiras agradáveis.



Imediatamente disse-lhe meu nome e minha profissão. Contei que ouvira dizer que a casa era assombrada, que queria muito examinar uma casa com uma reputação tão estranha, que ficaria imensamente agradecido se me permitisse alugá-la, embora somente por uma noite. Estava disposto a pagar o que ele pedisse por essa concessão. “Senhor”, disse o sr. J., com grande cortesia, “a casa está a sua disposição, pelo tempo, curto ou longo, que o senhor desejar. Alugá-la está fora de questão. O favor é o senhor quem me prestará, se puder descobrir a causa dos estranhos fenômenos que até agora a privou de todo o seu valor. Não posso alugá-la, por que não consigo sequer um criado para mantê-la em ordem ou atender à porta. Infelizmente a casa é assombrada, se me permite usar essa expressão, não apenas à noite, mas também de dia, embora à noite as perturbações sejam mais desagradáveis e por vezes mais amedrontadoras. A pobre velha que nela morreu há três semanas era pobre e eu a tinha tirado de um asilo, pois, em sua infância, fora conhecida por alguém de minha família e, em dias melhores, alugara aquela casa de meu tio. Era bem educada e equilibrada — a única pessoa que pude jamais convencer a ficar na casa. De fato, desde sua morte, que foi súbita, e a autópsia, que chamou a atenção nas vizinhanças, perdi de tal modo as esperanças de encontrar uma pessoa para tomar conta da casa, e muito menos um inquilino, que de bom grado a cederia por um ano, sem pagamento de aluguel, a qualquer um que pagasse seus impostos e taxas.”



“Há quanto tempo a casa adquiriu essa característica sinistra?”



“Sei muito pouco sobre isso, mas há muitos anos. A velha senhora de quem lhe falei disse que ela era assombrada quando alugou-a trinta ou quarenta anos atrás. Acontece que passei minha vida nas Índias Orientais, como funcionário público da Companhia. Retornei à Inglaterra no ano passado, ao herdar a fortuna de um tio, na qual se inclui a casa em questão. Encontrei-a lacrada e desabitada. Disseram-me que era mal-assombrada, que ninguém queria morar nela. Não levei a sério uma história tão tola. Gastei algum dinheiro em sua recuperação, acrescentei à sua mobília antiquada algumas peças modernas, anunciei-a e consegui alugá-la por um ano. Era um coronel aposentado a meio-soldo. Ele entrou com sua família, um filho e uma filha e quatro ou cinco criados; todos eles deixaram a casa no dia seguinte, e embora cada um deles declarasse ter visto algo diferente do que assustara os outros, havia algo de igualmente terrível para todos. Não pude em sã consciência processar, nem mesmo censurar o coronel por sua quebra de contrato. Coloquei então a velha senhora de quem lhe falei e dei-lhe licença para alugar aposentos da casa. Nunca tive um inquilino que ficasse mais de três dias. Não lhe conto suas histórias — não houve dois inquilinos que tenham presenciado exatamente o mesmo fenômeno. É melhor o senhor julgar por si mesmo do que entrar na casa com a imaginação influenciada por narrativas anteriores; esteja somente preparado para ver e ouvir alguma coisa e tome as precauções que desejar.”



“O senhor nunca teve a curiosidade de passar uma noite naquela casa?”



“Tive. Passei não uma noite, mas três horas em plena luz do dia naquela casa. Minha curiosidade não está satisfeita, mas reprimida. Não tenho nenhum desejo de repetir a experiência. O senhor não pode, compreenda, queixar-se de que não sou suficientemente franco; e a menos que seu interesse seja extremo e seus nervos excepcionalmente fortes, com toda sinceridade aconselho-o a não passar uma noite naquela casa.”



“Meu interesse é muito grande”, disse-lhe eu, “e embora somente um covarde possa vangloriar-se de seus nervos em situações inteiramente desconhecidas para si, os meus têm sido temperados em tantos tipos diferentes de perigo que tenho o direito de confiar neles — até mesmo em uma casa mal-assombrada.”



O sr. J. não disse muito mais; pegou de sua escrivaninha as chaves da casa, deu-as para mim e eu, agradecendo-lhe vivamente sua franqueza e cortês assentimento a meu desejo, fui embora com meu troféu.



Impaciente por iniciar a experiência, assim que cheguei a minha casa chamei meu criado de confiança — um jovem de espírito alegre, destemido e tão isento de superstições quanto se possa conceber.



“F.”, disse eu, “você está lembrado de como ficamos desapontados por não encontrar um fantasma naquele velho castelo na Alemanha, que diziam ser assombrado por um fantasma sem cabeça? Bem, eu soube de uma casa em Londres que, segundo espero, é assombrada de verdade. Pretendo dormir lá hoje à noite. Pelo que ouvi, não há dúvida de que algo se fará ver ou ouvir — algo, talvez, terrivelmente aterrorizante. Você não acha que, se eu levar você comigo, poderei contar com sua presença de espírito, aconteça o que for?”



“Sem dúvida, senhor! Conte comigo”, respondeu F., dando um sorrisinho de prazer.



“Muito bem; então aqui estão as chaves da casa, e este é o endereço. Vá agora; escolha para mim o quarto que achar melhor; e, uma vez que a casa há semanas permanece desabitada, acenda um bom fogo na lareira, areje a cama, verifique, é claro, se há velas e também combustível. Leve consigo meu revólver e minha adaga — são armas suficientes para mim; providencie também armas para si. E, se não formos páreo para uma dúzia de fantasmas, seremos apenas uma dupla de ingleses patéticos.”



Passei o resto do dia tão ocupado em negócios tão urgentes que não houve tempo para pensar muito na aventura noturna na qual empenhara minha honra. Jantei sozinho e muito tarde e, enquanto jantava, li, como de hábito. Selecionei um dos volumes dos
Ensaios
de Macaulay. Pensei com meus botões que poderia levar o livro comigo; seu estilo é tão direto e os assuntos tão relacionados com o cotidiano que poderia servir como um antídoto contra a influência de fantasias supersticiosas.



E assim, às nove e trinta da noite, mais ou menos, pus o livro no bolso e caminhei despreocupadamente até a casa assombrada. Levei comigo meu cão favorito — um bull-terrier muito inteligente, corajoso e alerta, um cão que gosta muito de farejar cantos e corredores estranhos e obscuros à noite, em busca de ratos, enfim, o melhor dos cães para um fantasma.



Era uma noite de verão, mas muito fria, o céu algo sombrio e toldado. Havia lua, esmaecida e doentia, ainda assim uma lua. E, se as nuvens permitissem, após a meia-noite, ela estaria mais brilhante.



Cheguei a casa, bati e meu criado abriu-a com um sorriso animado.



“Está tudo arranjado, senhor, e muito confortável.”



“Ah!”, disse eu, um tanto desapontado; “você não viu ou ouviu nada fora do comum?”



“Bem, senhor, devo reconhecer que ouvi algo estranho.”



“O quê? O quê?”



“O som de passos atrás de mim; e uma ou duas vezes ruídos curtos como sussurros junto ao meu ouvido, nada mais.”



“Você não está assustado?”



“Eu? Nem um pouco, senhor”, e seu olhar corajoso tranqüilizou-me quanto a um ponto, isto é, que, acontecesse o que acontecesse, ele não me abandonaria.



Estávamos no saguão, a porta de entrada fechou-se e observei então meu cão. Inicialmente ele entrara correndo, mas recuara sorrateiramente para a porta e estava arranhando e gemendo para sair. Após eu acariciar sua cabeça e dirigir-lhe palavras de estímulo, o cão pareceu resignar-se e acompanhou-nos pela casa, mas mantendo-se junto a meus calcanhares em vez de correr curioso à frente, como era seu hábito usual e normal em todos os lugares estranhos. Percorremos primeiramente os aposentos subterrâneos, a cozinha e outras dependências, especialmente a adega, na qual havia duas ou três garrafas de vinho em uma caixa, cobertas de teias de aranha e evidentemente intocadas há muitos anos. Os fantasmas decididamente não gostavam de vinho. Quanto ao resto, nada descobrimos de notável. Havia um quintalzinho sombrio com muros muito altos. As pedras desse quintal eram muito úmidas, e em virtude quer da umidade, quer da poeira e da fuligem no pavimento, nossos passos deixaram pegadas leves por onde passamos.



E então apareceu o primeiro fenômeno estranho testemunhado por mim naquela estranha habitação. Vi, bem à minha frente, a impressão de um pé como que subitamente formar-se. Parei, segurei meu criado e apontei para ela. Diante daquela pegada, tão subitamente quanto antes, fez-se uma outra. Nós dois a vimos. Avancei rapidamente para o lugar; a pegada continuava a me anteceder, uma pegada pequena — o pé de uma criança; a impressão era leve demais para que se pudesse distinguir sua forma, mas a ambos pareceu-nos que era a impressão de um pé descalço. Esse fenômeno cessou quando chegamos ao muro oposto, mas não se repetiu ao retornarmos. Voltamos à escada e entramos nos aposentos no andar térreo, uma sala de jantar, uma saleta pequena e um terceiro cômodo ainda menor, que fora provavelmente ocupado por um lacaio — todos em um silêncio mortal. Então percorremos as salas de estar, que pareciam ter sido recentemente reformadas. Na sala da frente, sentei-me em uma poltrona. F. colocou sobre a mesa o candelabro que acendera para nós. Mandei-o fechar a porta. Quando ele se virou para fazê-lo, uma cadeira à minha frente moveu-se da parede rápida e ruidosamente e postou-se a cerca de uma jarda de minha própria cadeira, de frente para ela.



“Ora, isto é

melhor do que mesas que viram”, disse eu, meio sorrindo; e quando ri meu cão ergueu a cabeça e uivou.



F, voltando, não notara o movimento da cadeira. Ele tratava agora de acalmar o cão. Continuei a fitar a cadeira e imaginei nela ver, em uma névoa azulada, o contorno de uma figura humana, mas tão vaga que não permitia certeza. O cão agora estava quieto.



“Ponha essa cadeira à minha frente”, disse eu a F., “de volta junto à parede.”



F. obedeceu. “Foi o senhor?”, disse ele, voltando-se abruptamente.



“Eu o quê?”



“Ora, algo me golpeou. Senti-o nitidamente no ombro, exatamente aqui.”



“Não”, disse eu. “Mas há ilusionistas aqui, e embora não consigamos descobrir seus truques, nós os pegaremos antes que nos assustem.”



Não permanecemos muito tempo nas salas de estar — na verdade, elas eram tão úmidas e geladas que foi um alívio chegar ao aquecido andar superior. Trancamos as portas das salas de estar — uma precaução que, devo dizer, tínhamos tomado com todos os aposentos que vasculháramos no andar abaixo. O quarto de dormir que meu criado escolhera para mim era o melhor, naquele andar — um quarto grande, com duas janelas que davam para a rua. A cama de dossel, que ocupava um espaço considerável, estava em frente ao fogo, que queimava alto e reluzente; uma porta na parede à esquerda, entre a cama e a janela, comunicava-se com o quarto que ele escolhera para si. Este era pequeno, com um sofá-cama e não tinha nenhuma comunicação com o corredor — nenhuma porta senão a que levava ao quarto que eu ocuparia. De cada lado da lareira havia um armário, sem fechaduras, encostado à parede e coberto com o mesmo papel de parede marrom apagado. Examinamos esses armários — apenas ganchos para pendurar vestidos femininos e nada mais; auscultamos as paredes — decididamente sólidas — externas da casa. Terminado o exame desses aposentos, aqueci-me por uns instantes e acendi um charuto; depois, ainda acompanhado por F., dei continuidade à vistoria. No corredor, havia uma outra porta; estava emperrada. “Senhor”, disse meu criado, surpreso, “destranquei esta porta juntamente com todas as outras quando vim pela primeira vez; ela não pode ter-se trancado por dentro, pois...”



Antes que ele terminasse a frase, a porta, que nenhum de nós estava então tocando, abriu-se silenciosamente sozinha. Trocamos um olhar por um instante. O mesmo pensamento nos tomou: alguma mão humana podia ser detectada aqui. Precipitei-me porta adentro, seguido de meu criado. Um pequeno quarto sombrio e vazio: poucas caixas e cestos em um canto, uma pequena janela com as venezianas fechadas, nem mesmo uma lareira, nenhuma outra porta senão aquela pela qual entráramos; nenhum tapete, e o soalho parecia muito velho, irregular e roído, remendado aqui e ali, como se podia ver pelos remendos mais claros na madeira; mas nenhum ser vivo e nenhum lugar visível no qual um ser vivo pudesse ter
-se
escondido. Enquanto olhávamos em volta, a porta pela qual entráramos fechou-se tão silenciosamente quanto se abrira antes: estávamos presos.



Pela primeira vez senti um arrepio de indefinível terror. Mas não meu criado. “Ora, eles não pretendem nos armar uma cilada, senhor; eu conseguiria quebrar a porta ordinária com um pontapé.”



“Tente primeiro abri-la com a mão”, disse eu, afastando a vaga apreensão que me tomara, “enquanto abro as venezianas para ver o que há lá fora”.



Destranquei as venezianas — a janela dava para o quintalzinho descrito anteriormente; fora não havia nenhuma saliência — nada que interrompesse o plano vertical da parede. Ninguém que saísse por aquela janela encontraria onde pôr os pés: ele cairia nas pedras abaixo.



F., nesse ínterim, tentava em vão abrir a porta. Virou-se então para mim e pediu-me permissão para usar da força. E eu devo aqui fazer justiça ao criado, que, longe de dar mostras de qualquer terror supersticioso, com sua coragem, equilíbrio e até mesmo jovialidade em meio a circunstâncias tão extraordinárias, conquistaram minha admiração e me fizeram congratular-me pela segurança de uma companhia tão à altura da ocasião. Dei-lhe de bom grado a permissão solicitada. Porém, não obstante ele fosse extraordinariamente forte, sua força foi tão inútil quanto seus esforços menos violentos; a porta sequer mexeu com seu pontapé mais vigoroso. Sem fôlego e ofegante, ele desistiu. Eu então também forcei a porta, igualmente em vão. Quando desisti, fui novamente tomado daquele arrepio de terror; mas desta vez mais frio e persistente. Senti como se algo terrível emanasse das frestas daquele soalho corroído e enchesse a atmosfera de uma influência nefasta e hostil à vida humana. A porta então, muito lenta e silenciosamente, abriu-se como que por sua própria vontade. Precipitamo-nos no corredor. Vimos uma luz fraca e volumosa — do tamanho de um corpo humano, mas informe e transparente — mover-se à nossa frente e subir a escada que levava ao sótão. Segui a luz, meu criado acompanhou-me. Ela entrou, à direita do corredor, em um pequeno sótão, cuja porta estava aberta. Entrei no mesmo instante. A luz então se transformou em um pequeno globo, extremamente brilhante e nítido; pousou por um momento sobre uma cama no canto, tremeu e desapareceu.



Aproximamo-nos da cama e a examinamos — uma cama estreita, como as que comumente se encontram em sótãos reservados aos criados. Sobre a cômoda próxima a ela vimos um xale velho de seda desbotada, com a agulha ainda no remendo inacabado de um rasgão. O xale estava coberto de pó; provavelmente pertencera à velha senhora que morrera naquela casa, e este devia ter sido seu quarto de dormir. Tive a curiosidade de abrir as gavetas: havia alguns poucos artigos de roupas femininas e duas cartas amarradas com uma fita estreita de um amarelo desbotado. Tomei a liberdade de pegar as cartas. Nada mais encontramos na sala digno de nota, nem houve outra aparição da luz; mas ouvimos distintamente, quando nos viramos para sair, um som de passos apressados no soalho, exatamente à nossa frente. Percorremos os outros sótãos (eram quatro), com os passos ainda a nos precederem. Nada se via, nada havia exceto os passos. As cartas estavam em minha mão; justamente quando eu estava descendo a escada, senti claramente que pegavam meu pulso e um fraco e suave esforço para tiradas de mim. O único gesto que fiz foi apertá-las ainda mais, e o esforço cessou.



Retornamos ao quarto de dormir que me fora destinado, e então observei que meu cão não nos seguira quando dali havíamos saído. Ele se postara junto ao fogo, tremendo. Eu estava impaciente para examinar as cartas e enquanto as lia meu criado abriu uma pequena caixa na qual depositara as armas que eu lhe ordenara trazer; tirou-as, colocou-as sobre a mesa junto à cabeceira de minha cama e então pôs-se a acalmar o cão, que, contudo, pareceu quase não notá-lo.



As cartas eram curtas e estavam datadas de exatamente trinta e cinco anos atrás. Eram visivelmente de um amante a sua amada, ou de um marido a uma jovem esposa. Não somente os termos, mas uma clara referência a uma viagem anterior indicavam que o escritor fora um homem do mar. A ortografia e a letra eram as de um homem de pouca instrução, mas mesmo assim a linguagem era eloqüente. Nas expressões carinhosas havia uma espécie de amor rústico, porém ardente; mas aqui e ali se liam alusões sombrias e vagas de algum segredo não amoroso — algum segredo aparentemente com relação a um crime. “Devemos amar um ao outro”, era uma das frases de que me lembro, “porque todos nos censurariam se soubessem de tudo”. E também: “Não deixe ninguém ficar no mesmo quarto que você à noite — você fala durante o sono”. Ou: “O que está feito está feito; e eu lhe asseguro que não existe nada contra nós, a menos que o morto voltasse à vida”. Aqui havia um comentário em uma caligrafia melhor (feminina): “Eles sabem!” No fim da carta da data mais recente de todas, a mesma caligrafia feminina escrevera estas palavras: “Desaparecido no mar em 4 de junho, no mesmo dia em que...”



Depus as cartas e comecei a refletir sobre seu teor.



Temendo, contudo que o curso de meus pensamentos pudesse abalar meus nervos, resolvi firmemente manter meu espírito em um estado mais apropriado para lidar com os fenômenos extraordinários que a noite ainda poderia trazer. Levantei-me, coloquei as cartas sobre a mesa, aticei o fogo, que ainda estava alto e reconfortante, e abri meu Macaulay. Li bastante tranqüilo até às onze e trinta. Então me atirei vestido na cama e disse a meu criado que ele podia ir para seu quarto, mas permanecer acordado. Pedi-lhe que deixasse aberta a porta entre os dois aposentos. Sozinho no quarto mantive duas velas acesas sobre a mesa ao lado de minha cabeceira. Coloquei meu relógio junto às armas e calmamente retomei meu Macaulay. A minha frente, o lume estava alto e, no tapete da lareira, provavelmente adormecido, jazia o cão. Cerca de vinte minutos depois, senti um ar extremamente frio passar pelo rosto, como uma brisa súbita. Imaginei que a porta à minha direita, que dava para o corredor, se abrira; mas não, ela estava fechada. Voltei então os olhos à minha esquerda e vi as chamas das velas balançarem com força, como que sob a ação de uma golfada de vento. No mesmo instante, o relógio ao lado do revólver deslizou suavemente da mesa — muito lentamente, sem que qualquer mão o tocasse — e desapareceu. Pulei da cama, agarrando o revólver com uma mão e o punhal com a outra: eu não estava disposto a deixar que minhas armas tivessem o mesmo destino do relógio. Assim armado, olhei o chão em torno: nenhum sinal do relógio. Três batidas lentas e nítidas ouviram-se à cabeceira da cama; meu criado disse em voz alta: “O senhor chamou?”



“Não; fique atento.”



O cão então levantou e sentou-se, movendo rapidamente as orelhas para trás e para frente. Ele mantinha os olhos fixos em mim com um olhar tão estranho que não pude afastar dele os meus. Levantou-se devagar, os pêlos eriçados, e ficou totalmente imóvel e com o mesmo olhar fixo e feroz. Não tive tempo, contudo, de observar atentamente o cão, pois meu criado surgiu à porta; se vi alguma vez o terror estampado em um rosto humano, foi essa. Eu não o teria reconhecido, caso nos encontrássemos na rua, tão alteradas estavam suas feições. Ele passou por mim rapidamente, dizendo em um sussurro que mal me chegou aos ouvidos: “Corra, corra! Ele está atrás de mim!” Ele ganhou a porta para o corredor, abriu-a e precipitou-se por ela. Segui-o até o corredor sem pensar, pedindo-lhe que parasse; mas, sem me dar atenção, dirigiu-se à escada, agarrando-se ao balaústre e pulando vários degraus de cada vez. Ouvi, de onde estava, a porta da rua abrir-se e também se fechar. Eu estava só na casa assombrada.



Apenas por um instante fiquei indeciso quanto a seguir ou não meu criado; orgulho e curiosidade, ao mesmo tempo, impediram-me de fugir covardemente. Retornei ao meu quarto, fechando atrás de mim a porta, e examinei cautelosamente o aposento. Nada encontrei que justificasse o terror de meu criado. Examinei-o novamente com todo cuidado, para ver se havia alguma porta oculta. Não encontrei nenhum indício disso — nem mesmo uma costura no papel de parede marrom desbotado com o qual o cômodo estava revestido. Como, então, a COISA, ou seja lá o que fosse, que tanto o assustara, conseguira entrar, exceto pelo meu próprio aposento?



Retornei ao meu quarto, fechei e tranquei a porta que abria para o interior da casa e postei-me próximo à lareira, expectante e alerta. Percebi então que o cão se atirara a um ângulo da parede e colara-se a ela, como se estivesse se esforçando por abrir caminho através dela. Aproximei-me dele e dirigi-lhe algumas palavras; o pobre animal estava visivelmente fora de si pelo terror. Ele mostrava todos os seus dentes, a mandíbula gotejava saliva e certamente teria me mordido se eu o tocasse. Ele não pareceu me reconhecer. Quem quer que tenha visto no jardim zoológico um coelho fascinado por uma serpente, agachado em um canto, pode fazer uma idéia da angústia que o cão mostrava. Procurando por todos os meios e em vão acalmar o animal e temendo que sua mordida pudesse ser venenosa naquele estado, tanto quanto na raiva hidrofóbica, afastei-me dele, coloquei minhas armas sobre a mesa ao lado do fogo, sentei-me e retomei meu Macaulay.



Talvez, para não parecer em busca de crédito por coragem, ou antes frieza, que o leitor possa julgar exagerada, eu possa ser perdoado se fizer uma pausa para, em meu favor, fazer uma ou duas observações de cunho pessoal.



Como julgo que a presença de espírito, ou aquilo que chamam de coragem, seja exatamente proporcional à familiaridade com as circunstâncias que levaram a ela, também devo dizer que há muito tempo conhecia todos os experimentos que dizem respeito ao Excepcional. Eu testemunhara muitos fenômenos extraordinários em diversas partes do mundo — fenômenos a que não se daria absolutamente nenhum crédito se eu os contasse, ou seriam atribuídos a entes sobrenaturais. Ora, minha teoria é que o sobrenatural é impossível, e que aquilo que chamam de sobrenatural é somente algo nas leis da natureza que até então ignorávamos. Portanto, se um fantasma surge à minha frente, não tenho o direito de dizer: “Então, o sobrenatural pode existir”, mas antes, “Então, a aparição de um fantasma, ao contrário da opinião corrente, está conforme as leis da natureza — isto é, não é sobrenatural”.



Ora, em tudo que até então eu havia testemunhado, e na verdade em todos os prodígios que os diletantes do mistério em nossa época registram como fatos, sempre se faz necessária a intervenção material pela qual, em virtude de algumas características constitutivas, certos fenômenos estranhos são percebidos pelos sentidos naturais.



Além disso, até mesmo o fato de se admitirem como verdadeiras as narrativas de manifestação espiritual na América — sob a forma de música ou outros sons, registros em papel, produzidos por nenhuma mão visível, peças de mobília que se movem sem uma intervenção humana visível, ou a visão ou toque de mãos concretos, aos quais não parecem pertencer quaisquer corpos — exige que se encontre o MEIO ou ser vivo, com características constitutivas capazes de produzir tais sinais. Enfim, em todos esses casos extraordinários, até mesmo na suposição de que não se trata de impostura, deve haver um ser humano como nós pelos quais, ou por meio dos quais, os efeitos apresentados a seres humanos são produzidos. É assim com o agora familiar fenômeno mesmerismo, ou eletrobiologia: a mente da pessoa atingida é influenciada por um agente vivo material. Nem, supondo verdade que um paciente mesmerizado possa responder à vontade ou passe de um mesmerizador uma centena de quilômetros distante, é a resposta menos ocasionada por um fluido material — chame-o Elétrico, chame-o Ódico, ou o que seja — que tem o poder de atravessar o espaço e obstáculos, que o efeito material é comunicado de um para o outro. Conseqüentemente, eu acreditava que tudo quanto até aquele instante testemunhara, ou esperava testemunhar naquela estranha casa, era criado mediante alguma intervenção ou meio tão mortal quanto eu próprio. E essa idéia necessariamente me livrara de ser tomado pelo assombro — em razão das aventuras daquela noite extraordinária — ao qual estão sujeitos aqueles que consideram sobrenaturais coisas que não se conformam às forças da natureza.



Como, então, minha conjectura era de que tudo que se mostrara, ou seria mostrado aos meus sentidos, devia ter origem em algum ser humano, dotado por constituição do poder para fazê-lo e tendo algum motivo para tal, senti um interesse em minha teoria que, ao seu modo, era antes filosófica do que supersticiosa. E posso sinceramente dizer que meu ânimo estava tão calmo e propício à observação quanto o de qualquer verdadeiro experimenta-lista, a aguardar o resultado de alguma combinação química rara, embora talvez perigosa. É claro que, quanto mais impassível e distante da fantasia eu mantinha minha mente, quanto mais apropriado à observação ficaria meu estado de espírito; portanto fixei olhos e pensamentos no forte teor cotidiano das páginas do meu Macaulay.



Então percebi que algo se interpunha entre a página e a luz — uma sombra toldava a página. Levantei os olhos e vi o que encontro muita dificuldade — e talvez me seja impossível fazê-lo — descrever.



Eram as próprias Trevas a tomar forma no ar, em um contorno bastante vago. Não posso dizer que era humana, contudo parecia ter forma humana, ou antes uma sombra de um ser humano, do que qualquer outra coisa. Assim parada, completamente separada e distinta do ar e da luz a sua volta, suas dimensões pareciam gigantescas e seu topo chegava ao teto. Enquanto eu a fitava, uma sensação de frio intenso invadiu-me. Um
iceberg
diante de mim não poderia ter-me enregelado mais; nem poderia o frio de um
iceberg
ter sido mais material. Estou convicto de que não era o frio causado pelo medo. Enquanto ainda estava a fitá-la, julguei — mas não posso afirmá-lo com precisão — distinguir dois olhos olhando-me do alto. Por um momento, imaginei distingui-los claramente; no seguinte, pareceram desfazer-se; mas mesmo então dois raios de luz azul clara luziram em meio às trevas, como que da altura em que eu meio acreditara, meio duvidara ter visto os olhos.



Tentei falar, minha voz emudecera completamente; eu conseguia apenas pensar com meus botões: “Isso é medo? Isso não é medo!” Tentei levantar-me, em vão; senti como se uma força irresistível me empurrasse para baixo. Na verdade, minha impressão era a de um imenso e supremo Poder a se opor a qualquer ato voluntário — aquela sensação de total impotência para lidar com uma força superior à de qualquer homem, que se pode sentir fisicamente em uma tempestade no mar, em uma conflagração ou até mesmo quando nos deparamos com algum animal feroz, ou antes, talvez, com um tubarão no oceano — era esse o sentimento moral que me tornara. Oposta à minha vontade havia uma outra, tão superior à minha quanto são materialmente superiores à força humana uma tempestade, um incêndio ou um tubarão.



E então, enquanto essa impressão crescia em mim — veio, por fim, o terror — um terror tal que nenhuma palavra pode descrever. Ainda assim mantive meu orgulho, se não coragem; e em minha própria mente dizia: “Isso é terror, mas não medo; se eu não sentir medo, ele não poderá me fazer mal; minha razão rejeita essa coisa, trata-se de uma ilusão — não sinto medo”. Com um esforço violento consegui por fim estender a mão para a arma sobre a mesa; quando o fiz, recebi no braço e no ombro um estranho golpe, e meu braço caiu ao lado, inerte. E então, para aumentar meu terror, a luz começou a diminuir lentamente nas velas; elas não foram, por assim dizer, apagadas, mas sua chama parecia recuar gradualmente; o mesmo ocorreu com o fogo — a luz era extraída das labaredas; em poucos minutos, o quarto estava em completa escuridão.



O pavor que se abateu sobre mim, pavor de estar assim na escuridão com aquela Coisa escura, cujo poder era sentido de modo tão intenso, provocou uma reação de coragem. Na verdade, o terror alcançara aquele clímax no qual todas as minhas faculdades me abandonariam ou eu romperia o encantamento. Eu o rompi. Consegui finalmente emitir um som, não obstante este fosse um grito. Lembro-me de ter jorrado de minha boca algo como: “Não tenho medo, minha alma não teme”; e ao mesmo tempo encontrei forças para levantar-me. Ainda naquelas densas trevas, corri para uma das janelas, com um repelão abri a cortina e empurrei as venezianas; meu primeiro pensamento foi: LUZ. E quando vi a luz no alto, clara e calma, senti uma alegria que quase contrabalançou o terror anterior. Havia lua, havia também a luz dos lampiões de gás na rua deserta e silenciosa. Voltei-me para olhar o quarto; o luar penetrava sua sombra de modo muito fraco e parcial — mas ainda assim havia luz. A Coisa escura, fosse o que fosse, dissipou-se — salvo pelo fato de que eu ainda conseguia ver uma sombra vaga, que parecia uma sombra daquela nuvem escura, junto à parede oposta.



Meus olhos então pousaram na mesa, e debaixo dela (que não estava coberta por toalha ou cobertura — uma velha mesa redonda de mogno) levantou-se uma mão, visível somente até o punho. Era, aparentemente, de carne e osso como a minha, mas a mão de uma pessoa velha — magra, enrugada e pequena, também; a mão de uma mulher. Aquela mão muito suavemente fechou-se em volta das duas cartas que jaziam sobre a mesa; mão e cartas desaparecem. Soaram então as mesmas três batidas fortes que eu ouvira na cabeceira, antes do início daquela extraordinária cena. Quando aqueles sons lentamente cessaram, senti que o quarto todo vibrava; e na extremidade do quarto levantaram-se, como que do chão, centelhas e glóbulos como bolhas multicores de luz — verdes, amarelas, rubras, azuis. Para cima e para baixo, para cá e para lá, aqui e ali, aparentando fogos-fátuos, as centelhas moviam-se aleatoriamente, ora lentas, ora rápidas. Uma cadeira (repetindo o ocorrido com a da sala de estar no andar debaixo) moveu-se de junto à parede, sem qualquer intervenção material visível e colocou-se no lado oposto da mesa. Subitamente, da cadeira brotou uma forma — uma forma feminina. Era tão nítida quanto um ser vivente — espectral como uma forma morta. O rosto era de uma jovem, com uma estranha beleza enlutada; o pescoço e os ombros estavam nus, o resto vestia um manto largo de um branco nebuloso. Ela começou a alisar seus longos cabelos dourados, que lhe caíam aos ombros; seus olhos não estavam voltados para mim, mas para a porta; pareciam tentar ouvir, observar, esperar. A sombra da névoa escura no fundo tornou-se mais intensa; e novamente julguei ver os olhos brilhando do alto da sombra — olhos que miravam fixamente aquela forma.



Como que da porta, embora ela não estivesse aberta, brotou uma outra aparição, igualmente nítida, igualmente espectral — a forma de um homem, um homem jovem. Estava vestido à moda do século passado, ou antes de um modo semelhante (pois tanto a forma masculina quanto a feminina, embora nítidas, eram obviamente imateriais, impalpáveis, simulacros, fantasmas); e havia algo de incongruente, grotesco, até mesmo amedrontador no contraste entre o requinte elaborado, a precisão gentil daquela vestimenta fora de moda, com seus franzidos, suas rendas e fivelas, e o aspecto cadavérico e a imobilidade espectral de seu portador flutuante. Exatamente quando a forma masculina aproximava-se da feminina, a sombra escura avançou de junto à parede, todas três, por um momento, envoltas em escuridão. Quando a luz pálida retornou, os dois fantasmas que estavam ocultos na sombra surgiram lado a lado; e, no peito da visão feminina, via-se uma mancha de sangue; o fantasma masculino apoiou-se em sua espada espectral, o sangue a gotejar rapidamente dos franzidos, da renda; e o negrume da Forma intermediária engoliu a ambos — e desapareceram. E novamente as bolhas de luz moveram-se rapidamente, adejaram e flutuaram, tornando-se cada vez mais densas e, seus movimentos, mais desordenados.



A porta do móvel à direita da lareira abriu-se então e da fresta surgiu a figura de uma mulher idosa. Ela portava cartas na mão — as mesmas cartas sobre as quais eu vira a Mão se fechar; e atrás dela ouvi passos. Ela virou-se como se a ouvir e então abriu as cartas e pareceu lê-las; e sobre seu ombro vi um rosto lívido, o rosto semelhante a um homem há muito tempo afogado — inchado, esbranquiçado, com algas entrelaçadas em seus cabelos ensopados; e a seus pés jazia uma forma semelhante a um cadáver, e atrás do cadáver escondia-se uma criança, uma criança terrivelmente esquálida, de rosto encovado e olhos amedrontados. E enquanto eu olhava para o rosto da mulher idosa, as rugas e as linhas desapareceram e ele transformou-se em um rosto jovem — de olhos duros, opacos, mas ainda assim jovens; e a Sombra precipitou-se e envolveu em escuridão aqueles fantasmas, como havia feito com os anteriores.



Então, nada restou senão a Sombra, e sobre ela meus olhos fixaram-se até que novamente os olhos brotaram da Sombra — olhos maus, olhos de serpente. E as bolhas de luz novamente surgiram e caíram, e em seus movimentos desordenados, irregulares, turbulentos, fundiram-se com o pálido luar. E então, desses mesmos glóbulos, como que da casca de um ovo, jorraram coisas monstruosas; o ar encheu-se delas; larvas tão exangues e tão horrendas que não consigo absolutamente descrevê-las, exceto para lembrar o leitor da vida fervilhante que o microscópio solar põe diante de seus olhos em uma gota d’água — coisas transparentes, flexíveis, ágeis, caçando-se mutuamente, devorando-se mutuamente — formas nunca antes contempladas a olho nu. Assim como as formas eram assimétricas, também seus movimentos eram desordenados. Em suas errâncias nada havia de jovial; contornavam-se incessantemente, cada vez mais densas e velozes, pululando sobre minha cabeça, rastejavam sobre meu braço direito, distendido em uma ordem involuntária contra todos os seres vis. Por vezes eu sentia um toque, não da Sombra, mas de mãos invisíveis. Senti uma vez o aperto como de dedos frios e macios em meu pescoço. Eu ainda estava igualmente consciente de que, se cedesse ao medo, correria perigo físico e concentrei todas as minhas faculdades unicamente na vontade obstinada de resistência. E desviei meus olhos da Sombra — sobretudo daqueles estranhos olhos de serpente — olhos que agora haviam se tornado totalmente visíveis. Pois ali, e em nada mais do que me rodeava, eu sabia existir uma VONTADE, e uma vontade do mal em ação, intenso, original, que poderia esmagar a minha.



A atmosfera opaca do quarto começou então a avermelhar-se, como que à aproximação de uma conflagração. As larvas tornaram-se vividas como as coisas que vivem no fogo. O quarto novamente vibrava; novamente ouviram-se as três batidas espaçadas; e novamente todas as coisas foram engolidas pelas trevas da Sombra escura, como se daquela escuridão tudo surgira e a ela tudo retornasse.



Quando a penumbra diminuiu, a Sombra desapareceu completamente. Tão lentamente quanto seu recuo, as chamas levantaram-se de novo nas velas sobre a mesa e também na lareira. O quarto todo se tornou, uma vez mais, calmo e sadiamente visível.



As duas portas ainda estavam fechadas, e a porta que se comunicava com o quarto do criado, ainda trancada. No canto da parede ao qual ele tão convulsivamente se colara, jazia o cão. Chamei-o; ele não se moveu. Aproximei-me. O animal estava morto, os olhos proeminentes, a língua de fora, as mandíbulas espumantes. Peguei-o nos braços, levei-o para junto da lareira. Eu estava desolado pela perda de meu predileto e censurei-me severamente; sentia-me culpado por sua morte. Supus que ele morrera de pavor. Mas qual foi minha surpresa ao descobrir que, na verdade, seu pescoço estava quebrado. Isso fora feito no escuro? Não teria isso sido feito por uma mão tão humana quanto a minha? Não haveria necessariamente uma intervenção humana durante todo o tempo naquele quarto? Havia bons motivos para achar que sim. Não tinha certeza. Posso apenas registrar fielmente o fato; o leitor tirará suas próprias conclusões.



Uma outra circunstância surpreendente: meu relógio de pulso fora devolvido à mesa da qual fora retirado tão misteriosamente; mas parará no mesmo instante em que desaparecera e, a despeito dos esforços do fabricante, desde então não voltou a funcionar normalmente. Isto é, funciona de modo errático por algumas horas e depois pára. Ficou inutilizado.



Nada mais aconteceu no resto da noite. Na verdade, logo amanheceu. Deixei a casa somente quando já ia adiantado o dia. Antes disso, inspecionei a pequena sala vazia na qual meu criado e eu havíamos sido aprisionados por algum tempo. Eu tinha uma forte impressão — não sei explicar por quê — de que nela se originara o mecanismo dos fenômenos — por assim dizer — que vivenciara em meu quarto. E embora eu entrasse nele agora, em plena luz do dia, com o sol a penetrar pela janela embaçada, ainda sentia subir pelos pés o terror que sentira pela primeira vez na noite anterior e que fora tão exacerbado pelo que se passara em meu próprio quarto. Não consegui, com efeito, permanecer mais do que meio minuto dentro daquelas paredes. Desci a escada e novamente ouvi um passo à minha frente; e quando abri a porta da rua julguei ouvir distintamente uma risada bem baixa. Fui até minha casa, contando em encontrar lá meu criado fujão. Mas ele não aparecera e por três dias não deu notícias, quando então recebi uma carta sua, datada de Liverpool e que dizia:



“Prezado Senhor, humildemente peço desculpas, embora poucas esperanças tenha de que o senhor me julgará merecedor delas, a menos — Deus não permita — que o senhor tenha visto o mesmo que eu. Sinto que anos se passarão antes que eu me recupere, e acho que não conseguirei trabalhar nunca mais. Portanto, vou ficar com meu cunhado em Melbourne. O navio parte amanhã. Talvez a longa viagem me cure. Fico assustado e tremo o tempo todo, pensando que AQUILO está me perseguindo. Humildemente lhe peço, prezado senhor, que envie minhas roupas e o salário a que faço jus à casa de minha mãe, em Walworth. O John sabe meu endereço”.



A carta terminava com outros tantos pedidos de desculpas, um tanto incoerentes, e detalhes quanto aos objetos de uso sob a custódia do missivista.



Essa fuga talvez dê margem a suspeita de que ele queria ir para a Austrália e de que matreiramente usara o pretexto dos acontecimentos da noite para isso. Não tenho como refutar essa conjectura; ao contrário, considero que essa seja uma solução que pareceria a muitas pessoas a mais provável para acontecimentos improváveis. A crença em minha própria teoria permanece inabalada. Retornei a casa na noite seguinte para trazer em uma carruagem de aluguel as coisas que lá deixara e o corpo de meu pobre cão. Não fui perturbado, nem qualquer incidente digno de nota me ocorreu, exceto que ainda, ao subir e ao descer a escada, ouvi o mesmo som de passos à frente. Ao deixar o local, dirigi-me à casa do sr. J. Ele estava lá. Devolvi-lhe as chaves, disse-lhe que minha curiosidade fora plenamente satisfeita e, quando estava para relatar rapidamente o que se passara, ele me interrompeu e disse, embora com muita delicadeza, que não tinha mais nenhum interesse por um mistério que ninguém jamais solucionara.



Eu estava decidido a informá-lo pelo menos das duas cartas que lera, assim como do modo extraordinário pelo qual haviam desaparecido, e então indaguei se ele julgava que elas haviam sido endereçadas à mulher que morrera na casa e se havia algo em seu passado que pudesse confirmar as suspeitas sombrias que elas haviam levantado. O sr. J. pareceu assustado e, após ponderar por alguns momentos, respondeu: “Não sei muito a respeito do passado da mulher, salvo, como lhe disse anteriormente, que sua família era conhecida da minha. Mas o senhor reaviva algumas vagas reminiscências desfavoráveis a ela. Farei algumas investigações e o informarei do resultado. Mesmo assim, ainda que pudéssemos aceitar a superstição popular de que uma pessoa que fora ou o criminoso ou a vítima de crimes terríveis em vida conseguisse revisitar, como um espírito inquieto, o

palco no qual esses crimes haviam sido cometidos, é preciso observar que a casa estava infestada de estranhas aparições e sons antes da morte da velha senhora... O senhor sorri! O que o senhor diz?”



“Eu diria o seguinte: que estou convencido de que, se conseguíssemos chegar ao fundo desses mistérios, encontraríamos uma intervenção humana.”



“O quê! O senhor crê que seja tudo uma fraude? Com que finalidade?”



“Não uma fraude no sentido comum da palavra. Se eu subitamente caísse em um sono profundo, do qual o senhor não pudesse me acordar, mas nesse sono pudesse responder a perguntas com uma exatidão que não pode-ria fingir quando acordado, dizer-lhe quanto em dinheiro o senhor tem no bolso; mais ainda, descrever seus próprios pensamentos; isso não é necessariamente uma fraude, tanto quanto não é necessariamente algo sobrenatural. Eu estaria, inconscientemente, sob a mesma influência hipnotizante, que me foi comunicada à distância por um ser humano que havia adquirido poder sobre mim mediante uma ligação anterior.”



“Mas se um hipnotizador pudesse causar um efeito assim sobre um outro ser vivo, o senhor pode imaginar que um hipnotizador conseguiria afetar também objetos inanimados, mover cadeiras, abrir e fechar portas?”



“Ou provocar em nossos sentidos a crença em tais efeitos, embora nunca tivéssemos tido uma ligação com a pessoa que age sobre nós? Não. O que é comumente chamado hipnotismo não conseguiria fazê-lo; mas pode haver um poder afim ao hipnotismo e mais forte do que ele: o poder que em épocas passadas era chamado de Mágico. Se esse poder pode se estender a todos os objetos materiais inanimados, não sei dizer; mas se assim fosse não seria contrário à natureza. Seria apenas um poder raro na natureza que pode-ria ser dado a constituições com certas peculiaridades e desenvolvido a um grau extraordinário mediante a prática. Que esse poder possa ser estendido sobre os mortos — isto é, sobre certos pensamentos e memórias que o morto ainda possa conservar — e obrigar, não aquilo que deveria mais propriamente ser chamado ALMA e que está muito além do alcance humano, mas antes um fantasma do que foi mais terreno neste mundo, a se tornar visível aos nossos sentidos, é uma teoria muito antiga, embora obsoleta, sobre a qual eu não me arriscaria a emitir opinião. Mas não creio que o poder seja sobrenatural. Permita-me exemplificar o que quero dizer com um experimento que Paracelso descreve como mais ou menos fácil e que o autor das
Curiosidades da Literatura
cita como crível. Uma flor perece; é incinerada. Sejam quais forem os elementos daquela flor quando viva, eles desaparecem, dispersam-se, não se sabe para onde; não se consegue nunca encontrá-los ou reuni-los. Mas pode-se, por meios químicos, das cinzas dessa flor criar um espectro dela, com a aparência que ela possuía quando viva. O mesmo pode ocorrer com o ser humano. A alma saiu dele tanto quanto a essência ou os elementos da flor. Ainda assim é possível obter um espectro dela.



“E esse fantasma, embora na superstição popular seja considerado a alma daquele que partiu, não deve ser confundido com a verdadeira alma; trata-se apenas de um
eidolon
da forma morta. Por conseguinte, como as histórias mais bem confirmadas de fantasmas ou espíritos, o que mais nos impressiona é a ausência do que consideramos alma; isto é, da inteligência superior e liberta de preconceitos. Essas aparições surgem com pouco ou nenhum objetivo; elas raramente falam quando surgem; se falassem, não comunicariam idéias acima das de uma pessoa comum na terra. Os videntes norte-americanos publicaram muitos livros sobre comunicações em prosa e em verso, que afirmam ter sido dados sob os nomes dos mortos mais ilustres — Shakespeare, Bacon e sabe-se lá mais quem. Essas comunicações, mesmo as melhores, de forma alguma são superiores às que se obtêm dos vivos de grande talento e educação; são imensamente inferiores ao que Bacon, Shakespeare e Platão disseram ou escreveram quando na Terra. Tampouco — o que é mais notável — elas jamais contêm uma idéia que não houvesse na Terra antes. Por espantosos, portanto, que tais fenômenos possam ser (a crer que sejam verdadeiros), admito que muito possa ser questionado pela filosofia, mas nada que cabe à filosofia negar, isto é, nada que seja sobrenatural. Trata-se apenas de idéias manifestadas de um modo ou de outro (ainda não descobrimos como) de um cérebro mortal para outro. Se, ao fazê-lo, mesas movem-se sozinhas, ou formas malignas aparecem em um círculo mágico, ou mãos sem corpos levantam e escondem objetos materiais, ou uma Filha das Trevas, como a que me apareceu, gela nosso sangue — ainda assim estou convencido de que são apenas intervenções comunicadas, como que por fios elétricos, ao meu próprio cérebro pelo cérebro de um outro. Em algumas constituições há uma química natural, e essas constituições podem produzir prodígios químicos; em outras, um fluido natural — ou eletricidade —, e estes podem produzir prodígios elétricos.



“Mas os prodígios diferem da Ciência Normal nisto: são igualmente sem objetivo, sem finalidade, pueris, incoerentes. Não conduzem a resultados grandiosos; e portanto o mundo não os nota, e os verdadeiros sábios não refletiram sobre eles. Mas estou certo, de tudo que vi ou ouvi, que um homem, tão humano quanto eu, foi sua origem primeira; e acredito que sem consciência dos efeitos pontuais produzidos, pelo seguinte motivo: o senhor disse que duas pessoas jamais vivenciaram a mesma coisa. Ora, veja bem; nunca houve duas pessoas que vivenciassem exatamente o mesmo sonho. Em uma fraude comum, o mecanismo funcionaria com vistas a efeitos quase semelhantes; em uma intervenção sobrenatural concedida por Deus Todo-Poderoso, eles certamente teriam um motivo definido. Esses fenômenos não pertencem a nenhuma dessas categorias; na minha opinião, eles provêm de algum cérebro agora distante; que esse cérebro não produziu voluntariamente nada do que ocorreu; que o que realmente ocorre reflete apenas seus pensamentos errantes, heterogêneos, mutáveis, incompletos; em suma, que se trata de sonhos que esse cérebro pôs em ação e dotou de uma semi-substância. Que esse cérebro possui um poder imenso, que pode mover objetos materiais, que é maligno e destrutivo — nisso eu acredito. Alguma força material deve ter matado meu cão; a mesma força poderia, pelo que sei, ser suficiente para me matar, tivesse eu sido subjugado pelo terror como o cão, não tivesse meu intelecto ou meu espírito apresentado uma resistência compensadora em minha vontade.”



“Ele matou seu cão! Que coisa terrível! De fato, é estranho que não se possa obrigar animal algum a ficar naquela casa; nem mesmo um gato. Não se acham nem ratos nem camundongos lá.”



“Os instintos das criaturas irracionais detectam ameaças letais a sua existência. A razão humana tem uma percepção menos sutil, porque possui um poder de resistência muito superior. Mas basta. O senhor compreende minha teoria?”



“Sim, embora não inteiramente — e aceito qualquer extravagância (com perdão da palavra), embora esquisita, de preferência a aceitar de pronto a idéia de fantasmas e duendes que absorvemos em nossos berços. Ainda assim o mal feito a minha casa continua. Que diabos posso fazer com a casa?”



“Direi o que eu faria. Estou intimamente convencido de que o pequeno quarto vazio contíguo à porta do quarto que ocupei forma um ponto de partida ou receptáculo para as influências que assombram a casa; e aconselho-o a que derrube as paredes e remova o soalho. Mais do que isso: derrube o quarto todo. Observei que ele está separado do corpo da casa e está construído sobre o pequeno quintal e poderia ser removido sem prejuízo do resto do edifício.”



“E o senhor julga que, se eu o fizesse...”



“O senhor cortaria os fios do telégrafo. Tente. Estou convencido de que estou certo, que quase valerá as despesas, se o senhor permitir que co-mande os trabalhos.”



“Não importa, posso arcar com os custos; quanto ao resto, permita-me que o comunique por escrito.” Cerca de dez dias depois, recebi uma carta do sr. J., dizendo que havia visitado a casa desde minha visita a ele; que encontrara as duas cartas que eu dissera ter recolocado na gaveta de onde as tirara; que ele as lera com pressentimentos semelhantes aos meus; que procedera a uma investigação cuidadosa sobre a mulher a quem eu acertadamente imaginara terem elas sido escritas. Ao que parece, trinta e seis anos atrás (um ano antes da data das cartas) ela se casara, contra a vontade de seus parentes, com um americano de caráter suspeito — na verdade, acreditava-se que ele era um pirata. Ela, por sua vez, era filha de comerciantes muito respeitáveis e servira como babá antes de casar-se. Tinha um irmão viúvo, que era tido por rico, com um filho de cerca de seis anos. Um mês antes do casamento, o corpo desse irmão foi encontrado no Tâmisa, perto da Ponte de Londres; havia, ao que parece, algumas marcas de violência em sua garganta, mas elas não foram julgadas suficientes para se instaurar um inquérito e o caso foi encerrado com uma declaração de “encontrado afogado”.



O americano e sua mulher ficaram responsáveis pelo garoto, em virtude de ter o falecido deixado à sua irmã a guarda de seu único filho — e se a criança morresse a irmã seria a herdeira. A criança morreu cerca de seis meses depois; houve suspeitas de negligência e maus-tratos. Os vizinhos testemunharam havê-la ouvido gritar a noite toda. O médico legal que fez o exame
post-mortem
disse que a criança estava emaciada, como se estivesse mal-nutrida, e o corpo estava coberto de contusões lívidas. Parece que, em uma noite de inverno, a criança tentou fugir — arrastou-se até o quintal, tentou escalar o muro, caiu exausta e foi encontrada sobre as pedras pela manhã, agonizante. Porém, não obstante houvesse algumas provas de crueldade, não se pôde alegar assassinato; e a tia e seu marido procuraram dissimular a crueldade pela alegação de extrema teimosia e mau gênio da criança, que se declarou ser retardada. Seja como for, com a morte do órfão, a tia herdou a fortuna do irmão. Antes de um ano de casados, o americano deixou subitamente a Inglaterra e nunca mais retornou. Ele adquiriu uns navios cruzeiros, que se perderam no Atlântico dois anos depois. A viúva ficou rica; mas reveses de diversos tipos lhe sobrevieram; um banco faliu, um investimento deu prejuízo, ela envolveu-se em um negócio de pouca monta e ficou insolvente. Então, buscou empregos, afundando-se cada vez mais, de governanta a faxineira, nunca permanecendo muito tempo no mesmo lugar, embora nada se tenha jamais alegado contra seu caráter. Apesar de considerada equilibrada, honesta e particularmente tranqüila em suas atividades, nada dava certo para ela. Assim foi que acabou no asilo, do qual o sr. J. a tirara, para ser encarregada da mesma casa da qual fora senhora nos primeiros anos de sua vida de casada.



O sr. J. acrescentou que passara uma hora sozinho no quarto vazio que eu lhe aconselhara destruir, e que seus sentimentos de pavor enquanto lá permanecera foram tão grandes, não obstante não ouvisse nem visse nada, que apressou-se em derrubar as paredes e remover o assoalho como eu lhe sugerira. Ele contratara pessoas para o trabalho e começaria qualquer dia que me aprouvesse marcar.



Marcou-se, assim, o dia. Retornei à casa assombrada, entrei no lúgubre quarto vazio, tirei os lambris e depois o assoalho. Sob as vigas, coberto com entulho, encontrou-se um alçapão, grande o suficiente para um homem. Ele estava bem pregado, com parafusos e rebites de ferro. Depois de removê-los, descemos a um quarto abaixo, de cuja existência nunca se havia suspeitado. Nesse quarto, houvera uma janela e um fumeiro, mas eles haviam sido cobertos de tijolos, aparentemente muitos anos atrás. Com o auxílio de velas, examinamos esse lugar; ele ainda conservava alguns móveis deteriorados — três cadeiras, um banco de carvalho, uma mesa — todos no estilo de cerca de oitenta anos antes. Havia uma cômoda contra a parede, na qual encontramos, meio roídas, peças de vestimenta masculina antigas, do tipo que se usava oitenta ou cem anos antes por um cavalheiro de posses — fivelas caras e botões de aço, como os que ainda se usam em vestes de corte, uma bela espada. Em um colete que no passado fora adornado de renda dourada, mas que agora estava enegrecida e suja de umidade, encontramos cinco guinéus, umas poucas moedas de prata e um ingresso de marfim, provavelmente para um lugar de entretenimento há muito desaparecido. Mas nossa principal descoberta foi em uma espécie de cofre de ferro fixado à parede, cuja fechadura muito nos custou arrombar.



Nesse cofre havia três prateleiras e duas gavetas pequenas. Alinhadas nas prateleiras havia várias garrafas de cristal hermeticamente fechadas. Elas continham essências voláteis incolores, de cuja natureza direi somente que não era venenosa — havia fósforo ou amônia na composição de algumas delas. Havia também alguns tubos de vidro muito estranhos e uma haste pequena e pontuda de ferro, com uma protuberância de cristal de rocha e uma outra de âmbar — também uma magnetita de grande poder.



Em uma das gavetas, encontramos um retrato miniatura com moldura de ouro, cujas cores se conservavam admiravelmente vividas, apesar do grande espaço de tempo que provavelmente permanecera lá. O retrato era de um homem já na meia-idade, talvez quarenta e sete ou quarenta e oito.



Era um rosto notável, impressionante. Se pudéssemos imaginar uma serpente poderosa transformada em homem e que conservasse nos traços humanos as características anteriores do réptil, teríamos uma idéia melhor daquela fisionomia do que podem dar longas descrições: a largura e achata-mento da testa, o elegante afilamento do contorno, que disfarçava a força da mandíbula letal, os olhos longos, grandes e terríveis a brilhar, verdes como esmeraldas, e contudo uma certa calma implacável, como que nascida da consciência de um imenso poder.



Mecanicamente virei a miniatura para examinar seu verso e nele estava gravado um pentagrama; no meio deste, uma escada, cujo terceiro degrau era formado pela data 1765. Examinando-o mais detalhadamente, descobri uma mola que, ao ser pressionada, abriu o verso da miniatura, como uma tampa. Dentro dela estava gravado: “Marianna, para ti. Sê fiel na vida e na morte a...” Aqui seguia um nome que não mencionarei, mas que não me era desconhecido. Ouvira-o da boca de pessoas idosas, em minha infância, como o nome de um charlatão fascinante que fizera sensação em Londres durante mais ou menos um ano e que fugira do país sob a acusação de duplo homicídio dentro de sua própria casa: a de sua amante e de seu rival. Eu nada disse sobre isso ao sr. J., a quem relutantemente entreguei a miniatura.



Não tivemos dificuldade em abrir a primeira gaveta dentro do cofre de ferro; encontramos grande dificuldade em abrir a segunda: ela não estava trancada, mas resistiu a todos os esforços, até que inserimos nas frestas a lâmina de um formão. Quando assim a havíamos puxado, encontramos um instrumento muito singular, de grande refinamento. Sobre um livro pequeno e fino, ou antes um bloco, estava colocado um pires de cristal; esse pires estava cheio de um líquido claro, e nele flutuava uma espécie de bússola, com uma agulha que girava rapidamente; mas em vez dos pontos usuais de uma bússola havia sete caracteres estranhos, não muito diferentes dos usados por astrólogos para indicar planetas.



Um odor singular, mas não forte nem desagradável, veio dessa gaveta, que estava forrada de uma madeira que depois descobrimos ser aveleira. Esse odor, qualquer que fosse sua origem, produziu um grande efeito sobre os nervos. Todos nós o sentimos, até mesmo os dois operários que estavam no quarto — uma sensação de formigamento e de arrepio que subia das pontas dos dedos da mão até as raízes do cabelo. Impaciente por examinar o bloco, removi o pires. Quando o fiz, a agulha da bússola girou com extrema rapidez, e eu senti um choque que percorreu todo meu corpo e me fez deixar cair ao chão o pires. O líquido derramou-se, o pires quebrou, a bússola rolou pelo quarto e naquele instante as paredes oscilaram para frente e para trás, como se um gigante as balançasse e agitasse. Os dois operários ficaram tão apavorados que subiram a escada pela qual havíamos descido do alçapão; mas, vendo que nada mais acontecia, foram facilmente convencidos a retornar.



Entrementes, eu abrira o bloco: ele estava encadernado de pele vermelha lisa, com um fecho de prata; continha apenas uma folha de velino espesso, e nessa folha estavam escritas dentro de um pentagrama duplo palavras em antigo latim monacal, que poderiam ser traduzidas literalmente como se segue: “Sobre todos aqueles que adentrarem estas paredes — sensíveis ou inanimados, vivos ou mortos — e moverem a agulha, será exercida a minha vontade! Maldita seja a casa e desinquietos sejam os seus habitantes”.



Nada mais encontramos. O sr. J. queimou o bloco e seu anátema. Ele demoliu a parte do edifício que continha o quarto secreto e o compartimento sobre ele. Teve então a coragem de habitar ele próprio a casa durante um mês, e casa mais tranqüila e mais saudável não havia em toda Londres. Pouco tempo depois, ele a alugou bem, e seu inquilino não fez quaisquer queixas.

2 comentários:

Unknown disse...

Oi Henry,
Que bom que voltou...=)

Anônimo disse...

Bulwer-Lytton, sempre genial!

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Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

§ 1º Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 2º Na mesma pena do § 1o incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente.

§ 3º Se a violação consistir no oferecimento ao público, mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para recebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro, direto ou indireto, sem autorização expressa, conforme o caso, do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor de fonograma, ou de quem os represente:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 4º O disposto nos §§ 1o, 2o e 3o não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto.



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