RUA DOS ESPÍRITOS
Um conto de A.S. vieira
Em memória de uma casa localizada em algum lugar de número 8903
A rua arvoredo, no Rio de Janeiro, ficava em um dos bairros mais comuns da cidade. E não era perigoso; na verdade era bem seguro. Todos gostavam de morar naquele lugar. Um lugar delicioso, a poucos minutos da praia e bem próximo da cachoeira, cercado de verde por todos os lados. Por isso todos estranharam os acontecimentos da noite de 12 de outubro de 2007.
Rita e seu filho Antônio, de 17 anos, moravam no maior casarão da rua. Uma bela casa vitoriana, construída na época dos escravos, que eles haviam ganhado dos antigos donos após a morte dos mesmos. Não eram ricos, mas mantinham a casa muito bem. Porém, a hera crescia descontrolada pelas grades e pelo portão, assim como pelas paredes escuras da casa. Os dois viviam em perfeita harmonia na casa, até aquele fatídico dia.
Na rua arvoredo havia outras casas e foi o morador da residência imediatamente ao lado do casarão quem ouviu os primeiros gritos. No começo pensou se tratar de uma briga entre mãe e filho, mas os gritos começaram a parecer histéricos e então clamores de socorro, por parte dos dois, surgiram. Logo todos os vizinhos foram acordados pelos gritos e latidos de cães. A polícia foi acionada.
Quando a viatura chegou ao casarão, os moradores estavam lá em peso. Segundo eles, ninguém saíra pelo portão e os gritos haviam cessado minutos antes. Quando a polícia abriu o portão de metal, que rangeu de forma incomodada, todos viram a menina.
Era uma criança. Linda, parecendo uma boneca de porcelana, usando um charmoso vestidinho xadrez e com os cabelos dourados encaracolados. Seu rosto era branco, mas as maçãs eram rosadas. Era uma linda menininha. Linda, mas que ninguém jamais vira antes ali. A criança apenas os olhou, sorriu e sumiu na escuridão do bosque que ladeava a casa.
Os policiais já entraram esperando pelo pior. E encontraram a casa em um caos completo. Móveis quebrados, papéis rasgados, roupas espalhadas e sangue, muito sangue. Vasculharam a casa inteira duas vezes, mas nem sinal dos corpos.
- E então? – perguntou o vizinho que primeiro ouvira os gritos – Acharam eles?
- Não encontramos corpos, mas há sangue por toda a casa. Vamos acionar a perícia.
E a menina passou de novo diante da casa segurando o riso. E aquilo chocou os vizinhos.
- Quem é você? – perguntou um dos policiais.
- Eu só queria brincar – disse simplesmente e voltou a sumir rindo.
A perícia confirmou: O sangue no chão era mesmo de Rita e Antônio, mas não apenas deles. Havia pelo menos sangue de mais outras dez pessoas diferentes. Mas, como era notório, Rita e Antônio não moravam com ninguém naquela casa. Eram os vizinhos mais simpáticos da rua e aquele caso chocou a todos. Quem em sã consciência tiraria a vida daquelas duas pessoas maravilhosas e esconderia os corpos? E quem era aquela criança que apareceu na noite em que eles desapareceram?
Durante mais de dois meses procuraram-se pelos corpos e o assassino de Rita e Antônio. Pessoas visitavam a casa, depositavam flores no portão e rezavam. Suspeitos foram presos e liberados, porém a polícia não sabia o que aconteceu naquela casa naquela noite. Até que eles voltaram.
Rute, a vizinha do começo da rua, estava passeando com seus cachorros como fazia todas as noites. Após o crime, ela sempre pedia pela alma dos vizinhos ao passar pelo casarão. Mas, naquela noite, após levar seus cachorros para fazerem suas necessidades, que ela sempre recolhia e depositava no lixo, ela viu Rita. O medo tomou conta de Rute e ela pensou em gritar, mas se calou ao ver que a vizinha parecia bem, sentada em uma das cadeiras do jardim da frente conversando com a menina de cabelos cacheados. As duas riam muito. Rute as olhou por alguns minutos, até que Antônio chegou e sentou no chão, diante delas. Todos riam bastante, parecendo se divertir com uma história interessante.
- Rita – chamou Rute após tomar coragem.
A vizinha ergueu os olhos e acenou para ela. Rute meio que se sentiu aliviada, mas havia algo de errado ali. Os dois não eram os mesmos. E só então Rute percebeu que a casa estava toda escura, mergulhada nas sombras. Sombras essas que engoliram as três pessoas que riam e então todos desapareceram.
Rute se mudou na mesma semana.
Numa manhã de janeiro, quando Antônio completaria vinte anos, seus amigos de faculdade apareceram para lhes levar flores. Assim que desceram do carro, o portão do casarão, no qual tantas vezes estiveram, se abriu. Eles olharam em volta, meio assustados constataram que a faixa amarela usada pela polícia continuava lá. Cinco rapazes e seis moças contaram para a polícia, e depois para a imprensa, que eles ouviram o piano tocando na sala e resolveram entrar pela porta que estava entreaberta, apesar dos policiais deixarem claro que trancaram todo o casarão. Ali os universitários viram um baile acontecendo.
A menina de cabelos cacheados estava ao piano, enquanto várias pessoas, de diferentes tipos físicos conversavam e dançavam. Uma das meninas gritou ao ver que muitos deles não tocavam os pés no chão, onde se via muito sangue. Ao olharem de novo para as pessoas no baile, viram que eles pareciam cadáveres. As meninas gritaram.
Ao correrem porta afora, Antônio os encontrou no portão e sorriu.
- Não preciso de suas flores – disse ele – Preciso de companhia.
Os meninos da faculdade voltaram lá com a polícia. Tanto o portão, quanto a porta da frente estavam trancados. Entraram no casarão. O chão na sala estava limpo. Mas os policiais viram algo que não estava lá antes: algumas partituras de piano, datadas de 1843.
Uma nota: Em 1843 só havia aquele casarão naquelas redondezas. Sequer havia rua, ou arvoredo. Eram tudo terras e mais terras, com algumas senzalas. Durante um baile, oferecido a uma família, três corpulentos escravos que fugiram da senzala invadiram a casa, entraram na sala onde a festa acontecia, mataram os homens e depois estupraram as mulheres até a morte, deixando a casa com um tapete de sangue. A primeira carnificina da cidade e sequer foi noticiada.
Um fato que merece ser mencionado: A filha dos donos da casa, uma bela menina de seis anos com cabelos encaracolados, assistiu a toda cena apavorada. Foi a única a ser poupada. Em choque, não conseguia parar de tocar as músicas ao piano proporcionando uma macabra trilha sonora ao massacre de sua família e seus amigos. Foi arrancada de lá pelo preto velho e algumas mães de santo, que cuidaram da limpeza do lugar e da ocultação dos cadáveres. Ninguém jamais tocou naquele assunto.
A menina de cabelos dourados desapareceu. Assim como os três responsáveis pelo massacre. Dela não se tem notícia, mas os escravos foram encontrados estripados no cruzeiro da igreja em um evento comentado até hoje como lenda.
As aparições de Rita e Antônio se tornaram tão freqüentes que atraíram curiosos e repórteres. Padres foram chamados, pastores solicitados, mas ninguém sabia como explicar aquele incidente. Chegou-se à conclusão de que mãe e filho estavam vivos, escondidos, pregando peças nas pessoas. Falaram sobre isso certa noite na televisão, tratando os moradores da rua arvoredo como chacota.
E foi justamente nessa noite em que os corpos apareceram. Rita e Antônio foram encontrados em avançado estado de decomposição enterrados há alguns metros atrás da casa. Enquanto os desenterravam, os especialistas encontraram várias ossadas. Corpos e mais corpos enterrados ao redor do casarão no que seria um verdadeiro cemitério clandestino.
Ninguém sabia o que dizer. Nem sobre isso, tampouco quando os espíritos começaram a tomar conta do casarão, do bosque e então da rua. Eles apareciam a noite, às vezes ao dia, atacando moradores, rindo, tocando canções macabras. E dançavam na rua sob o luar. O espírito que mais se divertia era o da pequena menina de cabelos encaracolados.
Divertia-se com o terror das pessoas, se divertiu quando os vizinhos partiram, se divertia espantando padres e outros líderes espirituais... E se divertiu ainda mais quando o prefeito da cidade lacrou as entradas e saídas da rua arvoredo, indo a público dizer que aquele lugar estava além de qualquer explicação racional e era proibido. Ninguém deveria passar por ali.
Mas as pessoas são descrentes e duvidam de tudo. Ainda mais em tempos modernos quanto os nossos. Por isso muitas pessoas, principalmente jovens e crianças, que se aventuraram por lá nunca mais foram vistas. E assim passaram-se os anos.
Certa tarde, um casal de repórteres americanos parou diante da cancela que bloqueava a passagem para a rua arvoredo e fotografaram o aviso. Eram apresentadores de um programa de mistérios na TV americana. Eles então viram uma garotinha de cabelos loiros encaracolados correndo apavorada.
- Socorro – gritava ela.
O casal de turistas pulou a cancela para ajudá-la.
- O que aconteceu? – perguntou a mulher em um português forçado.
- Minha mãe foi levada pelos espíritos. Ajudem-me!
- Claro que sim. Onde ela está?
- No casarão.
Os apresentadores se dirigiram até o casarão. Desapareceram e o caso foi divulgado pelo mundo inteiro.
A menina então dançou e riu sozinha na rua. Era bela, agora de uma maneira assustadora. E enquanto dançava, um preto velho surgiu das sombras atrás dela.
- Lara – chamou ele.
- Oi – respondeu ela, com tristeza no olhar.
- Ele, o senhor do fundo, está satisfeito com você. Graças a você ninguém mais desconfia de sua existência.
- Então, estou livre?
- Ainda não, Lara. Não sabemos o que fazer de você. Quando deu sua alma em troca de vingança pela morte de sua família, não esperávamos que houvesse um senão em tudo o que aconteceu.
- Que senão?
- Você era criança. Ele não podia ter negociado com você.
Ela chorou, angustiantemente.
- E o que eu faço?
- Vá brincar de trazer novas almas para ele. Não é a brincadeira que você mais gosta, minha filha?
- É a melhor brincadeira no mundo.
Eles riram. Riram de uma maneira gostosa, como velhos amigos riem quando se reúnem. Então ela correu apreciando a noite que caía e se juntou aos espíritos de sua famílias, seus amigos e outras pessoas que ela nunca conheceu direito, como Rita e Antônio. Juntou-se a eles enquanto sapateavam sobre os corpos dos turistas americanos.
De longe o preto velho ria com mais gosto ainda. Riu até que lágrimas saíram dos seus olhos, que foram ficando avermelhados. Então alguém surgiu na escuridão, usando uma capa escura. Um bode preto caminhava a seu lado. O velho se aproximou dos dois e, conversando, desapareceram para além das sombras da noite.
2 comentários:
Valeu, A. S. Vieira. Gostei do conto. O Henry tem razão: seus contos assustam mesmo.
Adoro seus contos, A.S. Vieira!
Tenho apenas 11 anos e com seus contos penso até em me tornar escritora!
Após ler ''Não Durma'', me inspirei e fiz uma redação para a escola, meus colegas me elogiaram dizendo que provoquei calafrios!
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