O escritor Sergio Paulo De Mello Fonseca nos presentei com um dos contos sobre lobisomens mais interessantes da literatura brasileira. Boa leitura!
A CRIATURA DO ENGENHO VELHO
Sergio Paulo De Mello Fonseca
No início do século XVIII, a região Nordeste mostrava claramente na zona canavieira os sinais de decadência. A região, que no início da colonização portuguesa tinha recebido alguns progressivos estímulos da coroa e até merecido durante um bom período o interesse da presença estrangeira holandesa, estava perdendo a vez para as regiões do ouro. Os engenhos de açúcar característicos da região, começaram a se tornar onerosos e muitos por conta das dívidas dos donos, viraram terra de ninguém ou deixando os vilarejos que surgiam à sua proximidade, por conta de um possível intercâmbio comercial, com a árdua tarefa de prosseguirem com suas próprias pernas. Entre estes que foram abandonados estava o Engenho Velho. Foi engenho batizado com outro nome - nome que preservo - mas que no decorrer dos anos e com o abandono, tornou-se apenas o "Engenho Velho". A Casa Grande tornou-se morada dos animais silvestres, o mato cresceu, telhas caíram, vigas apodreceram resolutas. A vila próxima que surgiu à sua volta no seu período de esplendor, a poucas horas de Recife, conseguiu tornar-se relativamente próspera. Em 1728, já possuía uma boa centena de almas e muitas histórias. Entre algumas que se contavam, inclusive sendo encenada num palco da pequena praça no dia de Todos os Santos, com uma certa relutância do padre da região, era a história da Criatura do Engenho Velho, que passo neste momento a contar. Muitos adultos torciam o nariz para aquilo que parecia crendice. Mas durante quase uma década, oito moradores desapareceram inexplicavelmente. Todos adultos, sem nenhum motivo para fugir e quase nada deixando como prova. Apenas de um deles, o solitário João de Deus Oliveira, foi encontrada uma garrucha detonada e manchada de sangue num caminho que levava ao Engenho Velho. Todos eram homens e haviam desaparecido provavelmente nas horas que antecedem o nascer do dia e em pelo menos duas vezes, gritos de socorro verdadeiramente desesperados tinham ecoado pelos campos quase adormecidos. A vida continuava e a vila ia paulatinamente crescendo, atraindo quase sempre um viajante, um comerciante, um aventureiro. No início do mês de novembro, num dos períodos mais quentes do ano, chegou mais um visitante: José Alves Calhandra. Tinha 24 anos e uma grande vontade de se estabelecer no Brasil. Tinha dinheiro fácil; era único herdeiro de sua mãe viúva. Fez amizade rápido no lugar. Era bom de copo e quase imediatamente à sua chegada, tornou-se o assunto do lugar, sendo alvo durante as missas do assédio de quase todas as moças "casadoiras" da cidade.
Bem, numa noite de farra, tomou conhecimento da existência do Engenho Velho. Melhor, tomou conhecimento de que o lugar estava abandonado e sem esconder, com uma dose de exagerada euforia, disse que o ocuparia sem demora. Os mais chegados tentaram demovê-lo de tal idéia. Certamente haveriam dificuldades e além do mais, alguém lembrou de que todos os se aproximaram do Engenho Velho tinham desaparecido. Desnecessário dizer que José não ficou nem um pouco impressionado com aquela história. Era alguém vindo de um grande centro e não cairia fácil nessas crendices de um lugar meio perdido na colônia. Arrumou poucas coisas num alforje e com a montaria seguiu pela trilha do Engenho assim que amanheceu. Ficou impressionado com a beleza do lugar; a própria decadência promoveu que a flora se recuperasse um pouco, mas o caminho era perturbadoramente silencioso. Após algum tempo no caminho, foi divisando ao longe o complexo do Engenho. Até que chegou e começou sua pesquisa. Animou-se com o que encontrou. Apesar do abandono, encontrou salas e quartos amplos, enorme cozinha; em volta da casa, um razoável pomar de mangueiras, jambeiros e cajueiros. Uma senzala também considerável e uma cavalariça que mostrava a antiga opulência dos proprietários.. Bem... entre o caminho, a chegada e o reconhecimento da casa, o almoço à sombra de um cajueiro, o dia passou rápido e logo escureceu. José Alves estão à vontade naquele lugar que decidiu dormir ali. Iria se arrepender. Mas a noite prometia. A lua surgiu cheia... maravilhosa... iluminando os campos abandonados. Logo após verificar que a cavalgadura estava bem guardada e jantar decidiu dormir. Lua cheia e não sabia, mas era exatamente a lua ideal para a criatura do Engenho Velho. Às duas da manhã quase em ponto, sonhando talvez com o Engenho próspero, José foi acordado por um rugido tão pavoroso vindo dos campos próximos, que foi premiado com uma instantânea dor de cabeça. Atordoado, tentou pensar no que estaria acontecendo e logo pensou no cavalo alugado. Tropeçando na escuridão, correu até onde estava a montaria e a encontrou extremamente nervosa e mal tentou desamarrar a rédea, um outro urro ecoou pela madrugada, dessa vez bem próximo. Isso foi o suficiente para que o cavalo num salto saísse em desabalada carreira, fugindo. Estava miseravelmente só. Talvez nem tanto e pela primeira vez percebeu que não deveria ter menosprezado as orientações de quem conhecia o lugar. De mãos vazias correu de volta à varanda tentando uma visão mais privilegiada do que poderia estar acontecendo. A lua facilitou um pouco e acocorado por trás da pequena murada começou a percorrer com a vista os campos. Até pensou que poderia ser uma peça pregada pelos amigos da vila, mas o terceiro urro o chamou à realidade. Definitivamente aquilo era vindo de um ser animalesco. Ninguém conseguiria produzir aquele som. O coração estava aos pulos e, fosse o que fosse, estava conseguindo assustar-lhe. E ali, naquela trincheira improvisada, percebeu que, da casa abandonada, algo vinha entre saltos e corrida, fazendo vergar as canas selvagens, capim e erva. José preferiu não ver quem era aquele visitante veloz e procurou relembrar um lugar ali que efetivamente pudesse lhe servir de proteção. Pelas portas abertas da casa adentrou, esbarrando com força numa parede do segundo corredor, mas deixou a dor para depois e numa rota que foi mais comprida do que a que havia percorrido, como um raio mergulhou no chão e emburacou pelo portão da terceira cavalariça e encolhido atrás da portaria tentou ficar invisível, agachado e abraçando com força os joelhos. Um uivo ecoou pelo que percebeu ser dentro da casa abandonada e o medo gelou-o. Mentalmente amaldiçoou a luz da lua que indiferente penetrava tranqüilamente pelas frestas do lugar. Subitamente, escutou uma violenta pancada na porta da primeira cavalariça que ao impacto desabou. O senso de preservação e o medo o paralisaram. A audição apurou-se como de um animal e olhos saltavam da órbita, fruto de um medo que até aquele momento desconhecia. Percebeu pesadas passadas e uma respiração ofegante percorrendo a rua da cavalariça. De onde estava havia uma fresta entre as madeiras do portão. Postou-se lentamente diante daquele ponto de observação e esperou. O que viu, ultrapassou tudo o que sua imaginação poderia lhe dar e jamais esqueceu... Completamente indefeso e com o sangue correndo gelado nas veias, José Alves, se pudesse, deixaria de respirar. Pela fresta, e o pior, exatamente às poucos metros dele, surgiu um ser que só tinha escutado falar em histórias antigas ou de folclore em sua terra. Quase completamente cobertos de pelos, com membros definitivamente humanos, mas não podia dizer o mesmo da cabeça, que lembrava uma descomunal cabeça de cão e enormes presas que se sobressaíam de uma boca que se mostrava ainda sangrenta, a criatura tinha entre as garras da mão esquerda, um fragmento grande de carne, que tinha sido visivelmente arrancada. José colocou a mão na boca, quase mordendo os dedos de tanto pavor. Pior, a criatura cheirava o ar tentando localizar algo...tentando localizar sua presa... José Alves. Um urro ecoou pela cavalariça abandonada e pela misturas de odores daquele lugar, aquela criatura tinha dificuldade de localizar o que procurava e após alguns minutos diante dos olhos crispados de José, reiniciou sua corrida pela madrugada adentro. O medo que José sentia era tão grande que o rapaz não teve coragem de se mexer um centímetro. Nem perceber que os ruídos daquela indescritível criatura ficaram bem distantes causou sobre ele qualquer lenitivo.
O dia chegou e por volta das onze horas da manhã, o lugarejo viu adentrar um José Alves completamente diferente. Sujo, com os cabelos em total desalinho e com um olhar que marcou quem o viu. Silenciosamente e após trocar as roupas, que inclusive rasgou em inúmeras tiras, arrumou tudo. Os mais próximos estavam preocupados com o que havia acontecido. José desconversou e disse que coisas inadiáveis o esperavam em Coimbra, terra natal. Chamou-me em particular e me entregou um maço de papéis. Disse-me que tudo precisávamos saber estava ali, mas me fez jurar que só leria após sua saída do lugar. Confesso que sua expressão me convenceu. Já se vão mais de 16 anos que partiu e nunca mais voltou. O Engenho Velho continua abandonado. Cinco pessoas nesse período desapareceram sem deixar rastros. E todos fazemos de conta - talvez para nosso próprio bem - que a nossa vida continua absolutamente normal.
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