O escritor Mephisto, mestre das narrativas curtas, estréia como nosso colaborador com um conto escrito exclusivamente para a Câmara dos Tormentos e que nos transporta para dentro dos horrores noturnos que se escondem por trás da Santa Sé. Boa leitura!
O CARDEAL E O DEMÔNIO
Por Mephisto
Para Henry Evaristo.
O Cardeal Leonardo Monti, Camerlengo da Santa Sé, sonhara a vida inteira em vestir as sandálias do Pescador. Já sentia, aos se lacrarem os portais da Capela Cistina, para abrigar o enfadonho conclave de vários dias, tremer e delirar o dedo onde se aninharia o anel de Pedro, o Pescador. E seria Clemente XVI, o Justo, pois o nome e o título para a posteridade já cuidara de bem escolher.
Mas do conclave saíra derrotado. E foi com o espírito imbuído de miséria e rancor que, à multidão que se acotovelava na da Praça de São Pedro, teve de esconder toda inveja que quase se lhe escapava dos lábios. Pois anunciou, com o peito em convulsão, e o espírito cheio de terror, a frase mais dolorosa que qualquer camerlengo pode anunciar:
- Habemus papam!
O Cardeal Vincenzo Nenni assomou à janela, e, ostentando o pomposo título de Gregório XVII, acenou para a multidão.
Como conciliar o sono, Cardeal Leonardo Monti, o Preterido? Como admitir que agora, nos aposentos reservados ao Papa, não era a sua cabeça que, sobre travesseiros sedosos, desfiava os sonhos majestosos, que só um pontífice magnífico, e por Deus abençoado, pode sonhar? Como admitir que séculos se passariam, até que Clemente XVI – outro, e não ele – envergasse a mitra e o cetro?
Então Leonardo Monti – que jamais seria clemente –, munido de adaga, percorreu os corredores que conduziam aos aposentos onde Vincenzo Nenni repousava. E esteve bem próximo do coração do papa eleito. Chegou a ouvir o peito do novo pontífice arfar inocentemente.
Mas, de súbito, Gregório XVII virou-se. E já não mais ostentava a quase nunca absconsa aparência humana, a que não era a verdadeira, e que sempre lhe aflorava às faces demoníacas quando em presença de terceiros. No brusco movimento que se seguiu, Sua Santidade deixou escapar, das dobras de sua roupa de dormir, uma extensão escamosa. Era uma longa e horrenda cauda, que findava em flecha, como se fora de dragão, e que se agitava no ar como uma serpente indolente e ameaçadora.
E, antes que Leonardo Monti deixasse cair o punhal oscilante, os chifres enristados, que evoluíam de Gregório XVIII, a partir de um simulacro horrendo de cabeça caprina, cravaram-se argutamente no peito do camerlengo. E ninguém viu o chão do Vaticano embeber-se da cor da inveja, após uma torrente de esgares e esguichos caudalosos. Mas garanto que, de tão nefasta, essa cor indizível não se compara com a doce púrpura do sangue, nem com o carmim das vestes talares dos cardeais.
Sabe-se, apenas, que Gregório XVII, envolto sempre no seu manto papal, que escondia coisas escamosas e abjetas, reinou e reinará ainda por muitos anos. E que a peste e o cadafalso são o seu sinete. E que muitos foram e serão os horrores que a inveja de Leonardo Monti, o cardeal rancoroso, não pôde evitar.
(Quem tiver inteligência, que calcule o número de Mephisto, pois é um número de um homem e o seu número é 57.)
Nota do blog: Ao amigo Mephisto os agradecimentos por ter elaborado este trabalho exclusivamente para a Câmara. Ficamos lisonjeados com a atenção e nos sentimos fortalecidos para continuar nosso trabalho dentro da literatura fantástica brasileira.
Henry Evaristo
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