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31.8.07

O CARDEAL E O DEMÔNIO


O escritor Mephisto, mestre das narrativas curtas, estréia como nosso colaborador com um conto escrito exclusivamente para a Câmara dos Tormentos e que nos transporta para dentro dos horrores noturnos que se escondem por trás da Santa Sé. Boa leitura!




O CARDEAL E O DEMÔNIO

Por Mephisto




Para Henry Evaristo.

O Cardeal Leonardo Monti, Camerlengo da Santa Sé, sonhara a vida inteira em vestir as sandálias do Pescador. Já sentia, aos se lacrarem os portais da Capela Cistina, para abrigar o enfadonho conclave de vários dias, tremer e delirar o dedo onde se aninharia o anel de Pedro, o Pescador. E seria Clemente XVI, o Justo, pois o nome e o título para a posteridade já cuidara de bem escolher.


Mas do conclave saíra derrotado. E foi com o espírito imbuído de miséria e rancor que, à multidão que se acotovelava na da Praça de São Pedro, teve de esconder toda inveja que quase se lhe escapava dos lábios. Pois anunciou, com o peito em convulsão, e o espírito cheio de terror, a frase mais dolorosa que qualquer camerlengo pode anunciar:


- Habemus papam!


O Cardeal Vincenzo Nenni assomou à janela, e, ostentando o pomposo título de Gregório XVII, acenou para a multidão.


Como conciliar o sono, Cardeal Leonardo Monti, o Preterido? Como admitir que agora, nos aposentos reservados ao Papa, não era a sua cabeça que, sobre travesseiros sedosos, desfiava os sonhos majestosos, que só um pontífice magnífico, e por Deus abençoado, pode sonhar? Como admitir que séculos se passariam, até que Clemente XVI – outro, e não ele – envergasse a mitra e o cetro?


Então Leonardo Monti – que jamais seria clemente –, munido de adaga, percorreu os corredores que conduziam aos aposentos onde Vincenzo Nenni repousava. E esteve bem próximo do coração do papa eleito. Chegou a ouvir o peito do novo pontífice arfar inocentemente.


Mas, de súbito, Gregório XVII virou-se. E já não mais ostentava a quase nunca absconsa aparência humana, a que não era a verdadeira, e que sempre lhe aflorava às faces demoníacas quando em presença de terceiros. No brusco movimento que se seguiu, Sua Santidade deixou escapar, das dobras de sua roupa de dormir, uma extensão escamosa. Era uma longa e horrenda cauda, que findava em flecha, como se fora de dragão, e que se agitava no ar como uma serpente indolente e ameaçadora.


E, antes que Leonardo Monti deixasse cair o punhal oscilante, os chifres enristados, que evoluíam de Gregório XVIII, a partir de um simulacro horrendo de cabeça caprina, cravaram-se argutamente no peito do camerlengo. E ninguém viu o chão do Vaticano embeber-se da cor da inveja, após uma torrente de esgares e esguichos caudalosos. Mas garanto que, de tão nefasta, essa cor indizível não se compara com a doce púrpura do sangue, nem com o carmim das vestes talares dos cardeais.


Sabe-se, apenas, que Gregório XVII, envolto sempre no seu manto papal, que escondia coisas escamosas e abjetas, reinou e reinará ainda por muitos anos. E que a peste e o cadafalso são o seu sinete. E que muitos foram e serão os horrores que a inveja de Leonardo Monti, o cardeal rancoroso, não pôde evitar.

(Quem tiver inteligência, que calcule o número de Mephisto, pois é um número de um homem e o seu número é 57.)


Nota do blog:
Ao amigo Mephisto os agradecimentos por ter elaborado este trabalho exclusivamente para a Câmara. Ficamos lisonjeados com a atenção e nos sentimos fortalecidos para continuar nosso trabalho dentro da literatura fantástica brasileira.


Henry Evaristo

30.8.07

GUERRA DOS MUNDOS (continuação)

LIVRO I - CAPÍTULOS XI, XII, XIII & XIV


XI À JANELA

Já afirmei que as minhas tempestades emocionais amainavam, habitualmente, por si mesmas. Passados alguns momentos, descobri que tinha frio e estava molhado e que havia em meu redor pequenas poças de água na passadeira. Levantei-me quase mecanicamente, entrei na sala de jantar e bebi uma porção de whisky e, depois, mudei de roupa.

Em seguida, subi as escadas e penetrei no escritório, mas não sei qual o motivo que me impeliu a fazer isto. Da janela do escritório viam-se as árvores e a via férrea, nas imediações de Horsell Common. Na precipitação da nossa partida, deixáramos a janela aberta. O corredor estava sombrio, e, por contraste com a imagem emoldurada pelo caixilho da janela, o aposento parecia mergulhado numa escuridão impenetrável. Detive-me repentinamente no limiar da porta.

O temporal passara. As torres do Oriental College e os pinhais em volta tinham desaparecido e, muito mais longe, banhado por um clarão vermelho-vivo, via-se o baldio nas imediações dos fossos de areia. A luz, moviam-se diligentemente enormes formas negras, grotescas e estranhas.
Na realidade, era como se todo o campo daquele lado estivesse em chamas. Sobre uma larga extensão da colina divisavam-se pequenas línguas de fogo, oscilando e retorcendo-se sob as rajadas de vento do temporal moribundo, e projectando nas nuvens uma sombra vermelha. De vez em quando, uma neblina de fumo, provinda de alguma deflagração mais próxima, penetrava pela janela e ocultava os vultos dos marcianos. Não conseguia ver o que estavam a fazer, nem as suas formas nítidas, nem reconhecia os objectos negros com que se ocupavam. Também não podia ver os incêndios mais próximos, embora os seus reflexos dançassem sobre a parede e o tecto do escritório. Pairava no ar um cheiro penetrante a incêndio, picante e resinoso.

Fechei a porta sem ruído e rastejei para a janela. Nesse momento, a luz tornou-se mais intensa e pude ver, de um lado, as casas vizinhas da estação de Wo-king e, do outro, os pinhais carbonizados e enegrecidos de Byfleet. Brilhava uma luz no sopé da colina, na via férrea, perto do arco da ponte, e algumas das casas da estrada de Maybury e das ruas ao pé da estação estavam em ruínas. De início, aquela luz na via férrea intrigou-me; havia um vulto negro e um clarão vivo, e à sua direita uma fileira de quadriláteros amarelos. Em seguida, apercebi-me de que se tratava de um comboio descarrilado, com a parte da frente esmagada, em chamas, e as carruagens traseiras ainda assentes sobre os carris.

Entre estes três principais pontos luminosos - as casas, o comboio e o incêndio nas imediações de Chobham -, estendiam-se tratos irregulares e escuros, entremeados aqui e além por intervalos de chamas, vagos e fumegantes. Esta negra extensão em chamas era o espectáculo mais estranho que se pode imaginar. Fez-me lembrar, mais do que qualquer outra coisa, as Potteries(1 - Região oleira em Staffardshire) à noite. A princípio, não avistei ninguém, embora fosse essa a minha intenção. Mais tarde, à luz que provinha da estação de Woking, vi algumas figuras negras que corriam, uma após outra, atravessando a linha.

E era este o pequeno mundo no qual vivera em segurança durante anos, este caos ardente! Não sabia ainda o que acontecera nas últimas sete horas; também não conhecia, embora começasse a suspeitá-lo, a relação que havia entre estes colossos mecânicos e as massas informes, vagarosas, que vira emergir do cilindro. Com uma estranha sensação de vago interesse, virei a cadeira da secretária para a janela, sentei-me e fixei o campo às escuras e, em especial, as três gigantescas coisas negras que se moviam de um lado para o outro, sob a luz, nos areais. Pareciam espantosamente atarefadas. Comecei a perguntar-me o que poderiam ser. Seriam mecanismos inteligentes? Sentia que isto era impossível. Ou estaria um marciano no interior de cada um deles, controlando, dirigindo e utilizando, tal como o cérebro humano ocupa e regula o seu corpo? Comecei a comparar estas coisas com máquinas construídas pelo homem e perguntei-me, pela primeira vez na minha vida, em que medida um couraçado ou uma máquina a vapor poderia parecer-se com um animal inferior inteligente.

A tempestade deixara o céu límpido e, por cima do fumo que se evolava dos incêndios, o pequeno ponto desmaiado do tamanho da cabeça de um alfinete - Marte - desviara-se para ocidente. Nesse momento, um soldado entrou no meu jardim. Ouvi um débil ruído de raspagem provindo da cerca e, liber-tando-me da letargia que me dominava, olhei para baixo e vi-o vagamente, saltando a vedação. O torpor que me envolvia desvaneceu-se ao ver outro ser humano, e debrucei-me ansiosamente à janela.

- Psst! - proferi, num sussurro.

Ele deteve-se, escarranchado na cerca, hesitante. Em seguida, aproximou-se e atravessou o relvado, em direcção à quina da casa. Dobrou-a e deu um passo, cuidadosamente.

Quem está aí? - perguntou, também num murmúrio, encostado à janela e espreitando para o interior.

Aonde vai você? - perguntei.

Só Deus sabe.

Anda à procura de um esconderijo?

É isso.

Entre - disse eu.

Desci as escadas, abri a porta, deixei-o entrar e fechei a porta novamente. Não podia ver-lhe o rosto. Vinha sem chapéu e trazia o casaco desabotoado.

Meu Deus! - exclamou, enquanto eu lhe ensinava o caminho.

Que aconteceu? - perguntei.

Que é que não aconteceu? - Na obscuridade, pude ver que fazia um gesto de desespero. - Eles liquidaram-me... simplesmente, liquidaram-nos - proferia repetidas vezes.

Seguiu-me, quase mecanicamente, até à sala de jantar.

- Beba um pouco de whisky - ofereci, deitando uma boa dose num copo.

Ele bebeu. Em seguida, bruscamente, sentou-se à mesa, envolveu a cabeça nos braços e começou a soluçar e a chorar como uma criança, profundamente comovido; esquecendo o meu recente desespero, fiquei de pé ao seu lado, surpreendido.

Escoou-se um longo momento antes que estivesse suficientemente calmo para responder às minhas perguntas, o que fez com um ar de perplexidade e aos poucos. Era condutor da Artilharia e só tinha entrado em acção por volta das sete. Nessa altura, o tiroteio atroava no baldio e dizia-se que o primeiro grupo de marcianos se encaminhava lentamente para o segundo cilindro, a coberto de um escudo de metal.

Mais tarde, este escudo foi montado sobre uma base trípode e tornou-se a primeira máquina de combate que eu vi. O carro que ele conduzia fora desengatado perto de Horsell, a fim de dominar os fossos de areia, e tinha sido a sua chegada que precipitara a acção. Quando os atiradores que se encontravam na parte dianteira do carro passaram para a retaguarda, o cavalo meteu os pés numa lura de coelhos e tombou, atirando-o para uma depressão no solo. No mesmo momento, a arma explodiu atrás dele, as munições rebentaram, achou-se rodeado de chamas por todos os lados e deu consigo sob um monte de cadáveres carbonizados e corpos de cavalos.

- Fiquei imóvel - disse ele -, fora de mim, debaixo do quarto dianteiro de um cavalo. Tínhamos sido liquidados. E o cheiro... meu Deus! Como carne assada! Ferira-me nas costas ao cair do cavalo e tive de ficar ali até me sentir melhor. Precisamente um minuto antes parecia uma parada; depois, um passo em falso, bumba, zzzt! Liquidados!-exclamou.

Durante longos momentos, estivera sob o cadáver do cavalo, espreitando furtivamente o baldio. Os homens de Cardigan tinham tentado uma investida em ordem de ataque mas foram muito simplesmente aniquilados. Em seguida, o monstro pusera-se de pé e começara a andar, indolentemente, no baldio, de um lado para o outro, com o capuz semelhante a uma cabeça, rolando precisamente como a cabeça de um ser humano encapuçado. Uma espécie de braço segurava uma complicada caixa metálica, em redor da qual fulguravam relâmpagos verdes, e o Raio da Morte era expelido do seu funil fumegante.

Tanto quanto a vista do soldado alcançava, passados alguns minutos não havia nenhuma coisa viva no baldio, e os arbustos e as árvores ou eram já um esqueleto enegrecido ou ainda ardiam. Os soldados encontravam-se na estrada do lado de lá da curvatura do solo, e não viu vestígios deles. Ouviu durante algum tempo o estrondear das “Maxims” e, depois, fez-se silêncio. O gigante poupou a estação de Woking e o aglomerado de casas até à última; então, repentinamente, o Raio da Morte entrou em acção e a cidade ficou transformada num montão de ruínas chamejantes. Em seguida, a Coisa desligou o Raio da Morte e, voltando as costas ao artilheiro, começou a andar, num passo bamboleante, em direcção aos pinhais em combustão que envolviam o segundo cilindro. Entretanto, saía do fosso outro titã resplandecente.

O segundo monstro seguiu na peugada do primeiro e, ao ver isso, o artilheiro começou a rastejar, muito cuidadosamente, através das quentes cinzas da urze, em direcção a Horsell. Conseguiu chegar são e salvo à vala aberta ao lado da estrada e, assim, fugiu para Woking. Neste ponto, a sua história tornava-se jaculatória. Era impossível passar dali. Parecia que se achavam nesse local algumas pessoas vivas, na maioria desvairadas e muitas delas queimadas e escaldadas. O fogo obrigou-o a fazer um desvio e esconder-se no meio de alguns restos de parede quase ardentes, quando um dos gigantescos marcianos regressou. Viu-o perseguir um homem, agarrá-lo com um dos seus tentáculos acerados e esmagar-lhe a cabeça de encontro a um dos pinheiros. Finalmente, quando se fez noite cerrada, aventurou-se e subiu o aterro da via férrea.

Desde então, fugiu em direcção a Maybury, na esperança de alcançar Londres a salvo. As pessoas escondiam-se em valas, caves, e muitos dos sobreviventes tinham fugido para as vilas de Woking e Send. Foi torturado pela sede até que encontrou um cano de água quebrado, nas imediações do arco da estação dos caminhos de ferro, donde a água borbotava como de uma fonte sobre a estrada.

Foi esta a história que consegui arrancar-lhe, palavra após palavra. Acalmou-se à medida que falava e tentou fazer-me compreender as coisas que vira. Não comera nada desde o meio-dia, conforme me disse no início da narrativa; descobri na despensa carne de carneiro e pão e ofereci-lhos. Não acendemos nenhuma luz, pois receávamos chamar a atenção dos marcianos. Víamo-nos, assim, obrigados a tactear na escuridão à procura do pão ou da carne. Enquanto ele falava, as coisas que nos rodeavam destacaram-se do escuro, e os arbustos quebrados e as roseiras pisadas que se viam da janela tornaram-se distintos. Parecia que um certo número de homens ou de animais tinha investido através do relvado. Comecei a ver-lhe o rosto, enegrecido e desfigurado, como, decerto, o meu também se achava.

Quando acabámos de comer, subimos devagar as escadas para o meu escritório, e olhei de novo pela janela aberta. Numa única noite, o vale transformara-se num vale de cinzas. O incêndio já desfalecia. De onde houvera chamas saíam agora colunas de fumo, mas as ruínas inumeráveis das casas despedaçadas e inteiramente calcinadas, e das árvores destruídas e enegrecidas que a noite ocultara, viam-se agora, descarnadas e terríveis, sob a luz impiedosa da alvorada.

No entanto, aqui e ali, havia um objecto que tivera a sorte de escapar - aqui, um sinal branco da via férrea, ali a extremidade de uma estufa, claros e frescos no meio dos destroços. Jamais houvera, na história das guerras, uma destruição tão indiscriminada e geral. E reluzindo à luz que vinha de oriente, viam-se no fosso três dos gigantes metálicos, com os capuzes girando como se observassem a desolação que tinham provocado.

Parecia-me que o fosso fora alargado, e baforadas de um vapor verde-vivo jorravam continuamente para a alvorada luminosa - jorravam, turbilhonavam, rompiam-se e desvaneciam-se.

Para lá disto, achavam-se as colunas de fogo em redor de Chobham. Ao primeiro contacto da luz do dia tornavam-se em colunas de fumo vermelho.

XII

O QUE EU VI DA DESTRUIÇÃO DE WEYBRIDGE E DE SHEPPERTON


Quando se fez mais dia, retirámo-nos da janela de onde observáramos os marcianos e descemos muito silenciosamente as escadas.

O artilheiro concordou em que a casa não era um sítio onde se pudesse ficar. Fazia tenção, disse, de continuar a caminho de Londres e dali juntar-se à sua bateria - nº 12 da Artilharia Montada.
Eu tencionava regressar imediatamente a Lea-therhead; os marcianos tinham-me impressionado de tal maneira que estava resolvido a levar minha mulher para Newhaven e sair com ela sem demora do país, pois já me apercebera claramente de que a região em redor de Londres seria inevitavelmente o palco de uma luta desastrosa, antes que tais criaturas pudessem ser destruídas.

No entanto, entre nós e Leatherhead, achava-se o terceiro cilindro com os seus gigantescos guardiões. Se estivesse sozinho, teria tentado a minha sorte e atravessaria rapidamente a região. Mas o artilheiro dissuadiu-me.

- Não é gentil para a sua esposa -disse - fazer dela uma viúva.

Acabei por concordar em acompanhá-lo, a coberto dos bosques, para norte, até Street Chobham, antes de me separar dele. Chegado aí, faria um grande desvio, passando por Epsom, para chegar a Leatherhead.

Eu queria partir imediatamente, mas o meu companheiro, que estivera no serviço activo, considerou melhor a situação. Obrigou-me a rebuscar a casa à procura de um frasco e encheu-o de whisky; atafulhámos todos os bolsos com pacotes de biscoitos e fatias de carne. Em seguida, saímos de casa e descemos o mais depressa possível a estrada ruim que eu tomara na noite anterior. As casas pareciam abandonadas. Na estrada, jaziam três corpos carbonizados, perto uns dos outros, calcinados pelo Raio da Morte; espalhados por aqui e por ali, viam-se coisas que as pessoas tinham deixado cair - um relógio, um chinelo, uma colher de prata e outros objectos. Na esquina, perto dos Correios, via-se uma pequena carroça, sem cavalo, inclinada sobre uma roda partida, cheia de caixas e móveis. Debaixo dos destroços, encontrava-se um cofre que fora apressadamente arrombado.

Com excepção do pavilhão do Orfanato, que ainda ardia, nenhuma das casas das imediações fora gravemente danificada. O Raio da Morte cerceara o topo das chaminés e passara. No entanto, salvo nós mesmos, parecia não haver nenhum ser vivo em May-bury Hill. Creio que a maioria dos habitantes fugira pela estrada de Old Woking - a estrada por onde seguira para ir a Leatherhead - ou achavam-se escondidos.

Descemos a azinhaga, passámos perto do corpo do homem de preto, ensopado pelo granizo da noite anterior, e penetrámos nos bosques do sopé da colina. Atravessámo-los em direcção à via férrea sem encontrarmos uma única pessoa. Do outro lado da linha, os bosques não eram mais do que ruínas carbonizadas e enegrecidas; a maioria das árvores caíra, mas algumas mantinham-se em pé, de troncos sombrios e folhagem de um castanho-escuro em vez de verde.
Do nosso lado, o fogo limitara-se a chamuscar as árvores mais próximas; não conseguira ganhar terreno. Os lenhadores tinham trabalhado, no sábado, em determinado sector; as árvores, tombadas e desbastadas recentemente, jaziam numa clareira, com montes de serradura provocada pela serra mecânica. Muito perto, via-se uma cabana provisória, abandonada. Não havia sequer uma aragem nessa manhã e todas as coisas estavam estranhamente imóveis. Mesmo as árvores estavam quietas e, enquanto caminhávamos, eu e o artilheiro falávamos em sussurros e olhávamos constantemente em volta. Parámos uma ou duas vezes, à escuta.

Volvidos alguns momentos, passámos perto da estrada e ouvimos o tropel de cavalos; avistámos por entre os troncos das árvores três soldados de Cavalaria que trotavam vagarosamente em direcção a Wo-king. Chamámo-los e eles detiveram-se enquanto corríamos ao seu encontro. Eram um tenente e duas ordenanças do 8.° dos Hussardos, com um aparelho semelhante a um teodolito; o artilheiro informou-me que se tratava de um heliógrafo.

- Vocês são os primeiros homens que encontrei por aqui esta manhã. Que é que andam a tramar?

Tinha a voz e o rosto ansiosos. Os homens, atrás dele, fitavam-nos com curiosidade. O artilheiro saltou da ribanceira para a estrada e fez a continência.

Arma destruída a noite passada, Sir. Tenho estado escondido. A tentar juntar-me à bateria, Sir. Creio que poderá ver os marcianos a cerca de meia milha adiante.

Qual é o aspecto desses demónios? - perguntou o tenente.

Uma armadura gigantesca, Sir. Trinta metros de altura. Três pernas e um corpo parecido com alumínio, com uma enorme cabeça dentro de um capuz.

Desapareça! - gritou o tenente. - Que maldita falta de senso!

Há-de ver, Sir. Andam com uma espécie de caixa, Sir, que dispara fogo e mata repentinamente.

Que é isso... uma espingarda?

Não, Sir - o artilheiro começou a fazer um vívido relato do Raio da Morte. O tenente interrom-peu-o a meio e fitou-me. Eu encontrava-me ainda na ribanceira, à beira da estrada.

É absolutamente verdade - garanti-lhe.

Bem - proferiu o tenente -, creio que não tenho outro remédio senão vê-los também. Ouça -disse para o artilheiro-, nós fomos destacados para aqui a fim de fazermos evacuar as pessoas. É melhor que você continue o seu caminho e faça o seu relatório ao brigadeiro-general Marvin, e diga-lhe tudo o que sabe. Ele encontra-se em Weybridge. Sabe o caminho?

Sei - respondi. E ele voltou de novo o cavalo para o sul.

Disse meia milha? - perguntou.

Quando muito - respondi, e apontei as copas das árvores, a sul. Ele agradeceu-me, tocou o cavalo, e nunca mais os vimos.

Mais adiante, encontrámos um grupo de três mulheres e duas crianças que evacuavam uma cabana. Serviam-se de um pequeno carrinho de mão e enchiam-no com embrulhos de aspecto sujo e móveis miseráveis. Estavam demasiado atarefadas para nos dirigirem a palavra quando passámos por elas.

Emergimos dos pinheiros perto da estação de Byfleet; a região achava-se tranquila e em paz, sob o sol matutino. Neste local, encontrávamo-nos muito longe do alcance do Raio da Morte, e se não fosse o abandono silencioso de algumas das casas, o ruído da evacuação vindo de outras, e o grupo de soldados, na ponte, sobre o caminho de ferro, que fitavam a linha para os lados de Woking, o dia pareceria muito semelhante a qualquer outro domingo.

Ao longo da estrada de Addlestone, moviam-se ruidosamente vários carros e carroças e, de súbito, através do portão de uma propriedade, num tracto plano de veiga, vimos seis peças de doze libras colocadas a distâncias aproximadamente iguais, apontando na direcção de Woking. Os atiradores estavam ao pé das armas, à espera, e os carros de munições achavam-se a conveniente distância. Dir-se-ia que os homens se encontravam numa parada.

- Isso é bom - disse eu. - De qualquer modo, farão bom tiro.

O artilheiro hesitou ao pé do portão.

- Tenho de continuar - disse ele.

Mais adiante, perto de Weybridge, precisamente sobre a ponte, havia um certo número de homens que envergavam casacos de faxina. Estavam a escavar uma comprida trincheira. Na retaguarda, viam-se algumas espingardas.

- Seja como for, são arcos e flechas contra a luz - declarou o artilheiro. - Eles ainda não viram aquela bateria de fogo.

Os oficiais que não estavam activamente ocupados fitavam o sudoeste por sobre as copas das árvores, e os homens que procediam à escavação interrompiam frequentemente o trabalho para olhar na mesma direcção.

Byfleet achava-se em tumulto; as pessoas reuniam bagagens, e um grupo de hussardos, alguns desmontados, outros a cavalo, apressavam a evacuação. Três ou quatro carros negros do Governo, com os distintivos de cruzes no centro de círculos brancos, e um velho autocarro, entre outros veículos, estavam a ser carregados na rua. Havia grupos de pessoas, na maioria bastante sabáticas para envergarem as melhores roupas. Os soldados tinham a maior dificuldade em fazê-los compreender a gravidade da situação. Vimos um velhote encarquilhado, com uma grande caixa e vinte ou mais vasos de orquídeas, a discutir iradamente com o cabo que ameaçava deixá-los para trás. Detive-me e segurei-lhe o braço.

Você sabe o que está a aproximar-se? - perguntei, apontando para as copas dos pinheiros que ocultavam os marcianos.

Eh! - exclamou, voltando-se para mim. - Eu estava a explicar que isto é valioso.

A morte! - gritei. - A morte está a aproximar-se. A morte! - e, deixando-o a digerir isto, se é que podia, corri na peugada do artilheiro. Olhei para trás quando cheguei à esquina da rua. O soldado abandonara o velhote, e este encontrava-se ainda ao pé da caixa, com os vasos de orquídeas em cima da tampa, fixando vagamente por sobre as árvores.

Em Weybridge ninguém soube dizer-nos onde se localizava o quartel-general; todo o local estava mergulhado numa grande confusão como nunca vira em qualquer outra cidade. Havia por todo o lado carroças, carruagens, a mais espantosa miscelânea de veículos e de animais de tracção. Os respeitáveis habitantes da cidade, homens em vestes de golfe e de remo, senhoras elegantemente vestidas, faziam as malas, ajudados energicamente pelos vadios da beira-rio. As crianças mostravam-se excitadas e, na maioria, extremamente deliciadas por esta espantosa variante das suas experiências de domingo. No meio de tudo isto, o digno vigário dirigia corajosamente uma breve celebração, e o sino repicava por sobre todos os ruídos.

Eu e o artilheiro, sentados nos degraus de uma fonte, tomámos uma refeição muito agradável com o que tínhamos trazido. Patrulhas de soldados - aqui não havia hussardos, mas granadeiros de uniformes brancos - avisavam as pessoas para se irem embora ou procurarem refúgio nas caves mal começasse o tiroteio. Quando atravessámos a ponte da via férrea, vimos uma multidão de pessoas cada vez maior que se reunira no interior e nas imediações da gare; a plataforma estava atulhada de caixas e de bagagens. O trânsito habitual fora interrompido, julgo que para permitir a passagem de tropas e de armas para Chertsey, e ouvi dizer, mais tarde, que se travara uma violenta disputa de lugares nos comboios especiais que se formaram a uma hora mais adiantada.

Ficámos em Weybridge até ao meio-dia, e, nesse momento, demos connosco nas imediações de Shepperton Lock onde se reúnem o Wey e o Tamisa. Gastámos parte do tempo a ajudar duas velhas a carregar uma pequena carroça. O Wey tem uma foz em delta onde há barcos para alugar e um ferry-boat que faz a travessia do rio. Na margem de Shepperton achava-se uma estalagem com um relvado em volta e, mais adiante, a torre da igreja de Shepperton - que foi substituída por um pináculo - erguia-se por sobre as árvores.

Encontrámos neste local uma excitada e ruidosa multidão de fugitivos. Embora o pânico ainda não se tivesse propagado, já se achava ali um número de pessoas muito maior do que aquele que os barcos poderiam transportar. As pessoas arquejavam sob as pesadas cargas; um casal transportava uma pequena porta de um anexo, em cima da qual estavam empilhados alguns dos seus artigos domésticos. Um homem contou-nos que tencionava fugir pela estação de Shep-perton.

Ouviam-se muitos gritos e um homenzinho diver-tia-se a dizer pilhérias. Dir-se-ia que toda esta gente supunha que os marcianos eram apenas formidáveis seres humanos, que poderiam atacar e saquear a cidade, mas acabariam decerto por ser destruídos.

As pessoas relanceavam continuamente um olhar nervoso através do Wey para os prados vizinhos de Chertsey, onde tudo parecia tranquilo.

No Tamisa, com excepção do preciso local onde os barcos carregavam, tudo estava calmo, apresentando um nítido contraste com as margens do Surrey. As pessoas que desembarcavam neste ponto desciam penosamente a viela. O grande ferry-boat acabara de fazer uma viagem. Três ou quatro soldados encontravam-se no relvado da estalagem, fitando e ridicularizando os fugitivos, sem lhes oferecer ajuda. A estalagem estava fechada como se fossem horas normais de encerramento.

Que é aquilo?-gritou um barqueiro.

Cala-te, maluco! - exclamou um homem, que se achava ao pé de mim, para um cão que latia. Então, o som voltou a ouvir-se, desta vez do lado de Chertsey; um estrondo abafado - a descarga de uma arma.

A batalha começara. Quase imediatamente, baterias ocultas pelas árvores juntaram-se ao coro, na outra margem, à direita, disparando estrondosamente uma após outra. Uma mulher soltou um grito estridente. Todas as pessoas ficaram petrificadas pelo súbito tumulto da batalha, perto de nós e, no entanto, invisível. Apenas se viam os prados, vacas a pastar, na sua maioria indiferentes, e salgueiros prateados, imóveis ao sol quente.

- Os magalas não os deixam passar - disse uma mulher ao meu lado, num tom de dúvida. Erguia-se uma neblina cor-de-rosa por cima das copas das árvores.

Então, de súbito, vimos uma torrente de fumo ao longe, sobre o rio, uma baforada que se ergueu no ar e ficou suspensa; e, logo a seguir, o solo estremeceu e o ar foi agitado por uma tremenda explosão que despedaçou duas ou três janelas nas casas vizinhas. Ficámos atónitos.

- Ei-los! - gritou um homem que envergava uma camisola azul. - Além! Não os vêem? Além!

Rapidamente, um após outro, um, dois, três, quatro dos marcianos couraçados apareceram, ao longe, por sobre as árvores pequenas; atravessaram as planuras que se estendiam nas imediações de Chertsey, e caminharam apressadamente em direcção ao rio. De início, pareciam minúsculas figuras encapuçadas, caminhando com um movimento bamboleante e tão veloz como o voo das aves.

Em seguida, avançando obliquamente ao nosso encontro, aproximou-se um quinto marciano. As couraças que revestiam os seus corpos cintilavam ao sol enquanto avançavam velozmente em direcção às armas, tornando-se rapidamente maiores à medida que se aproximavam. Um deles, no extremo esquerdo, isto é, aquele que se achava mais afastado, agitou uma grande caixa a grande altura e o Raio da Morte, que já vira em acção na noite de sexta-feira, foi projectado na direcção de Chertsey e fulminou a cidade.

Ao ver estas criaturas estranhas, velozes e terríveis, a multidão que se achava nas margens do rio pareceu ficar momentaneamente muda de pavor. Não se ouviam guinchos nem gritos. Havia um silêncio absoluto. Em seguida, ouviu-se um murmúrio rouco e um tropel de pés - um chapinhar na água. Um homem, demasiado assustado para deixar cair o sobretudo que levava aos ombros, nadou em círculo e fez-me cambalear com uma pancada da sua carga. Uma mulher empurrou-me com a mão e ultrapassou-me rapidamente. A arremetida das pessoas fazia-me vacilar, mas como não estava demasiado assustado podia raciocinar. O terrível Raio da Morte obcecava-me. Nadar debaixo de água! Era isso!

- Nadem debaixo de água! - gritei, sem ser ouvido.

Olhei de novo em redor, investi na direcção do marciano que se aproximava, desci precipitadamente a praia pedregosa e mergulhei na água. Outros fizeram o mesmo. Um barco carregado de gente que regressava passou por mim aos solavancos. Sob os meus pés, as pedras eram lodosas e escorregadias e o rio ia tão baixo que devo ter corrido uns vinte pés com água apenas pela cintura. Depois, quando o marciano estava a uns duzentos metros de distância, mergulhei e nadei sob a superfície da água. O ruído de chapinhar provocado pelas pessoas que saltavam dos barcos para a água soava como trovões aos meus ouvidos. As pessoas desembarcavam rapidamente em ambas as margens.

Mas a máquina marciana não prestava mais atenção àquela gente que corria de um lado para o outro do que um homem o teria feito à confusão de formigas que se escapassem de uma toca pisada. Quando, meio sufocado, ergui a cabeça acima da água, o capuz do marciano apontava para as baterias que continuavam a disparar do outro lado do rio e, quando avançou, brandiu aquilo que devia ser o gerador do Raio da Morte.

No momento seguinte, achava-se na margem e atravessou com uma passada metade do rio. Os joelhos das pernas dianteiras dobraram-se sobre a outra margem e ergueu-se completamente, logo a seguir, frente à vila de Shepperton. Nesse preciso instante, as baterias que se ocultavam nos arrabaldes da vila, e cuja existência era desconhecida na margem direita, dispararam ao mesmo tempo. A concussão repentina, a última descarga imediatamente a seguir à primeira, fez-me sobressaltar. O monstro erguia já o gerador do Raio da Morte quando a primeira bomba explodiu seis metros acima do capuz.

Soltei um grito de espanto. Não via nem pensava nos outros quatro marcianos; a minha atenção concentrava-se no incidente mais próximo. Simultaneamente, duas outras bombas explodiram no ar perto do corpo, e o capuz rodou a tempo de ser atingido pela quarta bomba.

A bomba explodiu em cheio no rosto da Coisa. O capuz abaulou, despedaçou-se e esvoaçou num turbilhão de fragmentos de carne vermelha e metal reluzente.

- Acertámos!-gritei, num tom onde transparecia terror e alegria.

Ouvi em resposta os gritos das pessoas que se achavam na água, em meu redor. Estive quase a ser projectado da água por aquele regozijo momentâneo.

O colosso decapitado cambaleou como um gigante embriagado; mas não chegou a cair. Recuperou miraculosamente o equilíbrio e, já sem escolher o caminho e com a câmara do Raio da Morte erguida rigidamente, precipitou-se, cambaleante, para Shepperton. A inteligência viva, o marciano que se encontrava no interior do capuz, fora morto e espalhado aos quatro ventos e a Coisa era agora apenas um complexo instrumento metálico que avançava velozmente para a destruição. Caminhava a direito, incapaz de condu-zir-se. Embateu na torre da igreja de Shepperton, despedaçando-a, tal como o teria feito o impacte de um aríete, virou-se de lado, cambaleou e tombou no rio com uma violência tremenda, fora da minha vista.

O ar estremeceu sob uma violenta explosão e um jacto de água, vapor, lodo e metal despedaçado foi projectado a grande altura. Mal o gerador do. Raio da Morte tocou na água, esta fumegou, num clarão. No momento seguinte, uma enorme vaga, qual onda lamacenta de maré, mas escaldante, varreu o rio contra a corrente. Vi pessoas a arrastarem-se penosamente para a praia e ouvi os seus guinchos, mal perceptíveis, mas sobressaindo do ruído da efervescência e do estrondo provocados pela queda do marciano.

Durante alguns momentos não prestei a mínima atenção ao calor e esqueci a necessidade óbvia de preservar a minha vida. Patinhei através dos remoinhos da água, empurrei um homem de preto e alcancei uma posição que me permitia olhar em redor. Meia dúzia de barcos abandonados arfavam por sobre a confusão das ondas. Viu-se o marciano, caído a juzante, atravessado no rio, quase completamente submerso.

Elevavam-se dos destroços espessas colunas de vapor, e, vi, através dos remoinhos tumultuosos, intermitente e vagamente, os gigantescos membros a agitar a água e a arremessar no ar um esguicho de espuma e um borrifo de lama. Os tentáculos toreiam-se e agitavam-se como braços vivos e, se não fosse a falta de sentido destes movimentos, pareceria que uma coisa ferida estava a lutar pela vida, entre as ondas. Enormes quantidades de um fluido castanho-avermelhado esguichavam da máquina em jactos ruidosos.

A minha atenção foi desviada desta agitação por um grito furioso, semelhante ao ruído produzido pela sereia de uma fábrica. Um homem, perto do caminho do reboque, com água pelos joelhos, gritava inaudivelmente para mim e apontava na minha direcção. Quando olhei para trás, vi que os outros marcianos avançavam com passadas gigantescas, descendo as margens do rio, vindos dos lados de Chertsey. As armas de Shepperton dispararam, desta vez em vão.

Quando os vi, meti-me imediatamente debaixo de água e, retendo a respiração o mais que pude, movi-me penosamente sob a superfície da água. Havia remoinhos à minha volta e a água aquecia rapidamente.

Quando ergui a cabeça por um momento para respirar e tirar os cabelos e a água dos olhos, o vapor elevava-se num nevoeiro rodopiante, branco, que ocultou de início os marcianos. O ruído era ensurdecedor. Depois, avistei-os, confusamente: figuras colossais cinzentas, ampliadas pela neblina. Tinham passado por mim e dois estavam curvados sobre as ruínas espumosas e tumultuosas do seu camarada.

O terceiro e o quarto estava ao seu lado, na água, um deles a cerca de duzentos metros de mim, e o outro perto de Laleham. Os geradores dos Raios da Morte volteavam a grande altura e os raios sibilantes varriam tudo em redor.

O ar vibrava de sons - um conflito ensurdecedor e atordoante de ruídos; o barulho clamoroso dos marcianos, o estrondo provocado pelo desabar das casas, o baque das árvores, cercas e barracões em chamas e o fantástico crepitar do fogo. Um denso fumo negro subia e misturava-se com o vapor que se elevava do rio, e quando o Raio da Morte varria Wey-bridge, o seu impacte era assinalado por relâmpagos de um branco intenso que davam imediatamente lugar a uma dança fumegante de chamas lúgubres. As casas mais próximas continuavam intactas, aguardando o seu destino, sombrias, indistintas e lívidas através do vapor. Entretanto, o fogo ganhava terreno atrás deles.

Durante um momento fiquei ali, com água quase a ferver até à cintura, aturdido pela situação em que me encontrava, sem esperanças de sobreviver. Via, através da fumarada, as pessoas que tinham estado comigo no rio, saindo da água, nos canaviais, como se fossem pequenos sapos em fuga de um homem, ou a correr de um lado para o outro, no maior pavor, no caminho do reboque.

Então, bruscamente, os relâmpagos brancos do Raio da Morte aproximaram-se de mim. As casas desabavam como se se dissolvessem ao seu contacto, e dardejavam chamas; as árvores incendiavam-se com um rugido. O Raio varria o curso do reboque, lambendo as pessoas que corriam, e desceu até à água a menos de cinquenta metros de distância do local onde eu me encontrava. Rastejou sobre o rio em direcção a Shepperton e a água na sua esteira erguia-se numa chicotada fervente, coroada de vapor. Voltei-me para a margem.

No instante seguinte, a onda imensa, quase ao ponto de ebulição, alcançava-me. Gritei alto e, escaldado, meio cego e torturado por dores atrozes, cambaleei enquanto progredia, através da água em remoinho e sibilante, em direcção à praia. Se tivesse tropeçado seria o fim. Sentia-me desamparado, inteiramente à mercê dos marcianos, sobre a larga e desguarnecida ponta de terra coberta de cascalho que desce e assinala a junção do Wey e do Tamisa. Esperava só pela morte.

Tenho uma vaga memória do pé de um marciano, pisando o terreno a uns vinte metros da minha cabeça. Caminhava a direito por sobre o cascalho solto, arrastando-o em rodopio de um lado para o outro e tornando a erguê-lo; recordo-me também de um longo momento de suspense e, depois, dos quatro marcianos que transportavam entre eles os restos do seu companheiro, ora claros, ora indistintos, através de um véu de fumo, recuando interminavelmente, ao que me parecia, pela vasta extensão do rio e dos prados. E, depois, muito lentamente, compreendi que tinha escapado por milagre.



XIII
COMO ENCONTREI O COADJUTOR

Depois de receberem esta inesperada lição do poder das armas terrestres, os marcianos retiraram-se para a sua posição original nos baldios de Horsell; e, na sua precipitação, carregados com os restos despedaçados do seu companheiro, negligenciaram, sem dúvida, a vítima extraviada e desprezível que eu era. Se tivessem abandonado o seu camarada e continuado a avançar, como então não havia nada entre eles e Londres senão baterias de peças de doze, teriam decerto alcançado a capital antes das notícias da sua aproximação; a sua chegada seria tão súbita, terrível e destruidora como o terramoto que destruiu Lisboa há dois séculos.

Mas eles não tinham pressa. Os cilindros seguiam-se no seu voo interplanetário; todas as vinte e quatro horas recebiam reforços. Entretanto, as autoridades militares e navais, agora inteiramente conscientes do tremendo poder dos seus adversários, trabalhavam com uma energia furiosa. Minuto a minuto chegavam armas que eram colocadas em posição, e, antes do crepúsculo, todos os matagais, todas as ruas de vilas suburbanas nos declives da colina, perto de Kingston e Richmond, dissimulavam a negra boca de uma arma à espera. E através da área carbonizada e desolada - cerca de cinquenta quilómetros quadrados, na totalidade - que rodeava a base marciana de baldios de Horsell, através das vilas carbonizadas e em ruínas rodeadas por árvores verdes, através das arcadas enegrecidas e fumegantes do que tinham sido, um dia antes, pinhais, rastejavam os devotados batedores com os heliógrafos com que avisavam os atiradores da aproximação dos marcianos. Mas estes já conheciam o poder da nossa artilharia e o perigo da proximidade humana, e nem sequer um homem chegou a um quilómetro de distância de qualquer cilindro, salvo pelo preço da sua vida.

Parece que estes gigantes gastaram as primeiras horas da tarde a andar de um lado para o outro, transferindo tudo quanto se encontrava no segundo e no terceiro cilindros - o segundo em Addlestone Golf Links e o terceiro em Pyrford - para o original fosso dos baldios de Horsell. Além disso, um deles vigiava o urzal enegrecido e as construções arruinadas que se erguiam por toda a parte, enquanto o resto abandonava as máquinas de combate e descia ao fosso. Estiveram muito atarefados até noite alta, e a formidável coluna de denso fumo negro que se erguia nesse ponto podia ser vista das colinas das imediações de Merrow e até, ao que parece, de Banstead e Epsom Downs.

E enquanto atrás de mim os marcianos se preparavam assim para a sua próxima surtida, e defronte de mim o género humano se reunia para a batalha, eu afastava-me, penosamente e cheio de dores, do fogo e do fumo de Weybridge em chamas, em direcção a Londres.

Vi um barco abandonado, muito pequeno e distante, flutuando a jusante; despi a maior parte das minhas roupas encharcadas, nadei ao seu encontro, alcancei-o e escapei desta maneira. Não havia remos no barco, mas consegui remar, tão bem quanto as minhas mãos, queimadas, o permitiram. Assim, com muito custo, desci o rio em direcção a Halliford e Walton. Como se compreende, olhava constantemente para trás. Segui pelo rio, pois achava que a água me dava maiores possibilidades de fuga se aqueles gigantes regressassem.

A água, quente devido à queda do marciano, levava-me para jusante; devido ao vapor que subia, mal pude ver, durante cerca de um quilómetro, a outra margem.

No entanto, distingui um grupo de figuras negras que corriam, nos prados, vindas de Weybridge. Parecia que Halliford fora abandonada, e algumas das casas defronte do rio eram pasto das chamas. Era estranho ver este local completamente silencioso, desolado, sob o quente céu azul, onde o fumo e os pequenos fios de chamas se erguiam verticalmente. Jamais vira casas a arder sem o acompanhamento de uma multidão em luta com as chamas. Um pouco mais longe, os canaviais secos da margem fumegavam e ardiam e, no lado de lá, uma linha de fogo ganhava rapidamente terreno através de um campo de feno. Naveguei à deriva durante muito tempo, pois estava cheio de dores e cansado pelo violento esforço que fizera, e porque o calor da água era muito intenso. Em seguida, o medo dominou-me novamente e recomecei a remar. O sol queimava-me as costas nuas. Finalmente, quando a ponte de Walton surgiu à minha vista numa curva do rio, a febre e a fraqueza venceram os meus receios e desembarquei na margem de Middlesex; deitei-me, sentindo-me mortalmente doente, sobre a relva alta. Creio que eram então cerca das quatro ou cinco horas. Levantei-me, pouco depois, andei cerca de meia milha sem encontrar um ser vivo e deitei-me novamente à sombra de uma sebe. Creio que falei sozinho e delirei durante a última caminhada. Também estava cheio de sede e lamentava-me amargamente por não ter bebido água. É curioso que me sentisse zangado com a minha mulher; não sou capaz de explicar as razões deste sentimento. O meu desejo de alcançar Leather-head preocupava-me demasiado.

Não me lembro bem da chegada do coadjutor; provavelmente, dormitava quando chegou. Ele estava sentado, tinha as mangas da camisa sujas de fuligem e o rosto, bem barbeado, fixava um débil clarão bru-xuleante que se projectava no céu, o qual estava, por assim dizer, salpicado - filas e filas de pequenas nuvens baixas, levíssimas, matizadas por um pôr-de-sol no pino do Verão.

Sentei-me. Ao ouvir o ruído do meu movimento, fitou-me logo.

- Tem água? - perguntei, bruscamente.

Ele abanou a cabeça.

- Há uma hora que está a pedir água - disse.

Ficámos calados durante alguns momentos, enquanto nos avaliávamos mutuamente. Ele achou-me, decerto, bastante estranho, nu, só com as calças e as peúgas ensopadas, queimado, e com o rosto e os ombros enegrecidos pelo fumo. Quanto a ele, via-se-lhe no rosto uma nítida fraqueza, tinha o queixo retraído, o cabelo encrespado, e os caracóis revoltos, quase louros, caíam-lhe sobre a testa; os olhos eram muito grandes, de um azul-claro, inexpressivos. Falou abruptamente, olhando com ar vago para mim.

- Que significa isto? - perguntou. - Que significam estas coisas?

Fitei-o sem compreender.

Estendeu a mão fina e branca e falou quase num tom de queixa.

Porque é que estas coisas são permitidas? Que pecados fizemos? O serviço da manhã já estava feito, passeava para descansar o espírito para a tarde, e então - fogo, terramoto, morte! Como se fosse Sodoma e Gomorra! Todo o nosso trabalho desfeito, todo o trabalho... Que são estes marcianos?

Que somos nós? - perguntei, aclarando a garganta.

Ele pousou as mãos sobre os joelhos e olhou novamente para mim. Fitou-me em silêncio durante cerca de um minuto.

- Estava a passear para descansar o espírito - tornou. - E de súbito ... fogo, tremor de terra, morte!

Calou-se de novo, com o queixo quase afundado entre os joelhos.

Começou a fazer largos gestos com a mão.

- Todo o trabalho - todas as escolas de catequese... Que fizemos nós?... Que fez Weybridge?
Tudo se foi... tudo destruído. A igreja! Reconstruímo-la há apenas três anos. Desapareceu! Já não existe!

Porquê?

Fez uma pausa, e tornou a falar como um demente.

- O fumo do seu incêndio sobe eternamente!

- gritou.

Os olhos dele chamejavam, e apontou com um dedo magro na direcção de Weybridge.

Neste momento, eu já começara a avaliá-lo devidamente. A tremenda tragédia na qual estivera envolvido-era, evidentemente, um fugitivo de Weybridge- quase o enlouquecera.

Estamos longe de Sunbury? - perguntei, num tom natural.

Que podemos fazer? - perguntou. - Estas criaturas estão por toda a parte? A terra foi-lhes dada?

Estamos longe de Sunbury?

Ainda esta manhã, cedo, celebrei missa...

As coisas mudaram - disse eu, calmamente. - Mantenha a cabeça no seu lugar. Ainda há esperança.

Esperança!

Sim. Muita esperança... apesar de toda esta destruição.

Comecei a explicar-lhe o meu ponto de vista acerca da situação em que nos encontrávamos. Ou-viu-me, a princípio, mas, passados alguns momentos, o interesse que lhe assomava nos olhos deu lugar à fixidez inicial, e desviou o olhar.

- Isto deve ser o princípio do fim - disse, interrompendo-me. - O grande e terrível dia do Senhor!

Quando os homens pediram às montanhas e às rochas para cair sobre eles e escondê-los... escondê-los do rosto d'Aquele que está sentado no trono!

Comecei a compreender a situação. Abandonei os meus trabalhosos argumentos, pus-me de pé e pousei a minha mão no seu ombro.

- Seja um homem! - disse-lhe. - Você está fora de si! Para que serve a religião se fraqueja nas cala midades? Pense no que os terramotos e inundações, guerras e vulcões têm feito ao homem! Julga que Deus poupou Weybridge? Deus não é um agente de seguros.

Ele guardou um silêncio absoluto durante algum tempo.

- Mas como podemos escapar? - perguntou, bruscamente. - Eles são invulneráveis e impiedosos.

Nem uma coisa nem, talvez, a outra - respondi. - E quanto maiores forem, mais sensatos e prudentes devemos ser. Um deles foi morto, além, ainda não há três horas.

Morto!-exclamou, fitando-me. - Como é possível que os ministros de Deus sejam mortos?

Vi isso acontecer - disse eu. - Tivemos a sorte de o conseguir quando o combate era mais aceso, e é tudo.

Que luz é aquela, no céu? - perguntou, de súbito.

Expliquei-lhe que se tratava do heliógrafo a fazer sinais - que era o sinal, projectado no céu, da ajuda e do esforço humano.

- Estamos no meio disto - contei-lhe -, embora tudo pareça calmo. Aquela luz no céu é o sinal de que o temporal se aproxima. Creio que os marcianos estão acolá, e, para os lados de Londres, sob as árvores daquelas colinas nas imediações de Richmond e Kingston, estão a erguer-se fortificações e a colocar-se armas. Agora, os marcianos devem tornar a passar por aqui.

Enquanto eu falava, ele levantou-se e fez-me um gesto para me calar.

- Escute! - disse.

Do lado das baixas colinas da outra margem do rio chegava a triste ressonância da descarga de armas, ao longe, e um longínquo grito sobrenatural. Um escaravelho passou a zumbir por cima da sebe e desapareceu. A ocidente, alta, via-se a Lua, em quarto crescente, indistinta e pálida por sobre o fumo de Weybridge e Shepperton, e o esplendor quente e calmo do pôr-do-sol.

- É melhor seguirmos por este caminho - disse eu-, para norte.





XIV
EM LONDRES

O meu irmão mais novo estava em Londres quando os marcianos chegaram a Woking. Era estudante de Medicina, preparava-se para um exame próximo e não ouvira nada acerca da chegada deles até à manhã de domingo. Os jornais matutinos deste dia traziam, além de grandes artigos especiais sobre o planeta Marte, a vida nos planetas, etc, um telegrama curto e vago que chocava pelo seu laconismo.

Os marcianos, alarmados pela aproximação de grande multidão, tinham morto um certo número de pessoas com uma arma de fogo rápida. Tal era a versão dos acontecimentos. O telegrama concluía com as seguintes palavras: “Embora pareçam formidáveis, os marcianos não se moveram do fosso onde caíram e, certamente, são incapazes de o fazer. Isto deve-se, provavelmente, à maior força relativa da energia gravitacional da Terra.” O redactor-chefe assinava o último texto, no qual se mostrava muito optimista.

Como é natural, todos os estudantes da superlotada aula de Biologia, à qual o meu irmão assistiu nesse dia, achavam-se intensamente interessados; no entanto, não havia indícios de uma excitação desusada nas ruas. Os jornais da tarde traziam notícias fragmentárias encimadas por grandes cabeçalhos. Até às oito horas, além dos movimentos das tropas em redor do baldio, e do incêndio dos pinhais entre Woking e Weybridge, nada mencionavam de especial. Então, o St. Jame's Gazette, numa edição extra-especial, anunciou o simples facto da interrupção de comunicações telegráficas. Isto devia-se, provavelmente, à queda de pinheiros queimados sobre a linha. Nessa noite, nada mais se soube acerca da batalha; foi nessa noite que fiz a viagem de ida e volta a Leatherhead.

O meu irmão não estava preocupado a nosso respeito, pois sabia, através dos jornais, que o cilindro se encontrava a umas boas duas milhas de distância da minha casa. Planeava ir ter comigo, com o fim de, disse ele, ver as Coisas antes de serem mortas. Cerca das quatro horas despachou um telegrama, que nunca recebi, e passou a noite num music-hall.

Também em Londres houve trovoada na noite de sábado. O meu irmão dirigiu-se num cupé à estação de Waterloo. Na plataforma de onde parte habitualmente o comboio da meia-noite foi informado, depois de algum tempo de espera, que não havia comboios para Woking devido a ter-se verificado um acidente. Não especificaram a natureza do acidente; as autoridades dos caminhos de ferro ainda não sabiam, decerto, o que se passava na realidade. Gerou-se pouca agitação na gare quando os funcionários, desconhecendo que acontecera algo mais do que um desastre entre Byfleet e o entroncamento de Woking, desviaram os comboios para Virgina Water ou Guilford. Estavam atarefados a fazer os preparativos necessários para alterar a rota das excursões das Ligas de Domingo de Southampton e Portsmouth. Um repórter da vida nocturna, confundindo o meu irmão com o chefe do tráfego, com quem parece ter uma ligeira semelhança, tentou entrevistá-lo. Poucas pessoas, com excepção dos funcionários da via férrea, relacionaram o desastre com os marcianos.

Noutro relato destes acontecimentos, li que, na manhã de domingo, “Londres inteira estava electrizada pelas notícias provindas de Woking”. Como é natural, nada justificava aquela frase extravagante. Muitos londrinos não ouviram dizer nada acerca dos marcianos até ao pânico da manhã de segunda-feira. Esses precisaram de algum tempo para compreender o real significado dos apressados telegramas dos jornais de domingo. A maioria dos habitantes de Londres não lê os jornais de domingo.

Além disso, o hábito de segurança pessoal está tão profundamente arreigado no espírito do londrino, e são tão habituais as notícias assustadoras dos jornais, que podiam ler sem qualquer espécie de receio: “Na noite passada, cerca das sete horas, os marcianos saíram do cilindro e, protegidos por uma couraça de escudos metálicos, destruíram completamente a estação de Woking e as casas vizinhas, e massacraram um batalhão inteiro do regimento de Cardigan. Não se conhecem pormenores. As Maxim revelaram-se inteiramente inúteis contra a sua couraça; inutilizaram as peças de campanha. Avançam para Chertsey hussardos a cavalo. Parece que os marcianos se dirigem lentamente em direcção a Chertsey ou Windsor. Reina grande ansiedade em West Surrey, e estão a erguer-se fortificações para deter o avanço para Londres.” Era desta maneira que o Sun de domingo relatava a situação, e um breve artigo, notável e arguto, no Referee, comparava os acontecimentos às consequências que adviriam a uma aldeia onde se abandonasse um grupo de feras.

Em Londres, ninguém conhecia ao certo a natureza dos marcianos couraçados, e reinava ainda uma ideia fixa de que estes monstros fossem lentos: “rastejar”, “arrastar-se penosamente”, eram expressões transcritas em quase todos os relatos mais recentes. Nenhum dos telegramas poderia ter sido redigido por uma testemunha visual do avanço dos marcianos. Os jornais de domingo publicaram novas edições à medida que chegavam as notícias, algumas vezes mesmo na sua falta. No entanto, não houve praticamente mais nada a dizer às pessoas até uma hora adiantada da tarde, quando as autoridades deram às agências de informações as notícias que detinham na sua posse. Declarava-se que as pessoas de Walton e de Weybridge, e de todo o distrito, se precipitavam ao longo das estradas a caminho de Londres. E era tudo.

O meu irmão foi à igreja do Foundling Hospital, de manhã, desconhecendo ainda o que acontecera na noite anterior. Ouviu então algumas alusões acerca da invasão, e uma prece especial para a paz. Ao sair, comprou o Referee. Ficou alarmado com as suas notícias e foi de novo à estação de Waterloo para saber se as comunicações tinham sido restabelecidas. Autocarros, carruagens, ciclistas e inumeráveis pessoas nos seus fatos domingueiros pareciam pouco afectados com as estranhas notícias espalhadas pelos ardinas. As pessoas mostravam-se apenas interessadas ou, se alarmadas, estavam-no unicamente por pensarem na situação dos residentes locais. Soube na estação, pela primeira vez, que as linhas de Windsor e Chertsey se achavam interrompidas. Os carregadores disseram-lhe que tinham sido recebidos, de manhã, vários telegramas interessantes das estações de Byfleet e Chertsey, mas que tinham cessado bruscamente. O meu irmão só conseguiu pormenores pouco precisos acerca do seu conteúdo.
“A batalha prossegue nas imediações de Wey-bridge.” Era tudo quanto sabiam.

O serviço de comboios já estava bastante desorganizado. Só se achava na estação um certo número de pessoas que tinham estado à espera de amigos da linha do sudoeste. Um cavalheiro idoso, de cabelos brancos, injuriou asperamente a Companhia do Sudoeste, dirigindo-se ao meu irmão.
- Precisa de ser desmascarada - afirmou.

Chegaram um ou dois comboios de Richmond, Putney e Kingston, transportando pessoas que tinham saído para um dia de remo e a quem se haviam deparado os canais fechados e uma sensação de pânico que pairava no ar. Um homem, envergando um casaco de regatas azul e branco, dirigiu-se ao meu irmão, cheio de estranhas notícias.

- Estão a chegar a Kingston mares de gente em carroças e outros veículos, com caixas, objectos de valor e coisas do género -disse ele. - Vêm de Molesey, Weybridge e Walton, e dizem que se ouve em Chertsey a descarga de armas, fogo pesado, e que soldados montados lhes disseram para fugir imediatamente antes que os marcianos chegassem. Nós ouvimos tiros na estação de Hampton Court, mas pensámos que fosse trovoada. Que diabo significa isto tudo? Os marcianos não podem sair do fosso, pois não?

O meu irmão não soube responder-lhe.

Verificou mais tarde que a vaga sensação de alarme se propagara aos utentes do metropolitano e que os excursionistas de domingo começavam a regressar de todo o “pulmão” de sudoeste - Barnes, Wimbledon, Ricbmond Park, etc. - muito cedo, contrariamente ao habitual; mas uma alma não podia dizer mais do que vagos boatos. Todos aqueles que tinham pessoas conhecidas no término pareciam de mau humor.

Cerca das cinco horas, a crescente multidão que se encontrava na gare mostrou-se bastante excitada pela abertura da linha de comunicação, quase invariavelmente encerrada, entre as estações de sudeste e sudoeste, por onde passaram vagões carregados de armas pesadas e carruagens abarrotadas de soldados. Eram as armas que chegavam de Woolwich e Chatham para cobrir Kingston. Houve uma troca de gracejos: “Vocês vão ser comidos!”, “Nós somos os domadores de feras!” e coisas do género. Pouco depois chegou à estação um grupo de polícias que começou a fazer evacuar o público das plataformas, e o meu irmão saiu de novo para a rua.
Os sinos das igrejas tocavam as vésperas e um grupo de rapariguitas do Exército de Salvação desceu, a cantar, pela estrada de Waterloo. Sobre a ponte, um grupo de ociosos observava uma curiosa escuma castanha que descia o rio impelida pela corrente. O sol estava precisamente a pôr-se e a Torre do Relógio e as Casas do Parlamento desenhavam-se contra um dos céus mais calmos que é possível ima-ginar-se, um céu de ouro, barrado por listas transversais de nuvens vermelho-púrpura. Falava-se acerca dum corpo que aparecera a flutuar. Um dos homens que se encontravam no local, que disse ser reservista, informou o meu irmão de que vira os sinais do heliógrafo a ocidente.

Na Wellington Street o meu irmão encontrou um par de mariolas robustos que tinham acabado de desembocar de Fleet Street com jornais de tinta ainda húmida e placarás. “Horrível catástrofe!”, apregoavam enquanto desciam Wellington Street. “Combate em Weybridge! Descrição completa! Revés dos marcianos! Londres em perigo!” Teve de pagar três dinheiros por aquele jornal.

Foi nesse momento, e só então, que compreendeu alguma coisa do enorme poder e do terror que estes monstros inspiravam. Soube que eles não eram simplesmente um punhado de pequenas criaturas lentas, mas sim cérebros que governavam imensos corpos mecânicos; e que podiam mover-se rapidamente e atacar com tal poder que mesmo as armas mais pesadas não podiam fazer-lhes frente.

Eram descritos como “vastas máquinas parecidas com aranhas, com trinta metros de altura, aproximadamente, capazes da velocidade de um comboio expresso e de disparar um raio de calor intenso”. Baterias camufladas, principalmente constituídas por peças de campanha, estavam colocadas em toda a volta dos baldios de Horsell e, especialmente, entre o distrito de Woking e Londres. Viram-se cinco das máquinas a mover-se em direcção ao Tamisa, e uma delas, por um feliz acaso, fora destruída. Nos outros casos, as bombas tinham falhado e as baterias haviam sido imediatamente aniquiladas pelos Raios da Morte. Mencionavam-se duras perdas de soldados, mas o tom da informação revelava optimismo.

Os marcianos tinham sofrido um revés; não eram invulneráveis. Tinham batido em retirada para o seu triângulo de cilindros, no círculo centrado em Woking. Acercavam-se deles, de todos os lados, sinaleiros com heliógrafos. As armas moviam-se rapidamente de Windsor, Portsmouth, Aldershot, Woolwich - até do norte; entre outras, compridas peças eléctricas de noventa e cinco toneladas, vindas de Woolwich. No conjunto, cento e sessenta estavam em posição ou a ser apressadamente colocadas, cobrindo especialmente Londres. Nunca se vira na Inglaterra uma concentração tão vasta ou tão rápida de material militar.

Esperava-se que quaisquer cilindros que caíssem pudessem ser imediatamente destruídos por potentes explosivos, que estavam a ser rapidamente manufacturados e distribuídos. Não havia dúvidas, segundo o relato, de que a situação era muitíssimo estranha e grave, mas exortava-se o público a evitar e a desencorajar o pânico. Os marcianos eram decerto extremamente estranhos e terríveis, mas somavam, supunha-se, uns vinte contra os nossos milhões.

As autoridades tinham razão para supor, dado o tamanho dos cilindros, que, quando muito, haveria cinco marcianos em cada um deles - ao todo, quinze. E um, pelo menos, fora posto fora de combate - talvez mais. O público seria devidamente avisado da aproximação do perigo, e estavam a ser tomadas as medidas necessárias para a protecção da população dos arrabaldes ameaçados de sudoeste. E, assim, com reiteradas garantias acerca da segurança de Londres e da capacidade das autoridades para enfrentar a dificuldade, terminava esta quase-proclamação.

Isto fora impresso em enormes caracteres, tão recentes que ainda estavam húmidos, e não houvera tempo para acrescentar uma palavra de comentário. O meu irmão disse que era curioso ver como o conteúdo habitual do jornal fora impiedosamente cortado e retirado para lhe dar lugar.

Ao longo de toda a Wellington Street viam-se as pessoas a agitar as folhas cor-de-rosa e a lê-las; o Strand tornara-se bruscamente ruidoso com as vozes de um exército de pregoeiros que seguiam estes pioneiros. Os homens saíam a correr dos autocarros para se apossarem de algum exemplar. Não havia dúvidas de que estas notícias excitavam intensamente toda a gente, fosse qual fosse a apatia que tivesse revelado anteriormente. Os postigos de uma loja de mapas, no Strand, estavam a ser descidos, disse o meu irmão, e um homem, no seu fato domingueiro, com luvas amarelo-limão, afixava apressadamente, nos vidros, mapas do Surrey.

Do Strand a Trafalgar Square, com o jornal na mão, o meu irmão viu alguns dos fugitivos vindos de West Surrey. Havia um homem com a esposa e dois filhos e alguns móveis, numa carroça semelhante às que são usadas pelos hortaliceiros. Vinha da direcção da ponte de Westminster; e, na sua peugada, aproximou-se um carro de feno com cinco ou seis pessoas de aspecto respeitável e algumas caixas e trouxas. Os rostos destas pessoas estavam macilentos, e a sua aparência contrastava claramente com o aspecto festivo das pessoas dos autocarros. Dos cupés, indivíduos elegantemente vestidos espreitavam-nos através das janelas. Pararam na Square, como se estivessem indecisos acerca do caminho a tomar, e voltaram, por fim, para leste, atravessando o Strand. Atrás deles, a uma certa distância, vinha um homem em fato de trabalho, montado num daqueles triciclos antiquados que têm uma pequena roda dianteira. Tinha o rosto sujo e pálido.

O meu irmão encaminhou-se para Victoria e encontrou outro grupo de pessoas com o mesmo aspecto. Tinha uma vaga ideia de que poderia saber, através delas, alguma coisa a meu respeito. Notou um número desusado de polícias a regular o trânsito. Alguns dos refugiados trocavam informações com as pessoas dos autocarros. Um deles afirmava que vira os marcianos. “Caldeiras em cima de andas, digo-lhes, caminhando como se fossem homens.” A maioria deles mostrava-se excitada e animada pela sua estranha aventura.

A seguir a Victoria as cervejarias estavam a fazer um bom negócio com estes recém-chegados. Havia grupos de pessoas, em todas as esquinas, a ler jornais, a conversar excitadamente, ou a fitar estes invulgares visitantes de domingo. O seu número parecia aumentar à medida que a noite se adiantava, até que, por fim, disse o meu irmão, as avenidas faziam lembrar Epsom High Street num dia de Derby (Corridas de cavalos em Epsom). Ele dirigiu-se a alguns destes fugitivos e recebeu respostas pouco satisfatórias da maioria deles.

Ninguém lhe soube dar notícias de Woking, com excepção de um homem que lhe assegurou que Woking tinha sido inteiramente destruída ina noite anterior.

- Venho de Byfleet - disse ele. - Chegaram ali homens de bicicleta, de madrugada, e andaram de porta em porta a avisar-nos para fugirmos. Depois vieram soldados. Saímos de casa para dar uma olhadela; havia nuvens de fumo a sul - nada mais do que fumo, e nem sequer uma alma chegou dessa direcção. Em seguida, ouvimos tiros em Chertsey; de Weybridge, estavam a chegar famílias inteiras. Então, fechei a porta e vim embora.

Nessa altura, reinava nas ruas uma forte convicção de que as autoridades mereciam censuras pela incapacidade que revelavam de derrotar os invasores sem toda esta perturbação.

Por volta das oito horas, ouviu-se nitidamente um ruído de fogo pesado em todo o sul de Londres. O meu irmão não o ouviu devido ao trânsito nas principais vias públicas, mas quando passou pelas silenciosas ruas traseiras em direcção ao rio pôde distingui-lo com bastante clareza.
De Wesjtminster dirigiu-se ao seu apartamento, perto de Regent's Park. Eram talvez duas horas. Estava muito preocupado por minha causa e perturbado pela evidente magnitude do problema. A sua imaginação discorria, tal como me acontecera no sábado, acerca de pormenores militares. Pensava em todas aquelas armas silenciosas, à espera, na região subitamente nómada; tentava imaginar “caldeiras sobre andas”, de trinta metros de altura.

Duas ou três carroças, carregadas de refugiados, passavam ao longo de Oxford Street, e várias por Marylebone Road, mas as notícias propagavam-se com tanta lentidão que Regent Street e Portland Place estavam cheias dos habituais passeantes das noites de domingo, embora conversassem em grupos; e, ao longo da orla de Regent's Park, havia muitos casais silenciosos, “passeando”, sob os dispersos lampiões de gás. Tudo decorria como habitualmente. A noite estava quente e calma, e um pouco abafada; o ruído de tiros continuava a ouvir-se, intermitentemente e, depois da meia-noite, viu-se o que pareciam serem lâminas de luz, a sul.

Leu e releu o jornal, receando que me tivesse acontecido o pior. Estava inquieto e, depois de cear, saiu novamente de casa e vagueou sem destino. Regressou e tentou, em vão, concentrar-se no estudo das suas notas para exame. Deitou-se um pouco depois da meia-noite e foi despertado às primeiras horas de segunda-feira por um ruído de pancadas nas portas, um tropel de passos precipitados na rua, um tamborilar distante e o repicar de sinos. Estivera mergulhado em lúgubres pesadelos. No tecto dançavam reflexos vermelhos. Durante alguns momentos ficou imóvel, atónito, perguntando-se se já era dia ou se o mundo enlouquecera. Em seguida, saltou da cama e correu até à janela.

O quarto ficava numa água-furtada. Quando deitou a cabeça de fora da janela ouviu uma dezena de ecos do ruído do correr da vidraça e viu assomarem pessoas em todas as espécies de trajos de noite. Gritavam-se perguntas.

- Estão a aproximar-se!-berrava um polícia, batendo a uma porta. - Os marcianos estão a aproximar-se! - e corria para a porta da casa vizinha.

O ruído do tamborilar e do toque de trombetas provinha dos quartéis de Albany Street e todas as igrejas ao alcance do ouvido atarefavam-se a matar o sono com um veemente e desordenado toque de sinais a rebate. Ouvia-se o ruído de portas a abrir-se e, janela após janela, as casas defronte saíam da escuridão para uma claridade amarelada.

Uma carruagem fechada subiu a galope a rua, irrompendo brusca e ruidosamente da esquina, passando sob a janela num tumulto de rodas que morreu lentamente na distância. Na peugada deste veículo surgiram dois cupés, os precursores de uma longa procissão de veículos, a maioria dos quais se dirigia para a estação de Chalk Farm, em vez de descer a rampa para Euston. Na estação de Chalk Farm estavam a ser carregados os comboios especiais para o noroeste.

Durante um longo momento, meu irmão ficou à janela, completamente atónito, observando os polícias a bater às portas e a transmitir a sua incompreensível mensagem. Em seguida, atrás dele, a porta abriu-se e entrou o homem que morava do outro lado do patamar. Só tinha vestido uma camisa, calças e chinelos; os suspensórios caíam-lhe da cintura e tinha o cabelo revolto.

- Que diabo é aquilo? - perguntou. - Um incêndio? Que raio de algazarra!

Debruçaram-se ambos à janela, esforçando-se por ouvir o que os polícias estavam a gritar.
Surgiam pessoas das ruas da vizinhança e formavam grupos nas esquinas, conversando.

- Que diabo se passa? - exclamou o colega de hospedagem do meu irmão.

O meu irmão respondeu-lhe vagamente e começou a vestir-se. À medida que se vestia, corria à janela para não perder nada da excitação crescente. Nesse momento, apareceram alguns homens a vender, desusadamente cedo, alguns jornais. Apregoavam:

- Londres em perigo de sufocação! As defesas de Kingston e Richmond foram forçadas! Horríveis massacres no vale do Tamisa!

E, por toda a parte - nos quartos dos pisos inferiores, nas casas de ambos os lados da avenida, por trás, no Park Terrace e numa centena de outras ruas dessa parte de Marylebone, e no distrito de West-bourne Park e em St. Pancras, e para oeste e norte, em Kilburn, St. John's Wood e Hampstead, e para leste, em Shoreditch, Highbury, Haggerston e Hoxton e, sem dúvida, através de toda a vastidão de Londres desde Ealing até East Ham -, as pessoas esfregavam os olhos e abriam as janelas para olhar para fora e fazer perguntas sem nexo; vestiam-se apressadamente ao primeiro sopro do temporal de Medo que se aproximava, fluindo através das ruas. Era a alvorada de um grande pânico. Londres, que se deitara, na noite de domingo, absorta e apática, acordava, às primeiras horas da manhã de segunda-feira, para uma profunda sensação de perigo.

Como da janela não podia aperceber-se do que se estava a passar, o meu irmão desceu e saiu para a rua. Precisamente nesse momento, o céu, sobre os telhados das casas, era matizado de cor-de-rosa pela alvorada que nascia. As pessoas em fuga, a pé e em veículos, tornavam-se em cada momento mais numerosas. - Fumo Negro! - gritavam todos, e de novo:


- Fumo Negro! O contágio de um medo tão unânime era inevitável. Quando o meu irmão hesitava no degrau da porta, viu aproximarem-se outros ardinas, e comprou imediatamente um jornal. O homem corria com o resto, e vendia os jornais à medida que corria, por um xelim cada um - era uma grotesca miscelânea de espírito de lucro e de pânico.

O meu irmão leu no jornal a seguinte comunicação da catástrofe, assinada pelo comandante-chefe:

“Os marcianos podem disparar enormes nuvens de um fumo negro e venenoso por intermédio de foguetes. Sufocaram as nossas baterias, destruíram Richmond, Kingston e Wimbledon, e estão a avançar lentamente em direcção a Londres, destruindo tudo à sua passagem. É impossível detê-los. Não existe salvação possível do Fumo Negro senão uma fuga imediata.”

Era tudo, mas bastava. Toda a população da grande cidade de seis milhões de habitantes se agitava, escapava e corria; começava a fluir en masse em direcção ao norte.

- Fumo Negro! - gritavam as vozes. - Fogo!

Os sinos da igreja vizinha soavam desagradavelmente; uma carroça conduzida sem cuidado embateu e esmagou-se, entre gritos e pragas, contra o bebedouro ao cimo da rua. Nas casas, moviam-se fracas luzes amarelas de um lado para o outro, e alguns dos cupés passavam com as luzes ainda acesas, tremulando. E a alvorada ganhava mais brilho, claridade e sossego.

Dos outros quartos, e a subir e a descer as escadas atrás dele, ouvia o tropel de passos. A dona da casa veio à porta, mal envolvida por um roupão e um xaile; o marido seguia-a, falando com veemência.

Quando meu irmão começou a compreender a importância de todas estas coisas voltou apressadamente ao quarto, meteu nos bolsos todo o dinheiro que encontrou - cerca de dez libras, na totalidade - e saiu de novo para a rua.
EM BREVE A CONTINUAÇÃO DESTE CLÁSSICO DA SCI-FI! NÃO PERCA!


27.8.07

Horror – Género literário ou psicanálise do oculto?


O Querido amigo e escritor português Alexandre Cthulhu volta a participar brilhantemente de nosso espaço desta vez com um ensaio sobre o horror na literatura.



Horror – Género literário ou psicanálise do oculto?


Por Alexandre Cthulhu




A mente humana e a procura de respostas

“Penso que a coisa que mais alivio nos traz, neste mundo, seja a incapacidade da mente humana em correlacionar todos os seus conhecimentos. Vivemos numa plácida ilha de ignorância, no meio de mares negros de infinito, e não nos foram destinadas longínquas viagens. As ciências, cada uma tentando defender a sua posição, prejudicaram-nos pouco até agora; mas um dia, a união de conhecimentos dissociados irá revelar-nos perspectivas tão terríveis da realidade, e da nossa assustadora posição nela, que enlouqueceremos devido a esse anúncio, ou fugiremos dessa luz fatal para a paz e segurança de uma nova idade das trevas”.

Lovecraft abre desta forma, um dos contos mais intrigantes da história do género horror, “O despertar de Cthulhu”. Este autor norte-americano, considerado por muitos, como o melhor escritor de terror do século XX, explorava as limitações do conhecimento humano, desenhando-lhe em redor, num redor por nós desconhecido, um terror cósmico, inserindo-lhe sempre vários factos históricos que lhe conferiam uma autenticidade espantosa.

A ficção de horror como género literário é um instrumento de interrogação sobre os assuntos humanos, uma incessante busca pelas questões do oculto que desde sempre se afiguraram intransponíveis à mente humana para os conhecer, ou até compreender.
A nossa mortalidade surge como inspiração capital para muitos escritores de horror, não somente como fruto de uma criatividade infinita, mas por estes compreenderem que a morte, e o mundo dos mortos comunicam com o mundo dos vivos através de códigos obscuros, apenas decifráveis para aqueles que não os ignoram e os pressentem. De um modo inato, todos sabemos que a morte constitui o único acontecimento vital da nossa breve passagem pelo planeta. A efabulação de grande parte dos contos de terror desponta para um “vasculhar” pelo maior enigma humano, quiçá, cientifico de sempre – A “morte” – tema comum em quase todas as narrativas deste género.

A narrativa do macabro

A narração de histórias nasce pela mão do homem como forma de dar vida a ideias e objectos do ocultismo, ou corriqueiramente como forma de evitar aborrecimento e tédio. Os primeiros prosadores deste género, surgem nos finais do século XVIII, elaborando relatos sobre castelos assombrados, seres vampíricos sem vida que se alimentavam do sangue das suas vítimas, monstros imaginários e sem sentido, ou cemitérios sombrios onde os mortos se erguiam da terra sem se perceber bem, como ou porquê.


Tendo como base o antagonismo religioso e o seu fundamento escatológico, estes contos seduziam pelo seu eterno misticismo lendário e pela forma imaginativa como eram relatados. Contudo, não dispunham de qualquer autenticidade, e alguns autores usavam os seus monstros como alegorias para problemas sociais e políticos ou travestiam as narrativas encharcando-as com metáforas para sentimentos recalcados, o que, sabemos hoje, não ter qualquer enquadramento neste tipo de género literário porque o transforma num exercício de vulgar exposição, sonegando-lhe o objectivo fundamental: Criar medo.


Escritores de vulto

Deve-se a Edgar Allan Poe o mérito de ter renovado o conto de terror, mistério e morte, introduzindo-lhe o factor cientifico que o deixa mais verosímil e ao mesmo tempo mais aterrador. Ressuscitador do género “negro – gótico”, transforma-o em obra de arte de alto teor lírico, e não apenas para transmitir “medo”.
Poe concentrava-se no terror interior, intimo, da alma, do ser. As suas personagens sofriam de temores avassaladores vindos de dentro, das suas próprias fobias e pesadelos. Não existem contos de Poe narrados na 3ª pessoa. É sempre “ele” que vê que sente, que ouve e vive o mais escondido e profundo terror.
Jacques Cabout escreveu, “Ele (Poe) não coloca um indivíduo normal num universo inquietante, ele larga um indivíduo inquietante num universo normal. Nada acontece à personagem. A personagem é que acontece ao mundo.

Howard Phillps Lovecraft, por sua vez distingue-se de Poe no estilo. Fundador de uma mitologia “cósmico – fantástica” inserida numa realidade paralela, Lovecraft, desenvolve as suas histórias sobre estes temas, criando assim um modelo de incerteza na mente do leitor que desconhece essa mesma “realidade” por ele ficcionada: Seres de outras galáxias, alienígenas que visitaram (e governaram) a terra há milhões de anos atrás, sujeitando os humanos a escravos, erguendo cidades megalíticas, mas amaldiçoadas em diversos pontos do planeta. Seres que foram expulsos e desterrados para universos paralelos ou para as profundezas dos oceanos, como o caso do grande “Cthulhu”, um deus das trevas que desperta ao comunicar com os humanos através de sonhos e do auxilio do “Necronomicon”, ou através dos rituais obscuros nele escritos.
H.P. Lovecraft escrevia num estilo muito próprio que levava os seus leitores a crer que as suas histórias eram de facto reais. Ainda hoje ninguém consegue afirmar se o livro “Necronomicon” realmente existiu, ou se é apenas uma criação dele. Ele não se limitou a criar um livro polémico (que foi escrito com sangue dos mortos). Ele elaborou toda a documentação histórica em redor da origem do livro. Livro que nos trás o conhecimento de seres ancestrais, assim como a história da passagem destes pelo nosso planeta, e respectivas formulas para aceder a dimensões paralelas. A sua simples leitura poderia levar uma pessoa à loucura.
Por sua vez, o terror moderno de Stephen King é bem diferente. Ele importou o “horror” para a vida quotidiana, ou seja as personagens comem “Big Macs”, vão aos shoppings, bebem Cutty Sark, etc. – Algo inédito em autores anteriores.


A psicanálise do oculto



Estes autores deixam-nos numa dicotomia psíquica:
Pura criatividade ou relatos de fantasmas interiores?

Os principais temas deste género literário situam-se entre os mistérios da mente e o enigma da morte. Os terrores por eles descritos, com grande intensidade e impressionante realismo, são terrores que se geram na mente das personagens, mas antes, essa realidade ambiente é visionada interiormente através do autor, e depois deformada por ele.
O medo é uma reacção humana universal, explicada biologicamente como sendo a protecção dada ao indivíduo em caso de perigo. É uma emoção que a pessoa experimenta quando se vê confrontada, frente a uma ameaça à sua vida ou ao seu corpo. Quando se escreve uma narrativa, tendo como suporte um tema obscuro, terá que haver, por parte do autor, um mergulho nas profundezas da alma humana, um perscrutar de certos estados mórbidos da mente, em hesitar em penetrar em esconderijos recônditos do seu próprio subconsciente.
O ser humano tem medo do desconhecido, daquilo que espera por ele fora da sua “realidade”. São os medos mais antigos, aqueles que persistem no imaginário humano. Os medos da idade adulta são os mesmos da infância, observados por outro prisma. As crianças têm medo do escuro porque se sentem sós. E este é também o nosso maior temor na idade adulta: O de acabar só.

É sabido que os maiores vultos da literatura de terror (Poe e Lovecraft) viviam de perto com a morte e loucura, o que os lançava para um sofrimento constante e penoso.

Lovecraft padecia de uma doença rara e faleceu com um cancro nos intestinos. Poe foi recolhido de uma sarjeta, numa rua de Baltimore num completo estado de embriaguês. Internado de seguida no W. College Hospital, passaria os seus dias derradeiros num estado semiconsciente, cheio de febre, chamando continuamente por um tal de “Reynolds”, que até hoje ninguém conseguiu identificar quem fosse. Acabou por falecer, vítima de alguma das enfermidades que se supõe que sofresse: tuberculose, epilepsia, diabetes, alguma lesão cerebral ou a combinação disso tudo. Será despropositado traçar um paralelo entre a produção literária de Poe e Lovecraft, e as circunstâncias que os empurraram para uma morte tão prematura?

26.8.07

O CACHORRO PRETO

A escritora gaúcha Mauren Müller estréia como colaboradora da Câmara com um conto impressionante e assustador. Uma justiça nunca antes esperada alcança um criminoso de forma aterradora. Boa leitura!




O CACHORRO PRETO


Mauren Guedes Müller



Afonso era um sujeito alegre que vivia contando piadas. Mesmo assim, alguns de seus colegas desconfiavam de que ele guardava algum segredo. Embora fosse bastante comunicativo, recusava-se a falar do próprio passado. E muitos de seus conhecidos não o consideravam possuidor do melhor caráter deste mundo.


Todas as noites, depois do trabalho, Afonso ia para um determinado bar e ficava bebendo, petiscando e passando cantadas nas garotas. Normalmente ele era um dos últimos fregueses a deixar o local. Naquela noite, ele foi o último a sair. Um denso nevoeiro dava à rua deserta um aspecto assustador. Meio bêbado, ia tomar o rumo de sua casa quando alguma coisa o fez paralisar-se por uns instantes. Era um cachorro grande, preto, que o encarava com insistência.


– Passa! disse Afonso.


Mas o cão não se moveu.


Afonso falou mais alto, bateu com o pé no chão, gritou. O animal permaneceu a encará-lo com seus olhos de um tom castanho-amarelado que lhe pareceram algo entre tristes e decididos. O único som que Afonso ouvia, além da própria voz, era o da respiração do cão, que não se moveu. Embora estivesse com um pouco de medo, Afonso deu-lhe as costas e seguiu caminhando em direção a sua casa, que ficava ali perto. Pelo menos, o cachorro não o seguiu – permaneceu estático onde estava.


Na noite seguinte, a mesma coisa: ao sair do bar, lá estava o cão negro. Afonso gritou com ele, e ele continuou a fitá-lo de uma forma que parecia desnudar-lhe a alma. Afonso foi-se embora, apreensivo, e o cão continuou no mesmo lugar. A cena se repetiu por várias noites. Numa delas, Afonso saiu do bar com uma lata de cerveja e atirou-a na direção do animal. Nem assim o bicho se moveu. Quando deixava o bar na companhia de alguém, percebeu que não enxergava o cachorro. Mas sempre que saía sozinho ele estava lá, cravando-lhe os olhos. Numa determinada noite, após haver tido uma desilusão amorosa, ficou bebendo só até altas horas. Afonso até se havia esquecido do cachorro, por causa de sua irritação. Mas, quando saiu do bar, lembrou-se dele. Havia novamente um denso nevoeiro, comum naquela cidade durante aquela época do ano. A rua estava erma e escura. Afonso olhou em volta. Não viu nem sinal do cão. Respirou aliviado e deu alguns passos na direção de sua casa.


Nesse instante, sentiu uma mão pesar sobre seu ombro e se voltou. Deparou-se com dois homens, que tinham o rosto coberto. Um deles mostrou-lhe uma faca.


– A carteira ou a vida – disse ele.


Afonso demorou um pouco para entender que estava sofrendo um assalto. Os efeitos do álcool o deixavam confuso. Excitado pela bebida, resolveu reagir. Tentou dar um soco no assaltante que estava desarmado. Mas o fato é que mal conseguia se manter em pé, e o sujeito facilmente o derrubou, preparando-se para começar a chutá-lo.


De repente, Afonso viu uma sombra negra se lançar sobre o assaltante e fazê-lo rolar pelo chão. O outro assaltante recuou um pouco, mas depois investiu contra a criatura com a faca. Esta lançou-se em sua garganta. O homem soltou um grunhido, o último som que conseguiu emitir, e deixou cair a faca. Afonso ouviu o metal da arma tilintando ao cair na calçada e sentiu o sangue respingar sobre si. Tentou se levantar, mas só conseguiu sentar-se no chão. O cão negro lançou-se sobre o outro assaltante e Afonso viu, com certo horror, que o animal o mordia no rosto, arrancando-lhe parte da face. O infeliz berrou, desesperado. Afonso finalmente conseguiu se levantar e saiu dali, correndo, cambaleando, caindo e tornando a levantar-se, até que finalmente entrou em casa. Seu casaco estava manchado de sangue vermelho-escuro. Livrou-se da peça de roupa e mal teve tempo de chegar ao banheiro, onde vomitou, um pouco por causa da bebedeira, um pouco por causa da cena grotesca que acabara de presenciar.


No dia seguinte, esperava ler alguma coisa no rádio ou nos jornais acerca dos assaltantes. Deviam ter morrido. Pelo menos o que tivera a garganta dilacerada pelo cão. Mas não havia uma palavra sequer na imprensa acerca do ocorrido. Bem cedo, passou pela frente do bar, imaginando que ainda haveria vestígios do sangue derramado, mas a calçada estava estranha e impecavelmente limpa. Perguntou ao funcionário da limpeza do bar e a alguns vizinhos. Ninguém sabia de ataque de cachorro ou coisa parecida por ali. Afonso foi trabalhar, mas permaneceu o dia inteiro confuso. Teria sido uma alucinação? Quando chegou em casa, as manchas de sangue em seu casaco pareciam demonstrar o contrário. Resolveu guardá-lo sem lavar, mais para se convencer de que não estava louco do que por qualquer outro motivo.


Durante alguns dias, não foi ao bar. Mas, por fim, seus amigos o convenceram de voltar lá, no que sempre fora seu lugar preferido da cidade para um “happy hour”. Acabou ficando até mais tarde e saiu sozinho. Mal cruzou a porta do estabelecimento, divisou, em meio à neblina, a figura conhecida do cachorro preto.


Talvez estivesse bêbado demais para ter medo, mas o fato é que o animal provavelmente lhe salvara a vida.


– Vem cá – chamou.


O cão moveu-se em sua direção. Afonso acariciou-lhe a cabeça. Caminhou lentamente para casa, e o cachorro o seguiu. Afonso abriu o portãozinho do pátio e o deixou acomodar-se na varanda. Na manhã seguinte, o animal permanecia por ali. Deitou-lhe alguns restos de comida antes de sair para o trabalho.


Porém, naquele mesmo dia, Afonso descobriu, pelos jornais, que havia sido descoberto o corpo em decomposição de um homem, com a garganta dilacerada, e, pela foto que apareceu no jornal, identificou o bandido que o atacara. Não fazia idéia de como o corpo atravessara a cidade e fora parar no matagal onde havia sido encontrado. Porém, lembrando-se de que havia outro bandido, o qual talvez ainda estivesse vivo – vivo, desfigurado pelas mordidas do cão e furioso, resolveu comprar uma arma para se defender, caso o criminoso sobrevivente viesse atrás dele. Adquiriu clandestinamente um revólver que guardou em casa.


Daí a algumas noites, voltou ao bar e conheceu uma garota. Após algumas doses de bebida e muita conversa, convenceu-a a visitar sua casa.


Quando chegaram, Afonso não viu o cão no pátio da frente. Chamou-o, mas ele não apareceu. Não deu importância. Ele e a jovem entraram. Afonso acendeu a luz.


De repente, vindo do interior da casa, o enorme cão negro avançou furiosamente. A moça ainda teve tempo de gritar. O animal lançou-se sobre ela, derrubando-a. Afonso tentou afastá-lo, mas o cão rosnou para ele de forma tão assustadora que ele se desesperou. Investiu contra o bicho, que o mordeu, rasgando-lhe a pele da mão esquerda, e voltou a cravar os dentes no peito da moça, de uma maneira tal que parecia querer arrancar-lhe um dos seios. Ela berrava, contorcia-se, mas não conseguia se defender.


Diante daquela visão horrível, Afonso buscou o revólver. Apontou-o e hesitou.


– Atira! gritou a mulher. – Por favor, atira!


A mão de Afonso tremia, mas ele apertou o gatilho duas vezes.


Súbito, o cão largou sua presa e fugiu para o fundo da casa, sem qualquer sinal de ferimento. Afonso correu para a jovem, que ainda lhe lançou um olhar desesperado. Sua roupa estava coberta de sangue. Ele pensou em chamar uma ambulância, mas, mal tirara o telefone do gancho, ouviu fortes batidas na porta:


– Polícia! gritou uma voz masculina. – Abra!


Estarrecido, Afonso não se moveu. A voz insistiu, e ele pensou em fugir, mas não teve tempo. Dois policiais arrombaram a porta e, antes que ele entendesse o que estava acontecendo, haviam-lhe colocado as algemas. Um vizinho ouvira os tiros e telefonara para a polícia, que acionara uma viatura que se encontrava próxima ao local...


Diante do Delegado, Afonso tentava se explicar:


– Um cachorro... Meu cachorro a atacou, e eu tive de atirar para tentar salvá-la!


O Delegado o olhou com interesse.


– Deveras, Sr. Afonso? Pois eu lhe digo que não havia qualquer sinal de dentadas de cachorro no corpo da vítima.


– Mas como? Eu vi! O cachorro mordeu... Mordeu os seios dela, e eu tive que atirar nele!


O Delegado deu uma gargalhada e o encarou.


– Desta vez você arranjou uma desculpa terrivelmente absurda para ter cometido um crime, Afonso Pedroso.


Afonso se sentiu confuso.


– O quê? perguntou.


– Você não se lembra de mim, Afonso. Mas eu me lembro de você. Faz tempo e foi longe daqui. Eu era apenas um inspetor de polícia. Mas me lembro muito bem de seu ar de deboche, de sua certeza na impunidade. Desta vez você não vai escapar, Afonso.


Fez uma pausa e o olhou:


– Até porque não é de um único homicídio que você está sendo acusado. O namorado da mulher que você matou também foi assassinado há alguns dias. Era um cara bastante perigoso, e não vou me admirar se você alegar legítima defesa. Mas também não vou acreditar em você. Nem o promotor. E, provavelmente, nem o júri, desta vez.


– Quem foi assassinado? perguntou Afonso, sentindo-se cada vez mais perdido.


– O namorado de sua vítima, Afonso. Foi encontrado morto num matagal, há alguns dias. E nós encontramos um casaco seu, na sua casa, com sangue. Tenho certeza de que os exames comprovarão que é o sangue dele.


Afonso sentiu-se sem ar.


– Mas... – gemeu.


– Mas também foi o cachorro que matou aquele homem!...


O Delegado deu uma gargalhada.


– Cachorro? Que cachorro? A polícia não viu cachorro nenhum em sua casa, Afonso!


Afonso estremeceu. O Delegado inclinou-se em sua direção e cravou-lhe os olhos.


– Desta vez, você vai pagar por estes dois crimes, Afonso Pedroso. Pena que eu não possa mais fazer você pagar por aquele outro...


Arrastaram-no à cela da Delegacia. Num canto dela, havia uma janelinha com grades que dava para um pátio interno. Afonso correu para ela, sentindo-se sufocado, e respirou fundo.


Então, seus olhos pousaram numa sombra negra, na qual brilhavam duas chamas castanho-amareladas, que o encarava, ofegante, a língua muito rubra balançando no ritmo de sua respiração.


De repente, Afonso se lembrou de tudo o que acontecera anos atrás.


Tivera um bom advogado e fora absolvido. Obrigara-se a se esquecer. Mas agora, tudo voltava à sua mente, como se houvesse uma explosão, um clarão que lhe incendiasse, na alma, aquelas memórias que ele tentara enterrar com tanto afã.


Um empregado de seu pai. Um jovem. Já nem se lembrava por quê. Talvez houvesse sido por ele haver reclamado das regras de trabalho desumanas a que ele e seus companheiros costumavam ser expostos. Afonso e outros dois empregados, mais subservientes, haviam-no encurralado, num canto da fábrica, após o final do expediente. Afonso dera-lhe um soco tão violento que lhe fizera com que dois dentes do infeliz saltassem longe. Depois, enquanto os outros dois o agarravam, Afonso lhe desferira vários pontapés. O jovem cuspia sangue, e Afonso não sabia se era dos dentes arrancados ou se de dentro de seu corpo, de algum órgão interno – e nem lhe importava. Por fim, um dos dois tinha lhe alcançado uma barra de ferro. Afonso batera com ela no jovem até seu braço ficar dormente.


Os outros dois empregados haviam-no levado, moribundo, e o tinham soltado a uma boa distância da fábrica. Mas Afonso ficara sabendo que o jovem não tinha resistido aos ferimentos.


O cachorro preto latiu, arrancando-o de suas lembranças.


Súbito, Afonso compreendeu.


– Desgraçado! gritou. – Vagabundo!...


Dali por diante, sempre que foi levado a interrogatório, Afonso só pronunciava o que, aos olhos do Delegado, do Juiz e do Promotor, não passavam de palavras sem nexo. Foi considerado louco e internado num manicômio judiciário, onde ficou até o final de seus dias. E, sempre que tentavam falar com ele, dizia coisas sem sentido a respeito do fantasma de um jovem que assumira a forma de um cachorro para se vingar e para destruí-lo...



JUNHO DE 2007


Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.

LÊ AGORA!

A Rainha dos Pantanos - Henry Evaristo

Virgílio - Henry Evaristo

UM SALTO NA ESCURIDÃO - Henry Evaristo publica seu primeiro livro

O CELEIRO, de Henry Evaristo

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COMUNICADO

Este blog possui textos e imagens retirados de outros sites. No entanto, não temos intenção de nos apropriar de material autoral de quem quer que seja e solicitamos a quem não desejar ver sua obra republicada pela Câmara que entre em contato pelo e-mail disponibilizado para que nós possamos retirar imediatamente o conteúdo.

Qualquer contato pode ser feito pelo e-mail:

voxmundi80@yahoo.com.br



Henry Evaristo

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Criado por WITCH PRINCESS; indicado por Tânia Souza do Descaminhos Sombrios.

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AVISO AOS ESPERTINHOS!

CÓDIGO PENAL - ARTIGOS 184 E 186


Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

§ 1º Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 2º Na mesma pena do § 1o incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente.

§ 3º Se a violação consistir no oferecimento ao público, mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para recebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro, direto ou indireto, sem autorização expressa, conforme o caso, do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor de fonograma, ou de quem os represente:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 4º O disposto nos §§ 1o, 2o e 3o não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto.



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