Este é uma espécie de texto experimental diferente de tudo que publiquei até agora. Foi proposto por um membro do site Recanto das Letras à guisa de exercício de imaginação.
De repente, as duas horas de uma madrugada chuvosa, me veio do nada esta idéia. Sem questionar me pus a digitar e eis o resultado.
REFLEXÕES DE GARDÊNIO
Um texto de Henry Evaristo
De repente Gardênio desistiu de tudo e sentou em um banco da praça 18 que dava para o mar das três montanhas. Estava angustiado e enregelado. A roupa úmida começava a transmitir sinais agourentos à sua saúde através de suas narinas deficientes. Ia gripar outra vez, mas, desta feita, não pensou em correr à farmácia ao primeiro sinal de anormalidade, e nem ao médico. Aquilo já não importava mais; nada no mundo importava mais e não queria mais saber o sentido de nada. Queria agora muito mais poder adivinhar o itinerário da vida dali pra diante; Aonde ia dar aquela imensidão marinha que se descortinava a sua frente. Um azul que lhe chamava, que parecia gritar seu odioso nome a cada arrebentar de suas alvas vagas. O canto triste das gaivotas ao longe só não era mais triste do que seu semblante. O semblante da desolação, da desesperança, da decepção e da frustração esmagadoras que lhe fustigavam o peito como a lâmina da espada de um samurai louco e sem mestre.
Sentado ficou Gardênio no banco de madeira sentido o ataque frio e pressago do vento em seu rosto enrugado e maculado de tantas experiências vexatórias por esse mundo. Estava mais do que nunca, indignado com tudo e com todos; Enfurecido com o tempo, com o espaço e com Deus. Não tinha vontade de relevar mais nada, nem de esquecer, nem de perdoar. Tinha vontade de virar os seres-humanos pelo avesso, de arrancar suas entranhas para fora e devorá-las. Estava agora tomado de uma sanha devastadora pelo suplício das obras divinas, da terra, do ar; E mesmo daquilo que era etéreo. Queria esmagar mentes e corpos e mutilar animais. Naquele fim de tarde de novembro ele era o demônio em pessoa e uma baba fina começou a escorrer do canto direito de sua boca. Sua cabeça pendeu e ele se pôs a sonhar acordado.
Em seus devaneios Gardênio voou por sobre as cidades do mundo e viu prédios altos e pontes. Viu as obras dos filhos de Deus, os hospitais, os manicômios, os presídios, os cemitérios. Tudo brilhava com uma luz espectral e do chão longínquo emanava um odor ominoso de putrefação. Em dado momento se achou planando em meio a um bando de corvos e, sem que pudesse impedir, sem ter também a mínima intenção disso, descobriu-se transformado num deles e que as penas de suas asas deitavam bombas nucleares por sobre a terra enfadonha e morfética, ao que ele ria com sua gargalhada de corvo e todos os outros riam com ele. Voaram depois para desoladas regiões rurais, povoadas por espíritos maus, onde ele pôde ver coisas negras nefandas rastejando em lamaçais pútridos lá em baixo. Aqui e ali avistava árvores repletas de cadáveres pendendo de seus galhos como bandos de espantalhos decrépitos. Era para lá que os corvos estavam se dirigindo, mas ele não queria mais compartilhar de sua companhia. Tinha que prosseguir com sua jornada pelos domínios estranhos de sua mente.
No horizonte longínquo, o odioso astro rei, como se envergonhado pelo açoite que impunha a todos, todos os dias, parecia esconder-se para nunca mais voltar, mergulhando a terra numa nova era de escuridão como sói existir antes de tudo, no início das coisas, quando só o verbo existe. Mas Gardênio não queria permitir isso. Queria exterminar o sol e, para ele flutuou célere e obstinado a despedaçar-lhe com as bombas que brotavam de suas asas negras.
Neste momento, porém, viu estenderem-se no firmamento nuvens tão escuras que até mesmo os raios mortiços do sol inibiram. Eram as ondas radioativas das bombas que deitara sobre as cidades dos homens que agora vinham como um comboio de locomotivas ensandecidas em sua direção. Ainda tentou esconder-se atrás de uma grande montanha, mas era tarde e a escuridão pétrea o cobriu apagando do cosmo qualquer indício de sua miserável existência.
***
Foi bem cedo de uma manhã nevoenta que os pescadores da costa de um país longínquo encontraram o cadáver do ancião. Vestia roupas pesadas e escuras muito estranhas àqueles olhos d'além mar; e tinha pedras nos bolsos.
Ninguém jamais soube quem ele era, nem de onde. Olhando seus documentos, cuidadosamente envoltos num saco plástico que pendia de seu pescoço, os homens de olhar brilhante tiveram que fazer um esforço tremendo para sequer pronunciar seu nome diante das poucas autoridades.
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