Paulo Soriano, excelente escritor de ficção-fantástica, residente em Salvador/BA, estréia as colaborações com um conto realmente assustador!
A CASA DAS SOMBRAS NEFASTAS
Paulo Soriano
Paulo Soriano
– Não são poucos os que me julgam morto – disse-me Von Paulus. – Há trinta anos que vivo recluso nesta vivenda, de insípida arquitetura, onde não há, em cômodo algum, uma nesga de lume sequer. Ao chegar, o senhor deve ter percebido, ao longe, que as janelas estão todas fechadas. Sim! Elas são maciças, do ébano mais denso e retinto que a natureza pode proporcionar e não comportam vitrais. Elas jamais se abrem e os ferrolhos são todos soldados por dentro. O senhor não pode ver, mas as cortinas, sob as quais as janelas se escondem, são todas de um veludo negro e espesso.
Eu havia chegado à casa de Von Paulus, a seu pedido, quando o Sol, cansado de rastejar sobre a abóbada celeste, precipitava-se preguiçoso para as goelas dos morros alcantilados, que, nesse fim de tarde, perdiam pouco a pouco a aura que a distância azulava e se revestiam de suaves e etéreos matizes avermelhados.
Veio recepcionar-me, ao limiar dos portões de ferro enferrujado, um homem já de idade, pobremente vestido. Com uma mão, o velho senhor empunhava um molho de chaves e, com a outra, segurava uma bengala, na qual, aliás, não se apoiava. Outra bengala alçava-lhe o antebraço, numa postura que me pareceu um tanto solene, como se esmeradamente dependurado estivesse o objeto na trave horizontal de um guarda-roupas confeccionado para este específico fim. Entregou-me uma das bengalas e me pediu, com um sotaque cuja origem não consegui distinguir, que eu o acompanhasse. Caminhamos por um jardim abandonado, onde a hera e o limo cresciam e proliferavam, até à porta principal da rústica vivenda. O velho homem enfiou uma das chaves na fechadura e a fez girar. Quando a porta se abriu, entramos numa espécie de hall, ou corredor largo e curto, cuja evolução era subitamente interrompida por uma maciça porta de ébano. O homem selou a porta atrás de mim e a escuridão caiu pesadamente sobre nós. Então ouvi que o homem abria, com uma chave, a segunda porta. Tomou-me pelo cotovelo e me conduziu como quem guia um cego. Depois parou, voltando à porta de ébano, para cerrá-la a chave, com o reforço de várias trancas corrediças. Deduzi que o hall era uma espécie de antecâmara erigida especialmente para evitar a entrada de luz natural. Voltando-se a mim, segurou-me, com uma mão leve e delicada, novamente pelo cotovelo, em voz baixa sugerindo-me que fizesse uso da bengala. Quando paramos, disse:
– O senhor pode se sentar. Há uma cadeira exatamente atrás de vossa mercê.
Foi então que ouvi a voz melodiosa de Von Paulus. Ao que sabia, deveria ter o barão mais de setenta anos. Mas a sua voz parecia a de um adolescente. Não pude deixar de imaginá-lo bem mais jovem do que realmente era. O timbre de sua voz me sugeria a de um homem alto, esguio, de ombros largos e gestos comedidos.
– Ninguém me põe os olhos e a ninguém eu vejo há três longas dezenas de anos – prosseguiu. – Provavelmente já estou cego. Meus olhos só enxergam esta densa escuridão, e, certamente, os nervos ópticos já estão atrofiados. Mas creia-me, nobre professor, esta reclusão e esta cegueira voluntárias são, para mim, tão indispensáveis quanto o ar que respiro. E as cautelas a que aludi são significativamente importantes para a minha segurança e a daqueles que me visitam. O senhor traz fósforos consigo? Se os traz, peço a gentileza de depô-los sobre da mesa, que está logo à sua frente. Trata-se de uma precaução absolutamente necessária e não podemos correr riscos. Não imagina o senhor o perigo que uma única língua de fogo, por mais débil que seja, pode nos proporcionar.
Tivesse eu seguido as recomendações de Von Paulus, o Barão de Oberspreewald, e, então, a tragédia não se teria abatido sobre aquela casa. Decerto que depus os fósforos sobre a mesa. Mas, como logo ficará evidente, não eram os únicos que eu trazia comigo.
– Certamente que o senhor deve estar cansado. Mas, ao mesmo tempo, deve estar curioso. Em primeiro lugar, não sabe por que motivo eu o chamei. E nem cogita das razões de tanto cuidado, de tanta preocupação com a luz. As respostas, o senhor as terá depois de um bom descanso. Agora, somente posso antecipar que todo este isolamento, toda esta escuridão de quem sou voluntariamente cativo, deve-se, unicamente, a um livro. Este que o senhor pode alcançar, se estender mais longamente a mão esquerda. É um livro antigo: Boek van de Schaduwen. Peço que o leve consigo. Ele é a origem de toda minha desgraça, a causa de meu irremediável retiro. Mas só o leia quando estiver em um lugar seguro, longe destas paredes sombrias. Bem, é tarde. Óinos, meu bom criado grego, o conduzirá até os seus aposentos. Se vossa mercê sente fome, ele poderá preparar-lhe alguma coisa. Ele é cego – em minhas circunstâncias, somente um homem cego poderia me servir – e se arranja tão bem na cozinha quanto uma dona de casa com vista apurada.
Eu agradeci, mas recusei a gentileza. Estava ansioso demais para comer o que quer que fosse. Queria estar sozinho com o livro, nada mais.
O velho criado levou-me até um quarto do andar superior, onde eu me recolhi, repleto de emoções. A curiosidade latejava em minha alma em ondas potentes e constantes. Eu mal conseguia respirar. Não podia crer que, queimando as minhas mãos, e bem ao alcance dos meus olhos, estava o “Livro das Sombras”, um tratado abjeto, proscrito pela Igreja, e que os estudiosos das coisas nefandas supunham definitivamente perdido. Em minha pequena bagagem – considerei que estaria viajando de volta em dois ou três dias – trazia fósforos e um pacote de velas. Tateando, encontrei o que buscava e, jogando às favas qualquer escrúpulo atinente à estranha proibição que me impusera o Barão de Oberspreewald, acendi o lume.
Era um livro extraordinário, atribuído ao ocultista Jan van Darkenesses, dito De Shady Ridder. Tratava-se de um incunábulo precariamente impresso, disforme, sem iluminuras e permeado de distintos caracteres tipográficos. Datava de 1495 e fora impresso nas oficinas de Anton Korbeger. Os primeiros capítulos estavam escritos em holandês. Mais adiante, liam-se longas passagens em alemão e em latim. E havia extensas citações em hebraico e na língua dos marranos portugueses. Havia, finalmente, uma miríade de caracteres cirílicos primitivos. Uma tradução fidedigna seria difícil, mas não estava longe de minhas possibilidades. Afinal, já era eu, indiscutivelmente, um erudito; um lingüista respeitabilíssimo.
Em um breve momento de meditação, pude contemplar despreocupado o pequeno quarto em que me alojara. Compunha-se de um cômodo pequeno, guarnecido de uma cama estreita – ali eu estava –, de um escabelo e uma pequena mesa de cabeceira, onde havia uma moringa e um copo de cristal. Nada mais. As paredes eram pintadas com tom escuro e, no local onde eu imaginava que estivesse a janela, uma negra cortina de veludo caía do bandol até o rés-do-chão.
Foi então que percebi que, à luz indecisa da vela, algo se moveu. Algo percorreu as paredes com uma incrível rapidez, antes de se concentrar na área mediana da parede oposta à que estava a cama. Era uma sombra, a princípio indistinta. Depois, percebi perfeitamente que a sombra desenhava, na parede, contornos nitidamente humanos. Mas a sombra que se projetava na parede não era minha. Era a sombra de alguém que deveria estar às minhas costas. Virei-me, mas não havia ninguém ali. E vi, já quase em pânico, que a sombra afastava os braços do corpo – para cima da cabeça artisticamente delineada, na qual era possível perceber os contornos das orelhas proeminentes – e assumia a postura de alguém que pretende lançar-se furiosamente contra outrem. Sim, as mãos crispavam-se e as longas unhas tremiam. Então, algo de extraordinário aconteceu. Eu estava prestes a fugir, quando a sombra evoluiu da parede em minha direção. Em frações de segundos, constatei que aquela sombra ganhava densidade, modelava-se em pleno ar, infiltrava-se de uma substância palpável, negra e terrível. O meu grito foi sufocado pelas garras daquela aparição medonha, que cingira o meu pescoço e que sobre ele exercia uma pressão avassaladora, levando-me quase à asfixia. Pus-me a debater desesperadamente, enquanto aquela substância gélida e escorregadia esforçava-se em minha goela como uma tenaz. E, no momento em que deixei cair a vela ao chão, o lume minguou. A pressão que a sombra exercia sobre o meu pescoço amainou e os fortes dedos, que me suprimiam a respiração, se distenderam, afrouxando-se, trazendo-me um alívio imediato. Quando o lume feneceu, compreendi que estava salvo. Foi então que ouvi suaves batidas à porta, pouco antes que ela se escancarasse, num ruído áspero, para dar passagem a Von Paulus.
– Eu não o culpo pela curiosidade. Afinal, o senhor é um estudioso. Mas a curiosidade quase lhe custou a vida. A sombra sente o cheiro da luz. Agita-se. Abandona o seu dono e prepara as suas armadilhas traiçoeiras. Acalme-se, meu jovem professor. Esteja no escuro e ficará em segurança. Nada poderá afligi-lo.
Eu ofegava. O barão sentou-se ao meu lado – eu podia ouvir nitidamente a sua respiração compassada – e prosseguiu:
– A sombra que o atacou era a minha própria sombra. Já não exerço controle algum sobre ela. No início, não era assim.
O velho homem inspirou profundamente. Senti que o ele estava deveras amargurado. Imaginei que as suas feições se retraíam, sua sobrancelha arqueava-se e o seu olhar se perdia no vazio.
– Esse livro medonho – Boek van de Schaduwe – está com a minha família há séculos. Suponho que ele seja o último exemplar. Em minhas sombrias experiências, consegui obter fabulosos proveitos com a minha sombra. Podia estar aqui na Prússia e, ao mesmo tempo, na Espanha ou na Índia. Ela era uma sombra dócil. Foi muito fácil domá-la e instruí-la, fazendo-a escrava de meus intentos. Permitia-me obter segredos inconfessáveis. Com o auxílio de minha sombra, eu vencia o espaço em questão de segundos, porque, onde ela estivesse, ali estariam os meus sentidos. Infiltrava-me, pois, sorrateiramente, nos mais recônditos ambientes. Muitas das vitórias de nossos exércitos devem-se à minha indiscrição. Segredos militares das hostes inimigas ruíam como castelos de areia! Mas, um dia – dói-me confessá-lo –, usei a minha sombra para intentos menos nobres. Sim! Sim! A sombra logra consistência. Absorve a escuridão, que é a sua substância. E se torna tão palpável como o corpo de um homem. E foi com ela que eliminei, um a um, os meus poucos – porém ferrenhos – inimigos. Foi então que adveio a minha perdição.
Imaginei, agora, que o barão elevara as mãos ao rosto, como a se esconder da própria vergonha.
Então o velho homem prosseguiu:
– A sombra encarna os nossos desejos mais ferozes, mais primitivos. Se nos lançamos a empresas torpes, perdemos, aos poucos, o domínio sobre ela. Resta apenas a força animalesca que reside em todos nós. Oh, sim! Eu senti a sua garganta em minhas mãos, mas nada pude fazer. Da mesma forma que não pude evitar a morte de minha mulher e de meu único filho, que Deus os tenha. Contra vossa mercê, eram os meus instintos selvagens que comandavam a aterradora ação homicida. Uma ação ignóbil, crudelíssima, completamente fora do meu alcance e absolutamente alheia à minha volição consciente. Mas há um meio de liberação. O Livro das Sombras o indica. Mas eu não posso lê-lo, por óbvios motivos. E, ainda que eu pudesse, não poderia decifrá-lo. Eu o chamei aqui em busca da cura. Vá! E, bem longe daqui, leia o livro maldito. Traduza-o na parte em que é do meu interesse e me diga como virá a libertação.
– Qual... Qual é a língua? – balbuciei.
– Eu não sei. Está em um alfabeto cirílico, muito antigo. Eslavônio, talvez.
– Creio que, infelizmente, não o possa ajudar. Meus conhecimentos do eslavo antigo são muito pobres. Lamento, senhor barão – Menti. A verdade é que eu estava transtornado e precisava desesperadamente ficar só. Mas, naquele momento, não sabia que dava o último empurrão àquele que se equilibrava precariamente à beira de um precipício.
– Ninguém jamais o pôde – disse-me ele, retirando-se.
Dormi pouco naquela noite. Revirei-me na cama até ouvir que os passarinhos, lá fora, cantavam. Mas dentro daquele quarto, uma espessa escuridão era a minha única companhia.
Desci as escadas, com o auxílio da bengala. E, para o meu espanto, vi que uma fresta de luz, um traço vertical margeando uma porta corrediça, reluzia languidamente. Gelei. Levei as mãos ao pescoço num simples reflexo. Mas, atrás de mim, veio uma voz, que reconheci como sendo a do criado cego:
– Não há o que temer. Abra a porta e veja com os seus olhos.
Empurrei a porta, que deslizou suavemente em seus trilhos. E algo de terrível cravou-se em minhas retinas.
De uma viga do teto pendia o velho barão, sob a luz morrediça de uma vela, que ele me furtara na noite anterior. Sua cabeça pendia num ângulo esquisito e uma réstia escura, palpável, constrangia o seu pescoço. Sim, Von Paulus jazia morto, e suavemente descrevia um movimento pendular, enforcado na própria sombra nefasta!
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Um comentário:
Valeu, amigo Henry! Obrigado!
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